Narradores malditos, sertões assombrados e histórias de monstro em que arte e oralidade se mesclam definem o horror nordestino de Márcio Benjamin
Publicado em 09/11/2023
Atualizado às 14:48 de 09/11/2023
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, dedicado à literatura fantástica nacional, a curadoria e a apresentação são do escritor e pesquisador Enéias Tavares.
Entre histórias orais, anti-heróis condenados e ousadas reinvenções de lendas do Norte e do Nordeste do Brasil: Márcio Benjamin
O problema da não aceitação da nossa brasilidade continua vivo, constituindo um evidente problema educacional e cultural. Mês a mês somos bombardeados por produções culturais estrangeiras – sejam elas fílmicas, literárias ou quadrinísticas –, que por vezes escondem uma cena cultural brasileira que batalha para sobreviver diante de uma indústria mais solidificada e apelativa. Essa questão é ainda mais desafiadora se enfocamos tanto nosso passado colonizado quanto nossa dificuldade em valorizar e prestigiar nossas próprias vozes.
Quando esse debate é então direcionado ao horror e ao terror brasileiros, seus matizes e suas contradições ficam ainda mais evidentes. Afinal, o que instaura nossos medos e nossas ansiedades nacionais? O que diferencia os horrores urbanos das fobias rurais e interioranas? Haveria um limite entre a seara da modernidade e a da antiguidade quando o assunto é o medo e o terror? Em outros termos, haveria algum diferencial entre o medo essencialmente brasileiro e o presente em narrativas estrangeiras?
Uma forma de encarar o problema é percebermos, historicamente, como autores como Inglês de Souza, Câmara Cascudo, Monteiro Lobato e Simões Lopes Neto, entre muitos outros, trataram de nossas lendas, até chegarmos a releituras atuais das narrativas ditas “folclóricas”, releituras que incluem nomes como Christopher Kastensmidt, Paola Silviero e Felipe Castilho, para citarmos apenas alguns.
Unir lendas familiares e causos regionais a gêneros populares como o horror é o que alimenta o gênero folk horror, ou horror folclórico, que tem em Márcio Benjamin um de seus principais representantes em nossas paisagens nacionais. Márcio Benjamin Costa Ribeiro é um natalense do Rio Grande do Norte de 43 anos que, além de se dedicar à escrita, trabalha como advogado. Autor de romances e livros de contos de horror rural e folclóricos, tem uma produção variada, dedicando-se também à dramaturgia e ao audiovisual, além de projetos culturais.
Após participar de antologias como Caminhos do medo (Editora Andross, 2008), Benjamin publicou Maldito sertão, seu primeiro livro solo, uma antologia de contos da editora Jovens Escribas, em 2012. Seu primeiro romance foi Fome (Jovens Escribas, 2016), livro finalista do Prêmio Biblioteca Nacional na categoria Romance Infantojuvenil. No mesmo ano, apresentou seu trabalho sobre o sertão nordestino e a importância da oralidade na Universidade de Sorbonne, em Paris.
Em 2020, publicou Agouro, antologia de 13 contos de horror que recupera lendas nordestinas em histórias que reinventam temas comuns ao gênero horror, como pactos diabólicos, fantasmas amaldiçoados, seitas ameaçadoras e perigos naturais ou ancestrais na forma de criaturas sobrenaturais. Esses motes são contrastados por Benjamin com problemas endêmicos como a fome, a seca, a desigualdade, a revolta e a violência que perpassa a vida no sertão brasileiro.
Agouro prenuncia muito do que Benjamin continuaria a explorar em sua obra futura. Nesse meio-tempo, ele produziu os textos teatrais Hippie-Drive, Flores de plástico e Ultraje e o roteiro audiovisual de séries como Dê seus pulos, As primas, Enfim S.O.S e Agouro, de curtas-metragens como Bucho de peixe, Sombras da alma e Encruzilhada bar e de longas-metragens como Quebrando o gelo e Fome.
Entre seus projetos culturais, destacam-se ações como Arte da palavra, Mostra Sesc de culturas, Mostra Sesc Cariri e Festa literária internacional do Pelourinho (Flipelô). Outras iniciativas o levaram a salas de aula para conversar com jovens leitores sobre suas histórias e sobre a importância da leitura e da cultura popular. De suas premiações, Benjamin foi finalista do III Prêmio Aberst e do Prêmio OFF Flip de Literatura, além de ganhador dos prêmios Moacy Cirne de Ficção em 2019, Odisseia de Literatura Fantástica em 2020, Leblanc em 2022 e José Cândido de Carvalho em 2023.
No último ano, participou da coletânea Mundos paralelos – horror, pela Globo Livros, organizada por Oscar Nestarez, num volume que reuniu nomes do horror nacional. Em seu conto, “A noiva de São João”, Benjamin conta a história do jovem Gustavo, que é obrigado pelo pai a passar uma temporada na casa da avó. Lá ele será assombrado pelo espectro de uma noiva do interior, que fará o jovem urbano repensar seus critérios de medo e horror.
Quanto ao seu livro mais recente, Sina (DarkSide Books, 2022), trata-se de mais uma jornada noite e horror adentro pelo nosso fantástico nacional. Amarrando as várias histórias do volume está Zé Trancoso, um homem que se vê perdido quando seu carro estraga numa estrada de interior. Diante de três misteriosas e míticas figuras femininas que lhe atravancam o caminho, Trancoso promete histórias que possam agradar suas ouvintes e servir de pagamento para liberar sua passagem.
Esse é apenas o mote para uma reunião de histórias absurdas e estranhas, quando não horrendas, histórias essencialmente brasileiras, dando ao gênero folk horror, sobretudo em sua produção nacional, uma nova obra de referência. Destaque é feito para uma galeria de personagens que, além do protagonista narrador, compreendem contadores de histórias, rezadeiras ameaçadoras, padres articulados, artistas populares, animais assustadores, pífios coronéis monárquicos e beatos nada santos.
“Sina” é destino, caminho, profecia e fado, numa miríade de sinônimos que levam o título do livro, e também suas histórias, a outras dimensões de sentidos nos quais o sertão, o agreste, o descampado e o planalto são unidos a novas histórias, lendas e tramas de medo e assombro, quando não de maldição e violência. E todas essas histórias vão ganhando vida na voz da Sherazade deste “sertão de mil e uma histórias”, o Zé Trancoso de Benjamin, seu talentoso e engenhoso narrador.
Essa dedicação a histórias que revivem vozes, tons, paisagens e traços essencialmente nacionais é um dos pontos altos da produção de Benjamin. Para o autor, trata-se de uma “escolha bastante pessoal. Não quero de forma nenhuma dizer que o Nordeste é sobretudo aquele que expresso em meus contos. A minha opção é uma escolha estético-afetiva. Essa temática me faz muito sentido porque são espaços, pessoas, cheiros, sentimentos que eu não apenas conheço, mas que formaram a minha essência e com os quais aprendo constantemente”.
Justamente é esse horror que preza pela oralidade e pelo regionalismo que os leitores poderão conferir na sequência. Para a coluna Encontros, Benjamin nos presenteia com “O Rio do Morto”, conto inédito produzido exclusivamente para os leitores. Nele, terror, lenda e oralidade se mesclam numa história que poderia ser contada ao redor de qualquer fogueira ou então lida abaixo de qualquer luminária. Segundo Benjamin, trata-se de uma história nascida de “um relato de uma aluna em uma escola que visitei. A moça do conto é sua avó que morava na beira do Rio Potengi, um dos maiores do Rio Grande do Norte, e ela disse que costumava ‘brincar de morto’ junto com seus irmãos. Dessa ideia nasceu o conto, com um arremate meu”.
Desse modo, unindo histórias reais e invenções ficcionais, relatos bem pessoais e artesanias bem literárias, Márcio Benjamin continua a homenagear nossa brasilidade, usando o fantástico para nos fazer ver o insólito em nossas próprias narrativas, sejam elas pessoais, familiares ou regionais. Para ele, “falar do sertão e do Nordeste nas histórias é mais do que mergulhar nesse mundo de mal-assombros. É ter a consciência de que este mundo ajudou e ajuda a contar a história da minha terra. É fortalecer os laços dos mais velhos e expressar para os mais novos a importância da sua cultura”.
Numa “literatura-convite” a abraçarmos quem somos, aprendemos com Benjamin a também ver, ouvir e sentir o que nos constitui como brasileiros, indo além dos traços culturais estrangeiros. Em Sina e Agouro, além de outras de suas obras, o autor nos leva a uma nova dimensão do fantástico brasileiro, adicionando ao insólito nacional mais um parâmetro de sonho, crítica e diversão. Afinal, o excepcional de uma boa história sobre quem somos, em meio a uma noite fria e próximo de uma voz amiga, é reaprendermos o valor do medo. Não raro, é nesse aprendizado que proteção, afeto e arte são reinventados dentro de nós, leitores e ouvintes.
O rio do morto
Cave! Cave, pela caridade!
Dona Menina acordou de uma vez, puxando rapidamente o ar pra dentro dos pulmões, como quem se afoga.
Mas ali não havia mais rio, só o breu do quarto vazio que fazia coro para o silêncio dentro do seu juízo.
Ainda perdida dentro do sonho ruim, sentou-se na cama com dificuldade e procurou reconhecer os itens do quarto, como fazia quando o aperreio insistia em tomar de conta.
A cômoda velha, encimada da santa, presente dos sobrinhos ausentes.
Qual o nome mesmo? Fazia quanto tempo?
O guarda-roupas da porta quebrada, que rangia cada vez que se abria.
A fotografia preta e branca, embaçada, já comida dos lados, dos meninos arrumados. Ela ali menina mesmo, o único vestido bom que tinha. Tão bonito, macio.
Do lado, o irmão. Ciço. Os cabelos lisos, de índio, o sorriso largo, honesto, naquele viver de menino que andava no mundo com quem passeia.
Cave!
Dona Menina virou-se ao ouvir a própria voz de criança lhe berrando, desesperada, ao pé do ouvido. Ainda pensou em chamar, mas a quem? Como é que a pessoa chama pela gente mesmo?
Talvez o fuxico do povo andasse certo. Tava era ficando doida.
Sacudiu pra longe o pensamento e foi até o banheiro. Lavou demoradamente o rosto enquanto procurava se acalmar.
Amanhã cedo iria.
Atrás de si.
Cavem!
Virou-se com aflição e quase pegou o menino correndo dentro de casa.
Acendeu a luz, ainda trêmula, e ainda tentou segurar as palavras que não demoraram a se despejar pra fora da boca.
– Ciço? – lhe dizia a própria voz, despejada por dentro da casa vazia. – Ciço, é você? – perguntou, dessa vez mais alto.
Sem perceber, arrochou os cordões puídos do robe por cima das tetas magras; esquecidas por cima do corpo velho. Há quanto tempo não tinha ninguém?
Queria muito alguém ali, agora, lhe dizendo que também ouviu o riso do menino, despreocupado, ecoando nas paredes vazias. Lhe dizendo que não tinha enlouquecido de uma vez por todas.
Dentro de casa só a lâmpada do banheiro ligada. A senhora não tinha coragem de se mexer. De seguir em direção de onde tinha visto o vulto.
Não fazia sentido reza. Qual era o nome da santa, meu Cristo? A gordinha, de vestido bem costurado, os olhos de louca virados pra cima, em êxtase.
Louca.
Agora sim.
Agora sim, meu Deus. Tenha piedade.
O riso dele, de Ciço. Debochado, aberto, sem fim. O cheiro do rio bem dizer dentro de casa. Como é possível? Valei-me, minha Santa. Linda. Doida como eu.
Dona Menina sentiu as pernas fraquejarem e foi se despejando no chão frio.
Pensou no celular, já moderno demais, eternamente esquecido, se apagando como ela, ao lado da cama, como os sobrinhos determinaram. Se acontecesse alguma coisa. Mas a mulher não tinha forças, era força que ela não tinha.
Lembrou-se do irmão, da casa bem dizer na beira do rio. Um outro rio em outro tempo. Um que passava mais devagar, sem pressa. Um tempo de quando nem tudo tinha nome.
Fazia uma vida, mas a mulher se lembrava da raiva que o irmão fez, sujando com o barro preto do rio o seu vestido, o seu único vestido branco, rendado, aquele da foto.
O ódio lhe subiu por dentro do couro, a menina ainda tentou partir pra cima do irmão, mas o olhar do pai lhe sublimou a fúria. Menina direita não faz isso, ouviu a mãe dentro do juízo, ouviu o padre no catecismo, a professora na sala de aula acanhada.
Mas aquilo não era certo, era? Lhe dizia a santa no altar, com outro vestido, mas ainda coberta com os mesmos olhos de louca.
E Menina esperou.
Aguardou com paciência cozinhando o ressentimento dentro de si em fogo brando.
E quando o sol inventou de começar a sumir pelo céu, chamou o irmão para a beira do rio.
Repetir a brincadeira tantas vezes vivida, escondida dos pais, que não gostavam não. Da última vez que foram pegos, dormiram de couro quente. Aquilo era coisa ruim, dizia a mãe, confusa e irritada. Atraia mau agouro pra dentro de casa.
Mas se eles sabiam que não era de verdade? Se o outro sabia quando devia desenterrar? Era tão gostoso sentir o frio da areia cobrindo todo o corpo. E de olhos fechados experimentar uma paz bem dizer infinita.
Morrer seria aquilo?
No fim, os dedos do pé esquerdo, únicos descobertos, sacudiam em aviso e o outro ajudava a desenterrar o morto que não foi. Ainda não.
Nascer seria aquilo?
Com um sorriso no rosto, Menina cavou a areia e cobriu o irmão. Amontoou com cuidado um punhado grande e destacou os dedos do pé. Pegou a flor mais bonita que conseguiu e enfeitou a pequena montanha de areia enquanto o vermelho se fazia lá pelo lado da cidade.
E o tempo, sem avisar, passou.
– Cadê Cícero, Menina? – perguntou a mãe, na mesa do café.
A irmã quase não conseguiu segurar o riso enquanto erguia os ombros, pensando no peste preso na areia gelada, no buraco cavado bem mais fundo que o normal. Quem mandou sujar seu vestido? Quem mandou foi a santa, girando pra menina os seus olhos.
Mas a partir dali a lembrança sempre se embolava. Num instante ficou tarde demais, e a culpa se virou em uma certeza assustadora demais para a sua pouca idade. Como se outra pessoa lhe dominasse o corpo, tal qual aqueles bonecos de madeira que vendiam na feira, Menina viu a si mesma apontando a montanha de areia. O pé esquerdo imóvel pro lado de fora.
Os pais cavando. Tirando a areia como se pudessem voltar no tempo.
– Cave, Menina, cave! Ciço! – berrava a mulher, arrancando a areia do chão como se pudesse nascer o seu filho de novo.
Dali pra frente o atropelo era ainda maior. O irmão arrancado do chão como sendo uma raiz de macaxeira. A boca cheia de areia. O grito do pai se confundindo com a zuada do rio. Ciço no caixão coberto de flores por cima do meio sorriso como se dormisse. Ela mesma trancada no quarto, dias. A mãe em frente ao rio. Dias. Esperando a volta do menino que nunca voltou.
A dor lhe atravessava a garganta ainda hoje. Sempre. Tão profunda que não havia mais lágrimas.
A senhora levantou-se de repente ao perceber pequenos reflexos brilhantes dentro de casa. Goteiras?
Mas como, se não havia chovido?
Olhou pra cima em busca de danos inexistentes.
E sentiu a nuca se arrepiar aos descer a vista e se deparar com Ciço, ali, bem na sua frente.
Os olhos vazios, a boca cheia de areia e as mãos estendidas, lhe chamando para uma última brincadeira.
Márcio Benjamin é autor de romances e livros de contos de horror rural e folclóricos, dramaturgo e roteirista de séries.
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