Investigadoras audazes, inventos retrofuturistas e mundos à beira do colapso estruturam a ficção steampunk de Nikelen Witter
Publicado em 10/08/2023
Atualizado às 11:29 de 21/08/2023
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, dedicado à literatura fantástica nacional, a curadoria e a apresentação são do escritor e pesquisador Enéias Tavares.
Entre aventuras de um ontem futuro, desertos nascidos da ambição humana e heroínas cheias de ímpeto e coragem: Nikelen Witter
Desigualdades sociais que assolam gerações de marginalizados. Maquinários tecnomísticos que tornam a distância entre o real e o imaginário cada vez menor. Heróis marginalizados pelo mundo, mas protagonistas de suas aventuras. Robóticos inteligentes, inventos que desafiam os limites da física e amuletos que dão acesso a mundos de imaginação e encanto. Cidades de vapor nas quais a neblina ora é charmosa, ora traço marcante da destruição do meio ambiente e do planeta. Entre diversos interesses, esses são alguns dos elementos que formam e forjam o steampunk, uma das divisões da ficção científica mais popular na atualidade.
Em termos objetivos, o gênero steampunk nasce ao lado do cyberpunk, ainda na década de 1980 nos Estados Unidos. Obras como Neuromancer (1984), de William Gibson, tornaram popular o “punk” – numa alusão ao movimento musical da década anterior – de verniz “cyber”, ou seja, uma visão de futuro distópico baseada em poluição ambiental, ruído tecnológico, realidades virtuais, degradação política e dominação de grandes corporações. Em resumo, é como se o cyberpunk tivesse previsto o mundo em que viveríamos quatro décadas depois.
Curiosamente, as primeiras obras steampunk nasceram um pouco antes, mas com o mesmo propósito – os temas acima estão presentes também em qualquer obra deste gênero – mas em vez de projetar um futuro hipotético, é uma literatura mais próxima do retrofuturismo, que busca imaginar como o ontem teria sido caso a nossa tecnologia tivesse evoluído de outro modo. Deste primeiro esforço, nascem as primeiras três obras steampunk: Morlock night (1979), de K.W. Jeter, Os portais de Anúbis (1983), de Tim Powers, e Homunculus (1986), de James Blaylock.
Levaria mais de trinta anos para o gênero chegar ao Brasil. Em 2008, um movimento de fãs daria origem ao Conselho Steampunk, uma iniciativa de Karl Felippe, Bruno Accioly e Raul Cândido. O conselho ainda está ativo, mesmo que de forma descentralizada, apoiando e fomentando ações e eventos como a SteamCon de Paranapiacaba, que em 2023 chega à sua oitava edição, hoje com organização de Adriana Cabral, nos dias 19 e 20 de agosto na vila ferroviária do interior paulista. Indiretamente, o conselho também atua no evento Steampunk Santos, este organizado pelo casal de artistas e entusiastas Alexandre Barbosa e Dani Escrivão.
Quanto à chegada da literatura steampunk ao Brasil, a primeira obra do gênero em nosso país data de 2009. Com organização de Gianpaolo Celli, Steampunk: histórias de um passado extraordinário (Editora Tarja). Nele, Celli e Alexandre Lancaster, Antonio Luiz M. C. Costa, Claudio Villa, Flávio Medeiros, Fábio Fernandes, Jacques Barcia, Roberto de Sousa Causo e Romeu Martins, explorariam histórias de aventura, suspense e drama. A antologia chegou a ser citada em The steampunk bible, livro de referência de autoria de Jeff Vandermeer e S.J. Chambers.
No ano seguinte, o brasileiro Gerson Lodi-Ribeiro e o português Luís Filipe Silva organizaram VaporPunk (Editora Draco), coletânea que propunha uma ambientação hibrida, ora nacional, ora estrangeira. Além dos organizadores, esse volume contaria com textos de Carlos Orsi, Eric Novello, Flávio Medeiros, João Ventura, Octavio Aragão, Jorge Candeias e Yves Robert. Em 2014, foi lançado VaporPunk II (Draco), dessa vez com organização de Fábio Fernandes e Romeu Martins e contos assinados por Cirilo S. Lemos, Dana Guedes, Jacques Barcia, Luiz Bras, Sid Castro e Nikelen Witter, a autora convidada deste mês na coluna Encontros.
Nos anos seguintes, outras publicações veriam a luz do dia, mesmo que sob a névoa do vapor ou da fumaça. Em 2011, Tatiana Ruiz organizou SteamPink (Estronho), uma coletânea que apresentaria apenas contos de autoria feminina. Em 2013, seriam publicados Retrofuturismo (Tarja), com organização de Romeu Martins, Deus ex machina: anjos e demônios na era do vapor (Estronho), organizada por Marcelo Amado, Cândido Ruiz e Tatiana Ruiz. Ruiz também organizaria no mesmo ano Erótica steampunk: por trás da cortina de vapor (Ornitorrinco).
No ano seguinte, a editora LeYa – então a casa de George R.R. Martin no Brasil, promoveu um concurso nacional para revelar um novo universo fantástico produzido no Brasil. A lição de anatomia do temível dr. Louison foi o romance vencedor, sendo publicado na Bienal de São Paulo de 2014, numa ação que contou com os integrantes do Conselho Steampunk, numa prova de que o steampunk havia despertado também a atenção de grandes casas editoriais. No mesmo período, o também sulista A. Z. Cordenonsi também estava às voltas com seu próprio universo steampunk, lançando Le Chevalier e a exposição universal (Avec). Além do romance, Le Chevalier também ganhou dois quadrinhos, esses com arte de Fred Rubim.
É nessa cena repleta de ideias singulares e ousadias narrativas que Nikelen se destaca como autora de grande inventividade e profissionalismo. Em um momento em que muitos autores criam pseudônimos autorais, Witter não esconde suas origens: “Claro que, no mundo literário, às vezes preciso dizer: não, isso não é um pseudônimo e sim, eu sou brasileiríssima (aliás, sou uma brasileira sem qualquer ligação ou fetiche por ancestralidade estrangeira)”, revela ela. Sua relação com a literatura começou na infância, antes mesmo de ser alfabetizada, quando passava horas sentada, olhando o nada e imaginando histórias e aventuras. Quando questionada, sua resposta já indicava a futura escritora: “Eu dizia que estava brincando. E estava. Não precisava de nenhum brinquedo além da minha imaginação”.
Devido aos gostos literários de seus pais, Nikelen cresceu rodeada de pulp-fictions, Perry Rodan, revistas Planeta, e livros de Cassandra Rios – uma das grandes vozes esquecidas do fantástico brasileiro do século XX –, essa com capas das quais a pequena leitora tinha alguma vergonha. Quando não estava olhando e sonhando livros, ela também se divertia com programas de TV, com destaques para séries como Jornada nas estrelas e As panteras. De sua mãe, Nikelen herdou o pragmatismo diário e do pai, o gosto por debater questões científicas e filosóficas, como evolução das espécies e vida extraterrestre.
Sua carreira literária começou em 2011, embora ela já tivesse escrito muito, lido vorazmente, participado de cursos de escrita e concursos literários. Até hoje, em seus doze anos de autora publicada, Nikelen já publicou sete livros, entre pesquisa histórica (Dizem que foi feitiço: as práticas da cura no Sul do Brasil)), contos em antologias, uma coletânea (Dezessete mortos), além de cinco romances. Desses, dois foram em coautoria (Guanabara Real e a Alcova da morte e Guanabara Real e o Covil do demônio), além de três romances solo: Territórios invisíveis, Viajantes do abismo e Silêncios infinitos. Por sua produção, ganhou prêmios Le Blanc, AGES, Odisseia, Bunkio e Açorianos, além de ser finalista do Jabuti com Viajantes do abismo quando o prêmio estreou a categoria Literatura de Entretenimento.
Viajantes do Abismo é um steamfantasy, uma mistura de steampunk com alta fantasia, no qual um mundo devastado pela exploração natural predatória está à beira da destruição. Nesse universo, o mundo está se tornando um grande deserto, num cenário que lembra Ursula K. Le Guin e o mundo épico de Duna, de Frank Herbert. O romance, que também alude ao famoso poema “O Tigre”, de William Blake, joga os leitores nos preparativos do casamento de Elissa Faina Till com Larius Drex, um homem que conseguiu se alçar a uma importante posição política neste mundo de areia, vapor e sufocamento – tanto físico quanto psicológico.
Com o envolvimento afetivo frustrado, Elissa se torna uma popular curandeira, mal sabendo que a guerra e os conflitos chegarão brevemente ao seu mundo, com ela se tornando uma figura importante da resistência contra o poder vigente. Fazem parte desse universo Tyla e Teo, que alguns leitores conhecem como Teodora Till e Atília Antônia. No conto escrito para a coluna Encontros deste mês, Nikelen nos presenteia com uma história perdida e inédita do mundo de Viajantes do abismo. Nele, vemos as duas jovens heroínas tendo de encarar os monstros que vivem no subterrâneo da terra degradada que poderia ser o nosso planeta.
Em Viajantes do abismo, tecnologia, magia e crise ambiental se misturam, numa história inovadora e potente, justamente pela inventividade da trama de aventura épica, investigação psicológica, intrigas políticas, grandes desigualdades e mistérios naturais e primitivos. Se o steampunk funciona como um gênero de ficção especulativa insuflado de crítica social, é aqui que a formação como historiadora de Nikelen fica ainda mais evidente. Seus livros unem a sensibilidade de uma grande leitora do passado a uma afiada visão de presente e futuro.
Historiadora de formação, professora por opção e escritora por vocação, Nikelen busca na carreira e no ativismo acadêmico muitas das ideias que leva para sua ficção. “A História é tanto minha profissão quanto minha maior inspiração”, revela ela, “mesmo quando minha literatura me leva a olhar o futuro, mesmo quando eu reinvento o passado”. Atuando como pesquisadora de temas feministas, seu trabalho na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) tem inspirado tanto homens quanto mulheres, tanto leitores quanto escritores, a buscarem na ficção estruturas que precisam ser modificadas em nossa sociedade. E desse viés acadêmico, nascem duas de suas principais bandeiras:
“Talvez dessa crença, de que história e filosofia importam por adicionar camadas à realidade, advenham duas coisas que nunca ficam de fora em cada uma das minhas atividades (seja como escritora, professora, historiadora, mãe, pessoa); falo do feminismo e da ecologia. Feminismo é para mim a busca pela igualdade e pela equidade; é a forma de ver o mundo, de ler as entrelinhas textuais de tudo o que se nos apresenta como realidade. Ecologia é nossa sobrevivência, simples assim: ou mudamos a relação com a Terra ou perecemos.”
Seja em história ficcionais retrofuturistas, como em Guanaraba Real, em visões de mundos futuros espaciais, como em Silêncios infinitos, em contos de horror e folclore, como em Dezessete mortos, ou então com visões de um futuro sombrio e ao mesmo tempo lírico e poético, como em Viajantes do abismo, Nikelen Witter tem explorado os limites do steampunk e de outros gêneros, nunca esquecendo do ativismo tão caro a ela e a tantos escritores do fantástico brasileiro atual. Afinal, se desejamos criar um futuro melhor, precisamos agora – com nossas mentes e com nossas ações – desmantelar as pesadas engrenagens mentais que forjam desigualdade e opressão. E isso a ficção de Witter faz como uma poderosa luneta de antevisão e modificação de tétricos cenários e mentalidades enferrujadas.
Tyla e Teo: Um Começo antes do Fim
― Você tem certeza sobre isso aqui?
Tyla estava no meio do nada. Só havia areia e calor. Um calor que mal a permitia pensar. Suas mãos seguravam firmemente, por meio de duas alças cobertas de borracha, uma imensa vara de metal. A ponta inferior estava encravada na areia que ia de sob seus pés até onde a vista alcançava. Em torno dela, num raio preciso de 15m, outras varas iguais formavam um círculo. Fora do círculo, cercada por uma parafernália mecânica, inventada por ela mesma, estava Teodora. Ela conferia obsessivamente planilhas em uma prancheta e ajustava botões em uma placa de cobre conectada a deusabeoquê. Por isso, Tyla precisou repetir a pergunta com um tom mais alto de voz.
― Teeeoooo, você tem certeza sobre isso aqui?
― Não.
Teodora não gritou, mas Tyla a ouviu perfeitamente e fez uma careta.
― Não? Você não é uma cientista? — berrou inconformada. — Sua irmã vive dizendo que você é um gênio.
Teodora voltou às planilhas e aos botões antes de responder.
― Sim, eu sou um gênio e, exatamente por ser uma cientista, é que não tenho certeza. Por isso estamos fazendo um experimento.
Tyla apertou os dentes e os punhos com força.
― Minha pergunta é se você tem certeza de que devo ficar aqui?
Teodora finalmente tirou os olhos da máquina ― que a essa altura já bufava com fumaça, vapor e considerável barulho ― e encarou Tyla. Não havia como negar que Teodora se parecia com a irmã, mesma cor de cabelo, os mesmos olhos. Porém, os cabelos eram crespos, eriçados e sempre presos. Os olhos estavam sob lentes grossas. E, para o choque de qualquer um, Teodora era muito, mas muito, mais arrogante do que Elissa.
― Explicarei para você de novo. ― Havia uma paciência incomum no tom de Teodora. ― Precisamos de mais do que exércitos e armas contra a Tríplice República. Precisamos de resultados. E, por resultados, eu entendo que temos de ter condições de sobreviver ao holocausto planetário.
― Não podemos lidar com uma coisa de cada vez? Primeiro vencemos. Depois cuidamos da nossa sobrevivência no planeta.
Teodora podia estar longe, mas Tyla a viu negar com a cabeça antes de responder em tom fatalista.
― Seria ótimo, mas não é assim que funciona. A degradação do nosso ecossistema não vai esperar que resolvamos todos os nossos problemas humanos.
Tyla não gostou da resposta, mas sabia que era real.
― Bem, você podia ter trazido outra pessoa que não eu. Digamos que estou mais para a ação do que para a ciência.
Teodora se imobilizou por um instante. Então, parecendo incomodada com a conversa em altos brados, colocou a prancheta com planilhas sobre a máquina e depois rumou decidida até o centro do círculo. Ao contrário de Elissa e Tyla, que haviam adotado as calças como única roupa compatível com um estado de guerra, Teodora mantinha as longas saias, mesmo que encimadas por coletes cheios de bolsos. Ou seja, visualmente, ela ainda se parecia com uma jovem de família abastada do período antes da guerra. Tyla precisava admitir que ambas as irmãs eram mulheres bonitas e atraentes, cada uma a sua maneira. Quando Teodora estacionou na sua frente, mesmo levando as mãos à cintura, seu tom era surpreendentemente calmo e gentil.
― Seth seria minha outra opção, mas ele ainda está sem uma das mãos, pois eu não terminei de regular a nova peça mecânica que fiz para ele. Quanto às outras opções... eu não confio o suficiente em ninguém.
Tyla ficou admirada.
― Você confia em mim?
― Sim ― o tom de Teodora indicava que era algo óbvio. Embora isso não parecesse assim para Tyla.
― Certo, afinal sua irmã confia em mim, você confia em mim.
Teodora franziu a testa.
― Não. Eu confio em você. Isso não tem a ver com a Elissa.
Teodora a olhava diretamente nos olhos. O que não era comum em se tratando dela. Isso deu um arrepio na espinha de Tyla, embora ela não pudesse de forma alguma qualificar se isso era bom ou ruim. Respirou fundo.
― Tudo bem. Apenas me diga exatamente o que pretende fazer com essa instalação aqui? Você havia falado sobre os vermes da areia.
Teodora voltou ao seu modo explicativo.
― Exatamente. Os vermes comem tudo o que é vivo e dejetam a areia. Então, não basta recuperar o solo, matar os vermes é a única forma de estancar a degradação. Veja, isso não vai ser fácil ou rápido. Não temos como envenená-los ou caçá-los e eliminar um a um. As informações que Seth me passou sobre a semeadura dessas criaturas pelo planeta são mais que assustadoras, por isso, vou precisar de testes para ver o que conseguimos.
Tyla voltou a fazer uma careta. Não estava totalmente convencida de que era ela quem tinha que estar ali ajudando a cientista maluca. Teodora foi perspicaz o suficiente para notar seu incômodo.
― Pense da seguinte forma — disse Teodora colocando a mão no ombro de Tyla — se eu conseguir o que pretendo, você poderá usar meu sucesso para recrutar e convencer mais pessoas a ficarem do nosso lado na guerra.
Tyla acabou por dar de ombros e concordar com ela.
― Muito bem, então. Agora me diga como pretende que isso funcione?
― Eu já expliquei e você não entendeu antes. Não pode somente confiar em mim?
Tyla olhou todos os equipamentos e suas mãos ainda segurando firmemente as abas de ferro cobertas com borracha. Observou seus pés, também enfiados em botas de borracha, e se lembrou dos rudimentos que sabia sobre eletricidade antes de responder.
― Em nossa atual situação, querida, só confiar, não basta.
Teodora piscou brevemente antes de explicar mais uma vez.
― Vou mandar um pulso eletromagnético por essas hastes de metal e fazer com isso uma armadilha que vai conectar os pulsos sob a areia e paralisar toda a rede neural do verme. Minha intenção é sustentar esse pulso por tempo suficiente para colapsar a estrutura da criatura e levá-la à óbito.
Tyla não era burra e sabia que Teodora estava simplificando. Contudo, o fato de não ter educação científica tornava tudo mais obscuro do que ela gostaria.
― Esse pulso que você falou, vai a qual distância? Quero dizer, como saberemos que funcionou?
― Na verdade, ele vai somente nesse espaço que delimitei aqui. Não vou amplificar seu alcance antes de ter certeza de que funciona.
― Maravilha! Então, diga, como você pretende atrair um desses bichos pra cá?
― Com uma isca viva.
― Ah! ― Então Tyla entendeu e tirou as mãos das alças da vara metálica no mesmo instante. ― O quê? Eu?
― Claro. O que achou? Eu até isolei essas alças para que você não sinta nada, nenhum choque, nenhum desconforto. Testei em mim mesma para garantir.
Tyla estava no auge da indignação.
― Também não vou sentir nada quando o verme me comer?
― O verme não vai devorar você ― replicou Teodora novamente muito paciente. Quase nem parecia com ela mesma.
― Sério? Eu vou ser a isca. Como pode garantir que seu peixe não vai me abocanhar?
― Confie em mim. Você não corre risco. Se eu perder o controle do experimento e o verme devorá-la, serei a próxima no cardápio dele. E se eu sobreviver, a Elissa vai acabar comigo por ter sido responsável pela morte da melhor amiga dela. Viu? Eu não arriscaria você, porque esse seria um risco para mim também.
Tyla ergueu os olhos para o céu sem nuvens e repassou tudo o que Elissa falava sobre a irmã. Não, ela não exagerou nenhum pouco. Tyla adoraria que ela tivesse exagerado.
― Pode parecer esquisito, mas saber que se eu morrer, você também morre, não é exatamente um conforto, sabe? Eu prefiro a opção em que nós duas ficamos vivas.
Teodora sorriu, para a surpresa de Tyla. Essa não era uma expressão comum nela.
― É a minha hipótese favorita também.
Reconhecendo que só podia ter perdido completamente o juízo, Tyla respirou fundo e voltou a colocar as mãos nas alças emborrachadas. Provavelmente, seu maior erro já tinha sido cometido antes, no dia em que ela concordou se envolver com as irmãs Till. Teodora pareceu satisfeita, mas quando Tyla achou que ela ia se virar para voltar às suas máquinas, a mulher caminhou até ficar às suas costas. Então, Tyla sentiu as mãos pequenas e o toque delicado delas em seus cabelos. Teodora estava cuidadosamente amarrando os crespos cheios e volumosos de Tyla.
― O que você...?
― É melhor diminuir a superfície de atrito. O ideal seria uma trança ou um coque, mas não temos tempo. Não sou muito boa com isso, então vou prendê-los da melhor forma. Seus cabelos são tão bonitos, não quero que se quebrem ou queimem.
Teodora usou uns três elásticos espaçados e com muito cuidado colocou a ponta do rabo de cavalo para dentro da gola da camisa Tyla. Seus dedos muito quentes encostaram na pele do seu pescoço e Tyla novamente sentiu um arrepio. Só que, dessa vez, ela soube qualificar como se sentiu. Foi bom.
A máquina de Teodora começou a emitir barulhos e tudo mais foi varrido da interação das duas.
― Vem vindo um deles ― Teodora berrou enquanto corria em direção à parafernália fora do círculo de varas de metal.
Tão logo ela se colocou diante do maquinário, começou a mexer nos seus botões e interruptores e Tyla pode sentir como se um zumbido começasse a correr por toda ela. Primeiro fraco e, então, progressivamente, mais e mais e mais forte. Ela segurou as alças emborrachadas com força. Sabia que o perigo, agora, estava em soltá-las.
― Ou em ser devorada com espeto e tudo ― murmurou apenas para si mesma.
Sob as areias, ao longe, um leve erguer de pó denunciava o movimento. O verme vinha se arrastando muito abaixo da superfície, embora não completamente invisível, se você estivesse esperando por ele. Contudo, imaginou Tyla, quando ele chegasse mais perto, iria mergulhar mais profundamente e então subiria, por baixo dela e, como um poço vindo das entranhas do chão, abriria a boca para devorá-la.
Tyla manteve a atenção na poeira superficial. Ela se aproximava. Estava mais perto.
Mais perto.
Bem perto.
Então, parou.
O verme havia mergulhado. Ele só voltaria a superfície sob o lugar Tyla onde estava. Para comer.
Tyla deu um último olhar pra Teodora e fechou as pálpebras com firmeza. Se era para morrer, ela não queria nem ver.
Então, ao invés de se perceber em um moedor de carne, como tinha imaginado, foi um pulso muito forte, como um punho direto no queixo, que ela sentiu. O safanão foi tão violento que suas mãos se soltaram e seu corpo foi jogado para longe tal qual uma boneca de pano sem qualquer controle sobre os membros flácidos. A sensação de voo durou o suficiente para que ela ordenasse ao corpo e ele se negasse a buscar equilíbrio no nada. Então, veio mais um soco. Duro. Pedregoso. Era ela batendo em milhares de cristais arenosos rasgando e perfurando a pele descoberta e a coberta também. Então, tudo parou.
Tyla perdeu a consciência. Soube disso quando seus sentidos retornaram e tudo doía de forma absurda. Ela abriu os olhos. Buscou se sentar. E todo o corpo reclamou aos berros. Duas mãos pequenas a ajudaram com enorme delicadeza. Teodora estava ao seu lado. À frente delas uma montanha de carne anelada e fétida saía para fora da areia.
― Você conseguiu!
― Nós conseguimos ― corrigiu Teodora.
Tyla respirou devagar, tentando fazer as dores diminuírem.
― Sua irmã me disse que você não gosta de dividir créditos.
Teo deu de ombros.
― Com ela não. Com você, eu não me importo.
Enéias Tavares é escritor, professor e tradutor, e tem trabalhado com projetos transmídia envolvendo a série Brasiliana Steampunk (brasilianasteampunk.com.br). Seus livros já foram publicados por editoras como LeYa, Avec, Arte & Letra e DarkSide Books. Sua curadoria em Encontros valoriza a produção insólita nacional, partindo do projeto Fantástico brasileiro (fantasticobrasileiro.com.br), sediado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Nikelen Witter é escritora, ensaísta, historiadora e professora na UFSM. Tem sete livros publicados: a pesquisa histórica Dizem que foi feitiço: as práticas de cura no Sul do Brasil – 1845-1880 e os romances Territórios invisíveis, Guanabara Real e a alcova da morte, Viajantes do abismo e Guanabara Real e o Covil do Demônio, além da coletânea Dezessete mortos. Seu mais recente romance é Silêncios infinitos, da coleção Dragão mecânico. No momento, está com mais dois livros no prelo: Todos aqueles sapatos vermelhos, livro de ensaios sobre literatura e feminismo, e a coletânea As aventuras de Miss Boite e outros contos.
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