Os poemas do autor reivindicam o estatuto de orikis e, nessa direção, se colocam para além da literatura em seu sentido ocidental
Publicado em 14/04/2022
Atualizado às 18:01 de 19/04/2022
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.
Enquanto escrevo esta ligeira apresentação da literatura encantatória de Thiago Costa, cai uma chuva vibrante em João Pessoa. A água em seu ciclo de perfeição busca caminhos e penetra no pedaço de terra que tenho em meu quintal, fazendo subir o cheiro bom de mato molhado. Verdeja por aqui. Trago Obé em minhas mãos, o primeiro livro de Thiago, publicado em 2021 pelo selo da Festa do livro internacional da Paraíba (Flit Edições). Tal qual o seu título indica – o nome significa “faca” na liturgia do candomblé –, o livro reúne uma série de poemas e orikis que, assim como a chuva que se faz paisagem sonora deste texto, provocam cesuras em nosso tempo-ordem-linear das coisas. O filho de Odé, já atuante no campo das artes visuais, lança sua flecha e estreia como escritor num gesto que credita potência à linguagem verbal, se, contudo, alicerçada nos volteios, nas elipses e magias da oralidade afro-brasileira. Desse modo, ainda que possamos constatar no conjunto de poemas que configuram o livro experimentações que derivam de um diálogo com certos recursos estéticos da tradição literária canônica brasileira, o que se destaca são os textos que reivindicam o estatuto de orikis e, nessa direção, se colocam para além da literatura em seu sentido ocidental.
Os orikis orixás que aqui compartilhamos devem ser lidos, portanto, como manifestações poéticas que têm o saber de encantar, que nos convocam a (re)conhecer a beleza e o poder das forças da natureza na orquestração de nossas existências, no direcionamento de nossos destinos. Como suplemento dos poemas de Thiago que dão a ver a dureza e a solitude do trajeto de artistas negres no Brasil, seus orikis, em consonância com a origem africana desse gênero, elaboram imagens que apresentam e reverenciam o universo cosmológico do candomblé e dão corpo à certeza de companhia que a fé em Orixá traz. Os textos são cortantes, mas não ferem – ainda mais – esse nosso corpo combalido pelas guerras cotidianas. Ao contrário disso, eles cortam e remodelam a linguagem para que nos alimentemos do vigor criativo que generosamente esse nosso irmão nos oferenda, assim como a água da chuva que, ao sulcar o pequeno intervalo de terra do meu quintal, rega e cria passagem para vida nova brotar.
poemas de Obé
pediu vela preta
ficou na retaguarda
abriu a porta
nas encruzilhadas
do meu corpo
por sete vezes
repeti seu nome
menino travesso
boca de tudo
mensageiro do atlântico
falange oceânica
linha dos sete mares
pai da calunga maior
traçando correntezas
chove no teu chão
ao redor do sal
a onda mora
dono dos naufrágios
ouves o silêncio do mar
na escuridão da clareza
continentes deslocados
catimbos cruzados
ronda marítima
nós desfeitos
o mar aponta
para as âncoras
do agora
segredo me contou
com seu ofá atirou
traduziu as folhas
constelações desenhou
nosso destino encontrou
olho
preto-boi
penacho
vermelho-arara
dançou aguerê
forjou a lança
mostrou como se dança
ode a odé
odé arolê
curumim do ayê
caçador de mim
alfazema no olho
guiné no adoxo
oxóssi
sou teu cavalo
tua ave de aço
teus olhos na cidade
a cura é um lugar de passagem
igbin
igbin
igbin
toca me toca
é sexta em mim
e
pa
babá
epa ba
epa
e
xirê final
lanterna final
afinal
por que te procuro
no final?
igbin
igbin
igbin
bastão
caramujo sabre
estrela de oito pontas
ajagunã
obocum
olocum
dacum
jobocum
trovejou na noite vermelha
teu machado aquecido de certeza
cruzou ori
mudou odú
te vejo pela sombra
na réstea da porta
quanto tu chegas
sinto tua quentura
de olho aberto
no clarão
teu sino soa
xangô pilão
quiabo solidão
aganjú kabiesilé
tuas quartas me acendem
mesmo quando digo não
no avesso de ifá
do ventre de iê
filho do fogo do mar
tuas pedras me olham
guardam todos os segredos
kaô kaô kaô
senhor nagô
ilá de vulcão
primeiras primaveras
presságios agalopados
florescem os ibejis
cosme e damião
adoçam com mel
o nosso não
banho de folha
cocada pronta
nem o bicho pega
nem a yá segura
pega um erê
pra tu vê
Thiago Costa é artista transdisciplinar. Utiliza a poesia, o cinema e as artes visuais em seu trabalho. Entre seus interesses estão a insuficiência da linguagem, o desencanto, a memória, a invenção. Em literatura, lançou Obé; em cinema, roteirizou e dirigiu os curtas Santos imigrantes (2018), Axó (2019), Visitas (2020), Calunga maior (2021) e Axé meu amor (2022); nas artes visuais, é artista residente da associação cultural Pivô – Arte e Pesquisa e foi exibido em exposições individuais e coletivas. Também atua como curador – por exemplo, da mostra Moã de cinemas negros e indígenas, da qual é idealizador. No ciclo 2019-2010 do programa Rumos Itaú Cultural, foi selecionado com o projeto Igbákì.
Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani e Yeté, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).