Poemas da autora explicitam os traços significativos de sua escrita, que trazem a morte pela perspectiva africana, entendendo-a como passagem, e não como fim
Publicado em 11/08/2022
Atualizado às 15:18 de 12/08/2022
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.
Nas últimas semanas, me encontraram obras recém-lançadas que propõem belas e engenhosas formulações a partir da experiência do luto. Trançando autobiografia e ficção, Anelis Assunção estreou na literatura infantil com Serena finitude (o livro foi publicado em junho pela Editora Veneta e tem ilustrações primorosas de Aline Bispo), uma narrativa lírica que, sob a perspectiva de duas pequenas irmãs, investiga os ciclos de vida e morte da natureza, incluindo aí o humano. Como pano de fundo da obra, vislumbramos a morte de Serena Assumpção, irmã de Anelis e a quem ela dedica o trabalho.
No mesmo ano, a artista-escritora Aline Motta deu a ver o seu A água é uma máquina do tempo (Círculo de Poemas, 2022), em que a já conhecida e instigante pesquisa da autora sobre o arquivo da história social da escravidão no Brasil, bem como sobre sua própria genealogia, ganha novos contornos e converge num texto híbrido que transgride as fronteiras dos gêneros literários. No processo de elaboração da imagem de sua constituição inter-racial – a qual por contiguidade oferece um vislumbre do perverso histórico de configuração das populações negras no Brasil –, Aline aciona a morte de sua mãe (cuja inscrição se dá em performance no texto por meio de uma agenda pessoal e de uma fotografia) como núcleo de tensionamento de seu exercício de fabulação crítica. Trajetórias negro-brasileiras singulares e coletivas são alinhavadas pelos detalhes pungentes que a memória produz.
De modo a compor essa ligeira aproximação e fortalecer um espectro de obras que constituem o que tenho chamado de “poéticas do pertencimento” (segue em curso um artigo meu sobre esse conceito), sublinho o livro também de estreia de Maria Dolores Rodriguez, nossa escritora convidada nesta edição da série. Procurem Luísa no Mercado de Arte Popular (Estúdio Arumã), publicado em 2021, um ano antes dos títulos supracitados, nos convida a reter a presença de quem já não está. No livro-objeto, Maria Dolores não apenas recorre às memórias afetivas que possui de sua mãe, Luísa, para a criação poética, mas também faz desse arquivo uma obra que materialmente nos permite adentrar no âmbito recriado de sua intimidade familiar. O livro é, assim, composto de fotografias, documentos, diários, poemas e mapas que, dispostos numa pasta, se oferecem aberta e fragmentariamente a múltiplas leituras.
A vida da espanhola Luísa é rememorada e celebrada pela filha com foco na sua atuação como vendedora na loja da família situada no Mercado de Arte Popular de Feira de Santana, na Bahia. Esse espaço, aliás, com sua potência de expressão das artes e sociabilidades negras, se desvela como locus fundamental para a formação subjetiva da dicção lírica da autora. Os poemas que apresentamos aqui – “Jinká”, “Proibido sonhar”, “Herança” e “Para lobo damasceno” – explicitam traços significativos da escrita de Maria Dolores. São poemas comoventes que significam a morte por uma perspectiva africana, isto é, entendendo-a como passagem, e não como fim. Poemas que, em posição de esquiva – para fazer referência ao importante universo da capoeira para o livro –, versam sobre o amor.
O título do livro sugere a busca por Luísa e, na aventura do encontro com a obra que nos é oferecida, descobrimos que ela pode até existir como índice nos vários suportes apresentados. Contudo, é no corpo da palavra de Maria Dolores que sua mãe sobrevive. Nesse belo livro, a filha gesta a mãe e, sendo essa mesma filha semente plantada pela mãe, ela encena sob nossos olhos a espiral sagrada da ancestralidade que vibra como nova semente no ventre criativo dessa autora.
Poemas selecionados
Jinká
quando Iemanjá pariu minha mãe
colocou em seu seio o leite da doçura
mas também soube fazer nela
uma couraça de sal e silêncio
ninou-a debaixo de ondas
de segredos
bordou-lhe a pele com escamas
de sonhos e utopias
nasceu tão branca por um triz
gostava mesmo de cantar
requebrar mesmo sentada
fazer grandes caldeirões de comida
e esperar a visita de quem aparece
de surpresa e sem anúncio
soltar palavras como anzóis
pescar o sentimento mais escondido
matar a fome que tinham de uma mãe
quando Iemanjá pariu minha mãe
ordenou que sua vida parecesse com
a história de uma grande senhora
um castelo de areia,
seu reinado aquoso
sus singelas sonrisas
o consolo do seu abraço
uma orquestra de corais
fábulas
orações
mandingas de pescadores
canto de sereia
quando Iemanjá pariu minha mãe
peixinhos coloridos pulavam
ao redor do mundo
e seus saltos tilintavam marulhadas de beijos
algas marinhas
estrelas do mar
primeiro reflexo nas águas da primeira lua cheia
quando Iemanjá pariu minha mãe
ejá
dibô
ebôya
rosas brancas
quando Iemanjá pariu minha mãe
Proibido sonhar
sempre que venho
a Feira de Santana
penso:
nunca mais vou voltar
aqui
de novo
um emaranhado
de tecidos ríspidos
me servem de travesseiro
e embalam todas as
madrugadas
em que, vigilantes,
poemas zumbem
em meus ouvidos
destreinados
poemas são coisas pequenas
impossível sonhar
em um lugar
onde uma mãe não
habita mais
Herança
não me reconheço em ti pela cor da tua pele
nem dos teus cabelos
não é a cor da tua íris que me lembra quem sou
mas o que está solapado por detrás do teu olho
mas o que a tua pele não disfarça,
contrariando a imposição que carrega,
o que os teus cabelos não podem revelar
a tua parcela que assenta a minha presença
as parcelas de ti que revelam a minha existência:
I) o modo do teu olhar
II) o jeito como as tuas palavras me ordenam
III) como a tua presença me compõe
e me projeta no que ainda não cheguei a ser orientando o tempo com que me decretas
IV) a maneira do teu corpo afirmar, desde 1989,
que todo ele me gesta
me atirando para fora de ti contra a frieza do mundo
V) o calor que emanas e que me mostra
que, no fundo daquilo em que em ti não estou,
há uma voz que ninguém capta,
mas que me legitima
e vai dizendo de mim antes de eu chegar
Para lobo damasceno
poemas são coisas pequenas
grandes são os sustos
os desenlaces
das ondas
que mordem nossos pés
sedentos de sal
poemas são coisas pequenas
grande é o Filhos de Gandhy
grandes são as cobras corais
das trilhas
de qualquer lugar
recôndito
na chapada diamantina
poemas são coisas pequenas
grandes são a vontade,
a fome,
a gana
Maria Dolores Rodriguez é poeta, artista visual, crítica literária, professora e pesquisadora. Doutora e mestra em Teorias e Críticas da Literatura e da Cultura (UFBA). Integra o conselho editorial do Selo DasPretas (Editora Segundo Selo). É autora do livro-objeto Procurem Luisa no mercado de arte popular (Estúdio Arumã, 2021) e uma das organizadoras dos livros Feira de Santana negra (Editora Segundo Selo, 2021) e Rasuras epistêmicas das (est)éticas negras contemporâneas (Organismo Editora e Grupo Rasuras, 2020). Participou, dentre outras publicações, da Revista Organismo (nº 10, 2022), da coletânea Poesia hoje: negra (p-o-e-s-i-a.org e UNICAMP, 2021) e da reunião de crônicas De bala em prosa: Vozes da resistência ao genocídio negro (Elefante Editora, finalista Jabuti 2021).
Fabiana Carneiro da Silva, neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani e Yeté, tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (DLCV/UFPB).