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“Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea”: Aline Rochedo Pachamama

A literatura de Aline Pachamama se apresenta como um convite-manifesto para que aprendamos a ouvir a floresta

Publicado em 13/01/2022

Atualizado às 13:19 de 11/03/2022

A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

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Saúdo as forças dos que nos leem e os bons ventos que acreditamos que este novo ano seja capaz de trazer! Em nossa série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea, ao longo de parte de 2021, buscamos impulsionar o movimento de autoras e textos que nos incitam a reconfigurar as sensibilidades que foram acachapadas pela colonialidade e por sua lógica dicotômica e homogeneizante. Seguimos em atenção à demanda radical pelo reconhecimento do Brasil como território multirracial e pluricultural e, cientes da relevância do discurso literário na constituição do projeto de outro país, acolhemos em nossa roda a produção de Aline Rochedo Pachamama, originária do povo Puri da Mantiqueira.

Aline é historiadora, ilustradora, educadora, editora e escritora. Dirige a Pachamama Editora e por ela publicou as obras Pachamama (2016), Guerreiras (2018), Taynôh (2019) e Boacé Uchô (2020). A literatura de Aline Pachamama se apresenta como um convite-manifesto para que aprendamos a ouvir a floresta. De modo poético e dando a ver a exuberância da vida que reveste a Serra da Mantiqueira, Pachamama nos lembra de que a história está na terra e de que somos feitos de terra. Sendo assim, ainda que a rasura dessa textualidade-terra-floresta seja uma das principais estratégias de dominação e subalternização dos povos indígenas e negros, sua produção afirma que é possível reacender os vínculos com a ancestralidade e (re)aprender o cultivo de nós mesmos como seres pertencentes a Abya Yala.

É profundo e revolucionário o alcance dessa palavra que se alimenta do pinhão e tem a araucária como anciã maior. É também libertador o seu potencial, que encena outras paisagens e categorizações literárias. Deixamos, assim, vocês na companhia da força narrativa da Serra Mãe das Águas, a qual se pauta pela existência, e não pela falta.     

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Fotografia da escritora Aline Rochedo Pachamama. Ela é uma mulher indígena, integrante do povo Puri da Mantiqueira. Está sorrindo para a foto, à sua frente seus livros estão de pé. Atrás dela se vê árvores e céu azul.
Aline Rochedo Pachamama (imagem: divulgação)

por Aline Rochedo Pachamama

Ancestralidade 

Sou fruto de uma explosão de estrelas. Correm em minhas veias essas partículas de luz que vagaram pelo Universo Pachamama. Gratidão é o nome desse movimento. Generosidade é seu princípio. E há amor em todo o processo – Macapom, na língua puri. Cheguei perto de planetas conhecidos e desconhecidos e de galáxias distantes. Depois, as partes de mim foram se atraindo novamente. Mas não todas. Algumas se expandiram e chegaram a outros seres: mpó (árvores), marú (gavião), ponan (onça) dieh (você). Nasci plural; então, somos. A floresta Mãe, eu, você e nossas ancestrais. Somos o silêncio que antecede a chegada da primavera. E a quietude da chuva fria na aurora. Mas também somos a fúria da tempestade e o grito enérgico do trovão-raio que, ao bater na superfície da terra, ecoa: “Germinem, sementes!”. E elas, as sementes, irrompem de sua casca confortável e se lançam no encantamento da vida. Assim como nós.

Na vida há lutas, cansaço e enfrentamentos. Há colonizadores que permanecem dizimando os nossos. E há uma força que espirala em nossas veias, fruto da memória latente dos nossos antepassados. Somos plurais porque estamos ligados à imensa teia da vida na Mantiqueira, a anciã das montanhas, a nossa cordilheira, a serra mais antiga deste planeta. De nome indígena do tronco tupi, “Mantiqueira” significa “gota de chuva”, por meio da junção de Amana (chuva) e Tykyra (gota), conhecida também como “a serra que chora chuva”. Chora chuva, chora cachoeira, chora abundância, chora por parir vidas, chora em bichos de mil cores, chora de sorrir arco-íris, chora por mim e por você. Chora por ser mulher indígena. Para nosso povo Puri, teria o nome de Inhã Uchô Nhãmã – Serra Mãe das Águas.

Inhã Uchô eu me encanto, Mãe Terra. Mantiqueira é a nossa anciã de 2,5 bilhões de anos ou mais – uma anciã cheia de vida e sabedoria. Maciço rochoso, de terras altas, entre mil e quase 3 mil metros de altitude; nela, quase podemos tocar as nuvens. Com ela, fecundamos vida: cada inseto, que transmuta e se refaz em nova cor; a folha, que cai e agora é raiz; a flor, que cumpriu seu percurso e amanheceu fruto; a formiga, que ultrapassa as expectativas e carrega algo cem vezes mais pesado que ela mesma; o tutù (tatu), que abre caminhos; o Marú (gavião-terra), com seu voo decidido e preciso; a shahmûm (cobra) e o sagrado feminino; chindêda (beija-flor), que encanta com seu voo mágico e nos estimula a encontrar a doçura e a alegria de cada situação; as águas da Mantiqueira, de que tanto precisamos; todos fazem parte dessa teia.

A vida é para o encontro. E estamos interligados por meio de sementes, raízes, folhas, flores, frutos e estrelas. Há uma árvore que vê tudo isso acontecer: a araucária. Tão antiga quanto a Mantiqueira, tem coração-raiz que guarda memórias milenares. De crescimento processual e grande longevidade, como anciã, pode ultrapassar 1,6 mil anos. Atinge a maturidade reprodutiva entre 100 e 300 anos de vida. A semente da araucária é o pinhão (que não se encerra em fruto), alimento essencial para a fauna nos dias de inverno e, também, para os indígenas e os não indígenas. Ao tocar sua casca grossa e rachada, ao ver seus galhos pontiagudos e escamosos, seu tronco longo, sentimos seu pulsar e as memórias que guarda. Sua história genética remonta a 240 milhões de anos, o que nos permite, ao caminhar por suas florestas, uma experiência de ancestralidade.

Quando eu era pequena, gostava de me deitar perto da araucária, que chamo tsatêh, pôr a cabeça em seu tronco e ouvir as batidas do seu coração. Assim, aprendi palavras do idioma puri. Depois que cresci, além disso, costumo enterrar meus pés na terra, como se eles fossem parte de suas raízes. Povos originários da Austrália me procuraram um dia desses porque, nesse país, os originários também se alimentam do pinhão da araucária, e me convidaram para um intercâmbio. Nesta floresta, olho o céu deitada na Pedra Sonora. Ele é um amar de contos do mar verde em que me encontro. Um grafismo iluminado, que dança em imagem de tempos passados. Palavras de ensinamento, rezas, curas e humildade. Na Pedra dos Encantados, Sonora de cantos abrigos, me disse o mais sábio parente: “Certo dia, uma liderança Puri, descansando no local, recebeu no pescoço uma mordida de animal sem nome. Impossibilitada de gritar para pedir ajuda e sentindo que ia morrer, ajoelhou-se junto à pedra, deixando seu machado cair. A pancada emitiu um som que ecoou pela encosta. Ao constatar o fenômeno, meu parente Pachamama bateu 98 outras vezes com o machado. Curiosos com o ruído que ouviram, seus companheiros não tardaram a chegar ao local a tempo de salvá-lo”.

Quem bate na pedra e provoca seu som bem-vindo é protegido de todos os males. E você pode conhecê-la comigo, se quiser. Mantiqueira, nossa mãe, seu corpo-território é nosso povo. Foi nessa terra que nossas antepassadas caminharam valentes e acolheram tantos. Aqui plantaram sementes. Fizeram seu canto sagrado, alimentaram os seus com farinha de pinhão. Teceram cestos, redes e sonhos; fizeram bonecos à mão. Mas, um dia, eles chegaram. Nesse dia, naquele ano, nesse momento, capturaram nossas mães, atravessando corpo e alma, disseminando doenças e silenciando suas lembranças. Prenderam-nas em fazendas que construíram com nossas árvores sagradas e areia dos rios. E a nós foi instruído que corrêssemos. Corremos tanto, como se fugíssemos da morte e, ao mesmo tempo, quiséssemos alcançar uma estrela para acalentar a dor. Sem pudor, o homem colonizador caminhou. Sem repreensão nem correção, o homem colonizador caminha. O terrível homem colonizador!

Que nos dias atuais não se faz em cor de pele ou nacionalidade, mas na atitude de cada humano diante da vida. Ele nos invade. Invade a terra e suja de óleo e ódio nosso território; transforma nossas florestas em pasto. E caça por vaidade os animais tsatêh da floresta. Nossos irmãos. Proíbe-nos de falar nossa língua, e parcela de nossos cantos é esquecida. Repete palavras como progresso, civilização e economia. Quer vender até o ar que se respira. Escraviza a vida, mudando o nome de métodos destrutivos: servidão, escravidão, mercantilização, opressão, capitalismo! Cria muros entre a biodiversidade e abismos entre nós. Gente autoritária impõe regras e não há liberdade. Ausência de conhecimento quando não há afeto pela vida. Como seria bom se os muros não existissem.

Chamamos anciãs e anciões para nos instruir sobre como semear possibilidades de esperança e neutralizar o colonizador. No aprendizado da escuta, clamamos também à floresta. Silenciamos. Pausa. Metlon Mbaima! E as mulheres gritaram: “Abya Yala! Pachamama! Inhã Uchô! Tschoreh Tatak!”. Cantamos na madrugada e o vento responde brisa. Sorrimos juntas e raízes se fazem árvores frondosas. Flechamos com palavras lúcidas pessoas com bons sentimentos, as quais se tornaram nossas aliadas. E de nossas mãos surgem abelhas solidárias, jataís e mandaçaias. Tudo silencia e apenas a floresta fala.

O colonizador está só. Ele está só. E a solidão é estratégia certeira para interromper o processo destruidor. Ele está só. Ele não tem ninguém. Nele não há ninguém. E o sentimento sem raiz no amor se desfaz. Você não acredita mais nele. E eu falo a você, tsatêh. Você me escuta nas suas raízes mais profundas de ancestralidade e de relação com a terra. Falo a você, na história de sua avó, bisavó e mãe originária. Honre sua ancestralidade. Semente que recebe agora, no convite que plantei na terra vermelha do seu coração.  

 

Há uma floresta em mim

E uma busca. 
Há o som de um canto.
E um rio.
Há vontade de brisa.
E luz branda. 
Há um perfume de vida, de verde cor.
Há ausência de crenças opressoras, 
E, por isso, há liberdade. 
Há o presente.
Há ancestralidade.
Há possibilidade. 
Há animais pequeninos e de mil cores.
Há os que se confundem nas pétalas e folhas.
Há um sorriso em cada ser vivo.
Nesta floresta, há inquietações e quietudes. 
Há generosidade e humor. E amor. E você. 
Há um para sempre em mim.
Tatak Tschoreh. Macapom Mantiqueira. Macapom Inhã Uchô.

Os textos acima integram o livro:

PACHAMAMA. Aline Rochedo. Pachamama, a poesia é a alma de  quem escreve. Rio de Janeiro: Pachamama Editora, 2ª edição, 2021.

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Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri) é mulher originária do Povo Puri da Mantiqueira. Historiadora, escritora e ilustradora. Doutora em história cultural pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), mestre em história social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Idealizadora da Pachamama Editora, onde elabora e executa ações em prol da valorização e preservação de Línguas dos Povos Originários, bem como divulgação de suas culturas a partir da história oral e memória, principalmente, de mulheres e anciãs.

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