Mundos futuristas, enredos fantásticos e dramas humanos estruturam a ficção científica de Sandra Menezes
Publicado em 13/06/2023
Atualizado às 19:19 de 05/07/2023
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, dedicado à literatura fantástica nacional, a curadoria e a apresentação são do escritor e pesquisador Enéias Tavares.
Entre futuros luminosos, sonhos tecnológicos e heroísmos improváveis: Sandra Menezes
Mundos futuristas recriados a partir dos medos e sonhos do presente. Seres fantásticos que unem corpo, sangue e máquina. Dispositivos espaçotemporais que suspendem os limites do aqui e do agora. Visões de futuros utópicos e distópicos que revisitam medos e desejos. Tramas inovadoras que deixam no leitor a sensação de que o mundo que conhecemos está prestes a mudar, para o bem ou para o mal. Será que deixaremos nosso planeta, nossa sociedade e nossas utopias se dobrarem ao progresso, à ambição e ao comércio predatório?
Esses são alguns dos temas que perpassam a ficção científica, um dos gêneros mais louvados por leitores de diferentes idades e backgrounds. Há muito tempo que a imaginação humana tem unido problemas sociais e reais aos riscos/benefícios da tecnologia. Desde o século XIX – com a obra-prima de horror e ciência Frankenstein (de Mary Shelley), a antevisão de um futuro horrendo de A máquina do tempo (de H.G. Wells) e a exploração do nosso planeta em Viagem ao centro da Terra (de Júlio Verne) –, a literatura especulativa tem dado vazão aos nossos mais insanos projetos e estudado seus muitos perigos.
E isso não é tema novo, uma vez que a expulsão do Éden da narrativa bíblica, o roubo do fogo por Prometeu na tradição clássica e a lenda europeia de Fausto e seu pacto por mais saber, entre outras histórias, são variações do mesmo problema: os limites do conhecimento e os perigos daqueles que se julgam acima da moralidade quando o assunto é obter respostas, controlar a morte ou, então, dominar a natureza e fazer dela nosso vassalo. Nesse sentido, os problemas ambientais que se tornaram endêmicos na modernidade ganham na ficção científica a exemplificação perfeita do gênero como ilustração do nosso presente.
No século XX, cenas luminosas ou sombrias, reflexivas ou críticas, foram dos robóticos de Isaac Asimov até os replicantes de Philip K. Dick, da ferida aberta do patriarcado na ficção terrífica de Margaret Atwood até os horrores da escravidão na ficção de Octavia Butler. Isso para citar apenas alguns nomes da produção em língua estrangeira, que também poderia receber autores como Aldous Huxley, Anthony Burgess, Frank Herbert, Ursula Le Guin, Ray Bradbury, Madeleine L’Engle e Kazuo Ishiguro. E, se isso vale para estrangeiros, vale também para o Brasil, um país que tem uma longa tradição de ficção científica, embora por vezes esquecida.
Doutor Benignus, de Augusto Emilio Zaluar, foi publicado em nosso país em 1875 e é considerado por muitos o fundador da ficção científica nacional. Inspirado em Júlio Verne, Zaluar explora em sua obra, de um lado, o fascínio com a ciência e a astronomia e, de outro, o distanciamento do protagonista de seus familiares e da própria realidade. A ele unem-se Emília Freitas e o seu A rainha do ignoto, de 1899, cuja dimensão marítima e justiceira, de uma camarilha feminina que singra a costa nacional, também homenageia o autor francês.
Desde então, diversos autores e autoras têm reinventado quem somos e advertido sobre o que poderemos ser em histórias que usam a ciência para acessar dramas existenciais, fábulas de horror e medo ou, então, utopias nas quais o perigo está na concretização das ambições humanas, mesmo que estas sejam à primeira vista positivas e benignas. Na primeira metade do século XX, destacam-se no Brasil nomes como Jeronymo Monteiro, André Carneiro, Gastão Cruls e Menotti Del Picchia, em livros como A cidade perdida, A Amazônia misteriosa, Amorquia e A República 3000. Já na segunda metade, a produção fervilhante deu origem a uma divisão em três ondas. Na primeira, que vai até a década de 1970, destacam-se Fausto Cunha e Rubens Teixeira Scavone, além do supracitado André Carneiro.
Na segunda onda estão autores como Roberto de Sousa Causo, Finisia Fideli, Jorge Luiz Calife, Gerson Lodi-Ribeiro e Carlos Orsi. Quanto à terceira onda, nomes como Camila Fernandes, Romeu Martins e Cristina Lasaitis são comumente citados e celebrados. Além desses, que também possuem produção crítica – como ocorre com Causo, autor do primeiro estudo crítico sobre nossa literatura fantástica entre os anos de 1875 e 1950 –, destaco nomes de autoria feminina que foram centrais para o desenvolvimento da ficção científica em nosso país.
Nessa seara, temos a carioca Adalzira Bittencourt, autora do romance Sua Excia: a presidente da República no ano 2.500 (1929), que apresenta um Brasil governado por uma mulher. Dinah Silveira de Queiroz também se destaca nesse contexto, sobretudo pela coletânea de contos Eles herdarão a Terra (1960), na qual contrapõe seres como alienígenas e robôs a seu impacto na sociedade humana. Outros nomes que merecem atenção são Zora Seljan, Lúcia Benedetti, Stella Carr e o fenômeno editorial da década de 1970 Cassandra Rios, autora que escreveu diversos livros de temática violenta, fantástica e erótica, isso em meio à ditadura.
Esses e muitos outros nomes e obras fizeram a ficção científica constar entre os gêneros mais populares da literatura brasileira. Essas vozes, masculinas, femininas, pretas e LGBTQ+, prepararam o caminho para uma produção frutífera que até hoje nos desafia a pensarmos o amanhã através do hoje. Entre essas vozes contemporâneas atuais está a carioca Sandra Menezes, autora que tem criado histórias nas quais a crítica social convive com cenas fantásticas, tecnologias insólitas e aventuras existenciais e morais.
Natural de Vaz Lobo, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Sandra é apaixonada por ficção científica desde a infância. Ela cresceu assistindo a séries como Perdidos no espaço, Os Jetsons e Túnel do tempo. Sua referência era a oficial Uhura, vivida por Nichelle Nicols na versão original de Jornada nas estrelas. Adulta, formou-se em comunicação social nas Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha/RJ) e fez pós-graduação na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB/MS). Depois disso, fez carreira como jornalista, roteirista e diretora de documentários para a televisão. Além dessa formação, Sandra atua na música, com um CD solo com músicas de autores de Mato Grosso do Sul. Desde o final dos anos 1990, abraçou o canto lírico, interpretando trechos de óperas e obras do repertório de câmara.
Mas é na literatura e na ficção científica que ela tem dado vazão à sua criatividade. Sandra vem se dedicando à escrita há cinco anos, período em que foi coautora em antologias como Negras crônicas (Editora Villardo), Re-existência (Cartola Editora), Escritas femininas em primeira pessoa (Oralituras), Afrofuturismo – o futuro é nosso (Editora Kitembo) e Vozes intergalácticas (Editora Nebula). Em 2020, fez parte da formação literária Flup digital, que resultou no livro Carolinas, no qual assina o conto “Irmãs”. No ano anterior, participou do Laboratório de Narrativas Negras para Audiovisual da Flup/Globo.
No caso da motivação pela escrita, quando criança Sandra passou a registrar em diários o seu cotidiano com a família, os amigos e a escola. Contudo, tanto no mundo das aventuras que acompanhava quanto nos quadrinhos, nos livros e na TV, sempre sentiu falta de personagens com os quais pudesse se identificar. Então, assim como aconteceu com a grande referência da literatura negra de ficção científica afrofuturista, Octavia Butler, Sandra lançou-se na criação de aventuras de ficção científica com protagonismo negro.
Em sua literatura, ela busca referências de raízes africanas que solidificaram a cultura afro-brasileira para fortalecer identidades negras e alargar o repertório nacional de entretenimento com esse protagonismo. Seu intento é povoar seus universos ficcionais de heróis e heroínas que inspirem os leitores, sobretudo aqueles que admiram boas histórias.
Esse é o caso do seu romance afrofuturista O céu entre mundos (Malê Editora), com o qual foi finalista do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Romance de Entretenimento e vencedora, no mesmo ano, do Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica, em Narrativa Longa de Ficção Científica. Na obra, viagens espaciais se unem a realidades bem brasileiras, numa trama que funde a especulação futurista e a espiritualidade mística ao acompanhar a aventura de Karima e o planeta Wangari, último refúgio dos seres humanos após a destruição da Terra.
Para a coluna Encontros, a autora nos presenteia com um conto inédito, intitulado “Expansão”. Aqui, podemos ter uma mostra do potencial da ficção científica nacional ao criar outros mundos, seres e elementos narrativos inovadores, além de podermos acessar a sensibilidade e a inventividade de Sandra, uma criadora de novos mundos futuristas, tecnológicas realidades alternativas e esperanças de reencontro com o passado e de um futuro que todos nós, autores e leitores, ainda precisaremos construir. E talvez este seja um dos motes mais importantes da ficção científica: convocar-nos ao sonho e à ação, ao delírio e ao enfrentamento, ao assombro e ao devaneio.
Expansão
por Sandra Menezes
O dia estava começando e um raio de sol furava a bruma densa da manhã daquela nova jornada de trabalho para Micael. Com o miniaéreo no modo planador, ele descia suavemente na direção de uma das vagas no estacionamento da fábrica de equipamentos digitais avançados onde trabalhava como segurança. Assim que entrou na recepção, ouviu um clique de maçaneta sendo fechada com cuidado. Estranhou, e resolveu ir checando todas as portas do longo corredor para verificar se estavam fechadas. A penúltima delas se abriu, e ele percebeu um leve ruído no fundo da sala, atrás de umas caixas de peças de reposição.
– Quem está aí?
Não ouviu nenhuma resposta. Desconfiado, manteve a mão no cabo da arma que tinha na cintura enquanto olhava entre as estantes, que guardavam computadores e uma variedade de dispositivos. A cada passo, Micael parecia estar mais perto de alguém que respirava de forma ofegante.
– Seja quem for, apareça. Se você não me atacar, eu também não vou te fazer mal.
Então, o som da respiração ficou mais forte em suas costas. Virou-se com a arma em punho e deparou-se com um homem negro, com as roupas um pouco sujas, o cabelo molhado e um semblante muito assustado.
– Quem é você? O que faz aqui?
– Sou Nizan. Estou me escondendo.
– Se escondendo por quê? E de quem?
– Pode abaixar a arma, por favor? Não vou fazer nada de errado, eu não tinha outro lugar para ficar. Estou aqui há dois dias. Hoje tive coragem de sair e tomei banho no lavatório dos fundos. O senhor chegou mais cedo, não é?
– Sim... Mas não podemos abrigar pessoas sem-teto. Você vai embora e eu faço de conta que não te vi.
– Não posso sair. Estou sendo procurado por muita gente. Eles querem meu cérebro para estudo.
Micael concluiu que o homem, provavelmente, era mais um caso de “paranoia com risco letal”, uma nova doença que passou a atingir muita gente na virada do século XXI. Pessoas estavam se matando, e matando outras, diante da perspectiva de o planeta entrar em colapso a qualquer hora, por falta de oxigênio, de comida e de água potável, e pelas altíssimas temperaturas.
– Hum... Está certo. Aguarde aqui que eu volto te trazendo algo para beber. Vou te ajudar.
Nizan concordou com a cabeça, mas, imediatamente, suas conexões cerebrais se aceleraram identificando perigo e, ao mesmo tempo, traçando estratégias de sobrevivência. Ele sabia que Micael iria voltar com agentes para capturá-lo e entregá-lo às autoridades sanitárias – as mesmas das quais ele havia conseguido escapar na semana anterior. Enquanto não encontrasse alguém cem por cento confiável, não poderia contar o que lhe ocorrera 15 dias atrás, quando andava pela areia da praia de um dos únicos balneários onde ainda era possível mergulhar no mar de corpo inteiro. Nizan não resistiu ao magnetismo de um caramujo, com suas hipnóticas cores peroladas do rosa ao lilás, e o colocou no ouvido. Naquele instante, um elemento alienígena entrou em seu corpo de forma imperceptível através do canal auditivo. A partir dali, sua mente passou a funcionar de maneira surpreendente, ampliando suas percepções, abrindo canais telepáticos e lhe permitindo conhecer dimensões que jamais imaginou alcançar.
Seus ouvidos captaram as vozes de Micael e de mais dois homens, vindas de um lugar distante da fábrica. Com toda a certeza, o segurança havia checado o banco de imagens de fugitivos e encontrado sua foto. Nizan sabia que Micael e os agentes estavam longe ainda, e era o tempo que ele teria para fugir. Saiu por uma pequena porta no final do corredor que dava para um pátio com montes de sucatas, descartes de peças misturados com equipamentos de proteção individual usados em ambientes intoxicados. Encontrou ali um par de botas de borracha que pareciam do seu tamanho e o calçou com cuidado, temendo alguma contaminação. Com os pés protegidos, poderia andar rápido e até correr num terreno pedregoso ou enlameado. Para sair, teria que pular o muro onde terminava o pátio, mas só o alcançaria se conseguisse desviar-se das máquinas sugadoras que estendiam suas pás abocanhando toda a sucata. Se fosse apanhado por uma delas, seu destino seria as fornalhas, e ele se desintegraria como todo material recolhido. O elemento que havia se instalado no corpo de Nizan o estimulava a ir em frente.
– Atravesse correndo e depois pule. Você consegue!
– Preciso saber para onde ir...
– Basta seguir adiante.
– Quem é você, e o que quer de mim?
– Fique vivo e logo saberá...
Ao primeiro impulso, Nizan sentiu como se estivesse recebendo um forte jato de ar que o jogava em velocidade para a frente. Quando deu por si, tinha ultrapassado a altura do muro e descia num ritmo lento e controlado até o chão. Apalpou o peito, as pernas e os braços, buscando se certificar de que estava mesmo em terra. Seu instinto de defesa indicava que era mais importante se adiantar do que ficar ali tentando entender os assombros que se manifestavam tanto em sua mente quanto no seu corpo físico.
Caminhando por uma vasta área inóspita abandonada e distante da cidade, ele avistou uma cordilheira com montanhas cobertas de vegetação esturricada pelo sol escaldante. Seguiu naquela direção olhando para todos os lados, sentindo-se ameaçado por tudo e por todos. Nizan entendia por que tinha sido abandonado pelos pais e pelos amigos dias atrás. Afinal, quem não acharia estranho se o visse fazendo perguntas ao interlocutor que carregava no corpo e, aparentemente, falando sozinho? Foi apontado como louco, e todos diziam que os sanitaristas queriam tratá-lo, mas ele sabia que aquilo era uma farsa e que estava correndo risco de morrer.
A cerca de 1 quilômetro da cordilheira, avistou um rio largo. Sua única chance de chegar às montanhas seria alcançando a outra margem. Ele decidiu pegar um atalho e, depois de poucos passos, encontrou uma gruta onde poderia descansar. Abrigado pelo teto baixo, e refrescado pela umidade que vinha das paredes da gruta, enquanto traçava uma estratégia para atravessar o rio, foi adormecendo. Entre o estar dormindo e acordado, viu-se no meio de aranhas, escorpiões e serpentes. Mas Nizan não temia esses animais; ao contrário, eles emanavam vibrações positivas, de potência e crescimento espiritual. Percebia que as plantas forrageiras ao redor lhe entregavam suprimentos necessários para mantê-lo alimentado, sem que precisasse tocá-las. A sede era saciada, bastando que fixasse o olhar nos fios de água escorrendo pelas pedras. Recostado numa rocha, ele não sentia a sua densidade, e parecia que entre seu corpo e o mineral existia uma fibra macia, que lhe proporcionava um conforto real.
Quando voltou para a trilha principal, estava totalmente revigorado. Enquanto caminhava, num lugar distante da memória, via flashes de sua vida na cidade, trabalhando como analista de sistemas numa empresa governamental. Depois do acontecimento na praia, ele já não se reconhecia nem sequer lembrava de tudo o que havia feito naqueles últimos dias. A situação se agravou quando o flagraram no laboratório enviando coordenadas sobre o programa de desativação de usinas nucleares para um satélite aparentemente fora de uso. Os homens da segurança queriam saber como ele conseguia enviar a comunicação para o espaço usando apenas direcionamento mental. Foi preso e, na cela de um prédio militar, Nizan atingiu um grau de concentração que lhe permitiu acessar uma conversa entre sanitaristas e oficiais que estavam no comando. Foi assim que descobriu que o plano deles era retirar o seu cérebro e depois dispensar o corpo. Na primeira oportunidade, conseguiu fugir da fortaleza; fora do perímetro urbano, encontrou a fábrica.
Agora estava naquela trilha, depois de tudo, entregue a uma forte emoção. Lágrimas quentes escorreram pelos dois lados de sua face ao pensar nos pais, que sentia como se estivessem num tempo longínquo. A cada passo, o cheiro e a umidade do rio invadiam as suas vias superiores, e era como se a água existente em seu próprio corpo começasse a se movimentar. Quando notou, estava de pé na margem do rio de águas turvas, sem ter certeza se deveria ou não pular.
– Vá para o outro lado – a voz interna ditou com firmeza.
– É uma distância grande até lá...
– Não é como lhe parece.
Nizan retirou as botas, respirou fundo, pegando o máximo possível de ar, e se lançou nas águas. Nadou um trecho e, de repente, enfraqueceu. Primeiro se desesperou e, quanto mais batia desordenadamente os pés e os braços, mais afundava.
– Se solte, confie!
Ele então relaxou e, sem jamais ter imaginado que um dia aquilo pudesse lhe acontecer, respirou normalmente embaixo d’água. Era uma sensação indescritível de liberdade. Como um peixe, rodopiou para todos os lados, virou e revirou o corpo em torno de si mesmo algumas vezes, sentindo-se na plenitude do seu ser, até que avistou o barranco da margem oposta e subiu para continuar o caminho. A temperatura era tão alta que seu corpo produzia rios de suor. Sem hesitar, ele foi deixando para trás as calças compridas, a camisa e depois a cueca. Quando já estava próximo à base da cordilheira, ouviu o som discreto da aeronave oficial do governo planando sobre sua cabeça. De cima veio a voz de uma máquina.
– Você está sendo monitorado. Pare e aguarde a nossa abordagem.
No mesmo instante, um dispositivo contendo hologramas foi lançado na sua direção. Nizan tomou nas mãos o aparelho e apertou o botão azul. Imediatamente, surgiram as imagens de seu pai e de sua mãe.
– Filho, por favor, não resista aos oficiais. Você não ficará preso – argumentou o pai.
– Nizan, querido, eles só querem cuidar de você... Não precisa ter medo.
O som da palavra medo dita por sua mãe através daquele artefato produziu nele um efeito contrário ao que esperavam os sanitaristas. Nizan percebeu, na voz que amava, uma vibração de incerteza quanto ao que ela própria acabara de dizer, como se, na verdade, do seu coração estivesse vindo um alerta para que não confiasse em ninguém, nem mesmo nela. Ele jogou longe o dispositivo e viu a imagem do casal desaparecendo.
– Siga e olhe para a frente, Nizan – ouviu do interlocutor.
“Olhe para a frente, olhe para a frente.” A ordem se repetia tomando todos os seus espaços sensoriais. Subitamente, do veículo oficial, dois agentes desceram deslizando por cabos e se colocaram a uma certa distância. Numa fração de segundo, no vácuo entre ele e os homens, saindo de uma penumbra, um vulto se definiu: era um guerreiro africano, com vestes de couro e de pele de leopardo, que parecia ter atravessado séculos apenas para se apresentar naquele momento. Tudo parou, e o homem negro, uma outra versão do próprio Nizan, falava numa língua desconhecida apontando na direção das montanhas. O que o seu ancestral guerreiro mostrava era uma luz erguendo-se como se fosse o nascer do Sol. Num piscar de olhos, os agentes haviam desaparecido e o guerreiro também. Do seu íntimo veio o alerta:
– Agora é você quem decide, se vai ficar ou seguir.
Nizan examinou seu corpo nu e perguntou em voz baixa:
– Ficar como, se tudo em mim está se expandindo? Qual lugar eu ocuparia neste mundo?
– Esteja pronto, então, para continuar crescendo.
– Os oficiais ainda podem me prender?
– Eles não te veem mais.
Nizan fixou o olhar adiante e identificou uma grande nave camuflada no meio da claridade intensa. Seus olhos começavam a doer quando viu duas grandes bolhas transparentes com reflexos furta-cor saindo do objeto e vindo na sua direção. Uma delas o engoliu, e dentro da outra apareceu um ser todo de luz. Era dele a voz que ouvira por tanto tempo, e que naquele instante lhe falava mais uma vez.
– Obrigada por ter me trazido de volta.
Na atmosfera acolhedora que o envolvia, enquanto se aproximava da rampa da grande nave, Nizan respirou aliviado, como há muito não conseguia. Feito o resgate, o veículo se iluminou por completo, atravessou a densa camada de nuvens escuras e ganhou o céu velozmente, brilhando entre os astros.
Enéias Tavares é escritor, professor e tradutor, e tem trabalhado com projetos transmídia envolvendo a série Brasiliana Steampunk (brasilianasteampunk.com.br). Seus livros já foram publicados por editoras como LeYa, Avec, Arte & Letra e DarkSide Books. Sua curadoria em Encontros valoriza a produção insólita nacional, partindo do projeto Fantástico brasileiro (fantasticobrasileiro.com.br), sediado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
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