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Gilberto Mendonça Teles: um saci contra o Autoimperialismo

Na edição de janeiro da coluna “A caminho”, Marcos Carvalho Lopes apresenta a trajetória do poeta, crítico e professor goiano

Publicado em 10/01/2025

Atualizado às 14:30 de 10/01/2025

Por Marcos Carvalho Lopes

"Os d’além Paranaíba acompanham de longe com olhos ciumentos toda e qualquer iniciativa de particu¬lares; pesam-lhes, um por um, mesquinhamente, os be¬nefícios que lhes advenham do próprio esforço; e, sem coragem para nenhuma iniciativa, sujeitam-se passi¬vamente ao jugo aviltante dos mandões, e quedam-se à espera do maná da Promissão — como se todo organismo vivo, individual ou coletivo, não preparasse o seu próprio destino por suas próprias mãos!"
Hugo de Carvalho Ramos

 

Em 1997, ano em que entrei na graduação em filosofia na Universidade Federal de Goiás, o professor equatoriano Gonçalo Armijos Palácios lançou o livro De como fazer filosofia, sem ser grego ser gênio ou estar morto. Na obras, o autor problematiza a forma como a filosofia é ensinada e desenvolvida no Brasil, com um tipo de postura em que a autonomia intelectual é tida como um pecado e a posição de explicador/comentador de textos clássicos de autores estrangeiros mortos é o máximo que se poderia almejar. Era de se esperar que fosse um tempo de debates intensos na faculdade de filosofia, já que Gonçalo não desafiava teses e posições distantes, mas aquelas encarnadas por seus colegas docentes – todos vindos do Sul-Sudeste, muitos com formação na Universidade de São Paulo – naquela universidade. O debate não aconteceu, mas o ambiente ganhou a marca de um silêncio viscoso, acompanhado das desconversações e desqualificações de corredor em relação àquele professor que estaria querendo, a partir de Goiás, inventar a roda. Ou seja, o questionamento semeado por Gonçalo pareceu, dentro da academia de filosofia, cair em terreno estéril.

Eu tratei de elaborar hipóteses para explicar aquela ausência de diálogo. Talvez a falta de respostas não significasse a inexistência de pensamento filosófico autônomo no Brasil, mas indicava que esse pensamento não estava ou não poderia estar na academia.  Roberto Gomes em Crítica da Razão Tupiniquim, vinte anos antes, levantou essa tese, mas não continuou seu caminho de interrogação e seguiu pela literatura. Essa fuga da filosofia acadêmica para a literatura foi também parte da trajetória de Raduan Nassar, que antes se aventurou no jornalismo e depois preferiu seguir como fazendeiro. Descrente das possibilidades de vida intelectual no Brasil, Caetano Veloso preferiu seguir pensando o país como compositor e cantor. Também podemos considerar que o desenvolvimento da educação, do Direito e das diversas ciências no Brasil acontece com um questionamento ou incorporação de pressupostos filosóficos. Nessa senda, poderia multiplicar exemplos, como os de Nise da Silveira, na psicanálise; Milton Santos, na Geografia; Guerreiro Ramos, na sociologia; Paulo Freire na Educação; Mangabeira Unger, no Direito; Newton da Costa, na lógica etc.

Mas, e em Goiás? O problema não estaria mais no “lugar” e sua cultura anti-intelectual, autoritária e provinciana? Encontrei uma resposta possível caminhando no sentido contrário: da literatura para a filosofia, na obra de Gilberto Mendonça Teles (1931-2024). Neste texto quero apresentar este professor, poeta e crítico literário goiano, como alguém que se dedicou a pensar Goiás e alcançou uma posição de destaque no horizonte da língua portuguesa. Para tanto, vou apresentar brevemente uma recontextualização de sua rajetória intelectual, destacando sua perspectiva filosófica que amarra os conceitos de vida, literatura, arte e areté.

Mas, precisamos antes mapear esse terreno. 

 

Cartografia da Máquina do Medo 

Uma regra geral na cartografia dos espaços colonizados é a pressuposição de uma tensão entre o litoral que recebe as influências diretas das metrópoles e se coloca como a fonte civilizadora; e por outro lado, os espaços do interior – do sertão, da buala etc. – que se configuram como palco em que é preciso encenar a marcha para o Oeste, domando as sombras e as forças selvagens/bárbaras, em lugares que permanecem “fora da história”, mantendo estruturas arcaicas e formas de linguagem/vida “ultrapassadas”. Essa situação caricatural e reducionista aparece na forma paradigmática no modo como Machado de Assis descreveu o lugar de Goiás em uma crônica de 1864: “A imensa extensão deste país coloca nossa rica província de Goiás muito além da Europa; para os que veem no Pão de Açúcar as colunas de Hércules da civilização, Goiás assemelha-se aquela região inóspita e escura que os antigos imaginavam existir além do mundo até então descoberto. Sem meios fáceis de comunicação, arredada dos centros populosos, extensa e quase deserta. – Goiás parece condenada a receber da sede do Império apenas os presidentes – e as circulares eleitorais”.

Quando se tenta construir essa cartografia a partir de Goiás, percebemos que o problema ganha um sentido distinto: não caberia somente pensar em descolonização ou contracolonização, já que a forma de exploração é distinta por ser interna, algo que podemos chamar de autoimperialismo. Este autoimperialismo implica uma menoridade vinculada a uma servidão voluntária e formas de vida autoritária. Podemos pensar a partir da obra de Gilberto Mendonça Teles uma espécie de tensão (numa descrição deliberadamente reducionista): de um lado, temos as levas recorrentes de bandeirantes e pioneiros, que chegam de lugares muito distantes e querem conquistar o lugar para a civilização, iluminar e construir o futuro; por outro, os pequenos grupos locais que, com autoindulgência e perspicácia, reafirmam a derrota de qualquer projeto moderno desses redentores, ouvem e se esquivam de seus discursos e (re)afirmam sua própria temporalidade, seu poder e condição arcaica. Tanto os bandeirantes renovados, quanto os goiases arcaizantes, que agonizam nessa luta, não são tipos puros e nem trazem bandeiras totalmente positivas ou negativas. No entanto, a repetição deste embate faz com que as pessoas que procuram vencer esse conflito, acabem desgastando-se em   disputas locais e fiquem sem a força ou a perspectiva para construir um projeto que vá para além do Rio Paranaíba (que marcar a fronteira em direção ao Sul).    

Esse “mapa” é confirmado pelas palavras de Gilberto Mendonça Teles e pela avaliação do pioneiro escritor goiano Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921). Para Gilberto persiste uma “reverência quase ‘religiosa’ que em todo interior se prestava (e se presta) ao Mairim, ao estrangeiro e, no lugar dele, à pessoa que chega do litoral, principalmente de São Paulo”. De modo complementar, na avaliação feita pelo escritor Hugo de Carvalho Ramos: “As capacidades, raras, que aparecem, são sofismadas; o ronceiro prolóquio popular vem à baila: ‘quer abarcar o mundo com as pernas’, ‘o meu vintém é que não apanham’, ‘mais vale um pássaro na mão do que dois voando’, e quejandas necedades sanchopancescas, que confirmam a classe média no conceito uns dos outros.  Se ali permanecem, perdem-se em esforços que se anulam pela sua nenhuma repercussão, atrofiam-se fatalmente pelo determinismo do meio, regressam ao nível médio, entram no ramerrão dos demais”. A avaliação dura de Carvalho Ramos antecipa a forma como o texto de Gonçalo foi recebido: “Os que procuram reagir e afirmar suas convicções, são constrangidos ao silêncio pela nenhuma repercussão da sua voz”.

Mas existe meio de sair dessa arapuca internalizada, essa “máquina do medo”?

A trajetória intelectual de Gilberto Mendonça Teles é profundamente marcada pelo Golpe Militar que levou ao fechamento do Centro de Estudos Brasileiros que ele presidia na recém fundada Universidade Federal de Goiás. Gilberto havia feito toda a sua formação intelectual em Goiás, com a graduação em Direito e Letras. Estreou na poesia em 1955 seguindo o parnasianismo local e avesso ao modernismo, na contramão das posições estéticas de vanguarda, cultivava a métrica e não conhecia entender a poesia de Carlos Drummond de Andrade. No entanto, desenvolveu para si um projeto de vida em torno da poesia, isso o fez se esquivar totalmente da vontade familiar de que fosse um doutor-advogado para se dedicar a função de professor. Mas não se conformou em repetir o que havia aprendido, ou os horizontes da biblioteca local, e reconheceu a necessidade de estudar e procurar se aperfeiçoar em relação ao conhecimento da linguagem. Por isso, investiu na compra de livros importados e tentou compreender os temas e problemas que moviam os debates no campo das Letras. Na medida em que progredia na compreensão crítica da literatura, o projeto literário de Gilberto ganhava densidade e procurava se aproximar e incorporar as conquistas da modernidade. Esse movimento foi complementado pela procura “genealógica” por entender o que era a poesia em Goiás. Esse não foi efetivamente um denso projeto de pesquisa que gerou no começo da década de 1960 o livro A Poesia em Goiás, de 600 páginas, com antologia, avaliação historiográfica e crítica.

Foi por conta dessas publicações que o filósofo português Agostinho da Silva e o reitor da Universidade Federal de Goiás escolheram Gilberto para criar e presidir o Centro de Estudos Brasileiros, que então propunha uma graduação em Estudos Brasileiros, fortemente contextualizada com os problemas e temas locais. Não por acaso, uma medida inicial do Golpe militar foi fechar o Centro reconhecendo em sua forma um grande potencial subversivo. Gilberto, que era um liberal, incomodava por sua pretensão de autonomia intelectual: logo depois do golpe deu entrevista para um jornal local indicando o curso de Estudos Brasileiros para os políticos;  em Novembro, mesmo depois da destituição/destruição do Centro de Estudos Brasileiros, publicou um texto denunciando as manobras políticas para emplacar um reitor alinhado com a Ditadura, ressaltando que a universidade “é o ensino, a pesquisa, o amor à verdade, o respeito à democracia e o ódio a tudo que seja limitação e arbitrariedade”.    

“Uma cantiga de gafanhotos/caiu de repente sobre a certeza/ das árvores/e rolou pelos campos confundindo/ a linguagem dos ventos”, com estes versos começa o poema “Terra à Terra”, que coloca na imagem de uma praga mítica a invasão verde e destruidora dos militares. A força da censura levou Gilberto a dramatizar a angústia do silêncio dentro da própria linguagem poética, dobrando essa por dentro, como metalinguagem. Mas de modo prático, sua trajetória foi lançada para fora de Goiás, em primeiro lugar para estudar e dar aulas em Portugal, depois por um período de trabalho no Uruguai e, quando exonerado da universidade pública pelo AI-5, seguiu para o Rio de Janeiro (foi contratado em 1970 pela PUC-RJ, onde atuou por 50 anos, aposentando-se como professor emérito). Para tanto, teve que mudar seu projeto de doutorado de pesquisar a obra de Hugo de Carvalho Ramos, o nome fundador da literatura em Goiás. Em Portugal, estudou e desenvolveu um grande projeto sobre Camões, mostrando sua posição originária na poesia brasileira, sua influência permanente nos mestres do modernismo e na poesia popular; depois, defendeu a livre-docência com um trabalho sobre a estilística de repetição na obra de Carlos Drummond de Andrade. Seu sucesso como docente e crítico foi reconhecido e premiado; ao mesmo tempo, seu trabalho poético ganhou todos os prêmios possíveis.

No começo da década de 1980, publicou um livro chamado Saciologia Goiana em que, tomando a forma mítica de um saci, voltava para Goiás e cantava sua paisagem, seus prejuízos e refrigérios. Neste livro, uma obra continuamente reescrita e ampliada, está o poema “Ser tão Camões”, em que, com a linguagem rememorando o poeta português, descreve alguém pescando em um rio em Goiás e sendo surpreendido pelas águas que o arrastam e pela voz do curso d´água definindo para ele um destino de menoridade:

Não passarás, Saci,

destes vedados términos. Goiás!

eis o sinal que vibrará canoro

e belicoso, abrindo na tua alma

vastidões e limites.

                                Terás sempre

o sal da terra e a luminosa sombra

que te guia e divide, e te faz duplo,

real e transparente, mas concreto

nas tuas peripécias.

                                 Nada valem

tua cabeça mandinga, o aroma

de teu cachimbo e o mágico rubor

de tua carapuça. Nada vale

a tua perna fálica, pulando

nos cerrados.

                        Há vozes que te agridem

e dedos levantados te apontando

nas porteiras, nas grotas, na garupa

das éguas sem cabeça, como há sempre

uma tocaia, um canivete, um susto,

uma bala perdida que resvala

em tuas costas.

                          Mas ainda tens

de nutrir tua vida nas imagens

da terra. Ainda queres como nunca

alegres campos, verdes arvoredos

claras e frescas águas de cristal

que bebes em Camões.

                                            Todo o teu ser

tão cheio de lirismo e de epopeias

tenta escapar-se em vão aos refrigérios

dos fundões de Goiás.

 

 A sentença do rio é severa, mas já nos mostra que o pescador é ninguém menos que o Saci, entidade cheia de mandingas e truques. E é justamente com uma nova mágica que o Saci – esse Exu Mirim – vai tomando forma de caneta e consegue fugir daqueles vedados termos do vaticínio do rio. Somente escrevendo e construindo uma obra que é possível cruzar o Paranaíba e diz que diz que não diz das armadilhas e “ais” locais.

Quando o poema “Ser tão Camões” descreve o início da transformação do rio em entidade-limite, arma-se dentro do personagem a “máquina do medo”, que funciona como uma espécie de anti-“máquina do mundo” (diferente da que aparece no Lusíadas de Camões e no poema de Drummond), que promove uma epifania ao contrário, a epifania da censura provinciana. 

 

Retórica do silêncio e ar(e)te

 No livro O resto é silêncio, do escritor gaúcho Érico Veríssimo, o personagem do escritor Tônio Santiago cria uma dobra no romance ao mostrar sua própria teoria sobre a sua escrita dizendo: “o romance que eu ainda não escrevi já existe nos outros, em todos aqueles que o vão ler. Muito do que fazemos... romances... pinturas... esculturas ... música, está fora do papel, da tela, da pedra, do barro e de nós mesmos... É mais que a palavra escrita, a combinação de sons, de imagens. Os outros completam... ou desfiguram o que a gente faz. E mesmo o mais egocêntrico dos artistas sempre tem em vista, consciente ou inconscientemente, os outros. Dum certo modo ele é os outros”. Essa descrição, que reconhece o processo intersubjetivo da criação artística serve muito bem para explicar a forma como Gilberto Mendonça Teles pensa a literatura quando a descreve como uma retórica do silêncio. Ainda que, por vezes, em sua obra essa busca por traduzir “o melhor no mais comum”, se confunde no cotidiano com a tentativa de alcançar uma perspectiva quanto ao sagrado, para ele, através da poesia “tomamos contato com uma categoria de ‘sagrado’ que não é bem o sobrenatural, mas uma saída do comum, da linguagem comum que nos achata, que nos faz igual a todo mundo, que ilude a nossa individualidade”.

Se somos os outros, devemos reconhecer e construir uma diferença a partir desse ser em comum. Por isso, Gilberto sempre retornava a Goiás como forma de pensar-se, compreender os próprios limites e revisitar os impulsos sublimes que moldam nosso desejo (os gostos, os cheiros, os gestos etc.), aquilo que somos e o que podemos ser. Foi professor, em diversas universidades e sempre incentivou que pesquisas fossem feitas avaliando criticamente autores que estavam fora dos grandes centros e dos cânones consagrados. Embora radicado no Rio de Janeiro, e diferentemente das práticas de endogenia, aceitava orientandos de todo o país e manteve a prática de viajar como professor e conferencista, visitou praticamente todos os Estados da federação e atuou em diversos países.   

Na filosofia da criação poética de Gilberto, a arte não se faz sem técnica. Em verdade, a etimologia da palavra arte remete ao latim em que o termo arts significa técnica. Mas o autor não fica contente com essa única etimologia e seguindo o “método forçado heideggeriano”, aproxima a palavra arts do latim da palavra grega areté, termo central das disputas filosóficas, que geralmente é traduzida como a excelência, algo/alguém que atinge a potencialidade máxima daquilo que poderia ser, o seu melhor. A avaliação quanto a existência de areté se conecta com a avaliação da eudaimonia, da ideia de uma vida feliz e bem-aventurada. Ou seja, avaliamos se uma planta conseguiu atingir sua potencialidade máxima, gerando bons frutos, conseguindo alcançar tudo aquilo que seria seu potencial. Podemos entender melhor essa ideia, seguindo Alasdair MacIntyre, e pensando em termos esportivos: geralmente reconhecemos um jogador ou jogadora que possui um grande talento e potencialidade, mas que muitas vezes se perdem por falta de cultivo ou por diversos motivos não alcançam sua realização plena de sua carreira. Mesmo craques de sucesso podem ser visto como não tendo atingido sua plena potencialidade. Deste modo areté (excelência), eudaimonia (felicidade) e arts (técnica) se conectam: sem o domínio técnico, o treino e a dedicação as formas comuns ou ao que já é dado, não é possível produzir o novo. Apesar de usar estes termos antigos, a descrição de Gilberto toma a arte como um processo moderno de autocriação, da criação de uma vida com sentido, a busca por “chegar a ser quem você é”.           

Na fórmula de Gilberto, talvez falte considerar as peripécias do acaso, que podem modificar trajetórias para além daquilo que seria nossos planos. A Ditadura destruiu um grande projeto de construção de um Centro de Estudos que prometia pensar o Brasil a partir de Goiás. Contudo, mais tarde, o próprio Gilberto reconheceu que somente conseguiu “ver” seu contexto quando se afastou: apesar das boas intenções, o quadro de professores, e ele mesmo, mantinham uma perspectiva provinciana do que era a universidade, o que poderia comprometer todo o projeto, caindo numa postura autoindulgente. O golpe e as cassações fizerem com que Gilberto saísse de Goiás e ganhasse uma dimensão maior para sua obra, que se tornou uma referência para todos que pensam a língua portuguesa. Por isso, o desafio do autoimperialismo e da menoridade provinciana se complementam em uma estrutura autoritária e antidemocrática, que tutela as possibilidades de pensamento e existência, de diálogo e criatividade, sendo inimigo da palavra escrita. Neste sentido, a Ditadura foi certeira: o pensamento autônomo é perigoso.

É com ironia que Gilberto tomou a forma mítica de Saci para cantar Goiás, apropriando-se de uma posição vertical (do símbolo, que fala de cima para baixo) para enfrentar a censura e obcecações locais. Mas seria um erro manter essa posição na avaliação de sua obra, que tem seus prejuízos e problemas, suas virtudes e potencialidades, como tudo o que é humano. Se queremos nos aperfeiçoar, precisamos tentar dialogar de um modo mais sereno e procurar reconhecer mais vozes e formas de vida que continuam sendo desconsideradas.

Em seu penúltimo livro de poemas, Lirismo Rural, Gilberto deixa a forma de Saci para criar o personagem Sereno, uma máscara mais amena para encenar o eterno retorno a Goiás. Em seu último livro, À Vespera do Espanto, no poema “Araguaia” Gilberto reconhece sua gratidão ao vaticínio do rio descrevendo sua trajetória até o litoral: “E agora aqui estou, inominado e buliçoso,/ (...) sem gorro, munição, e nunca mais”, acrescentando o pedido de “Per... dão, per... dão, senti a voz do Eco/ que na essência da escrita, pelo verbo,/ expressava em silêncio luminoso/ gratidão pelo rio na ousadia/ de mudar o seu curso, recurvar-se/ para Leste e trazer um novo olhar/ às margens de seu tempo em outro espaço”.  Por isso, fechamos nosso texto com as duas estrofes finais do poema “Declinação”, em que com arguta modéstia o poeta diz:

 

Eu sou quem sou. Não me mudei. Mudou-me

uma parte da vida, mas foi sem:

não me levou nem me lavou,

livrou-me

da danação de todo mal, amém.

 

(Se houver louvor aqui, se alguma luva,

qualquer pessoa a pode usar por mim:

a minha história é como um guarda-chuva

que a gente esquece,

quando chega ao fim.)

 

REFERENCIAS

 

GOMES, Roberto. Crítica da Razão Tupiniquim. 14. ed. Curitiba: Criar, 2008.

LOPES, Marcos Carvalho. Máquina do Medo. Goiânia: PUC-GO, 2012.

_____. Entrevista cadmeana: Um abecedário de Gilberto Mendonça Teles. Goiânia, Kelps, 2016.

PALÁCIOS, Gonçalo Armijos. De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Goiânia: Editora da UFG, 1997.

RAMOS, Hugo de Carvalho. Hugo de Carvalho Ramos: Obras reunidas: Volume II. São Paulo: Ercolano, 2024.

TELES, Gilberto Mendonça. Introdução a uma filosofia da História Literária. Letras de Hoje, v. 13, n. 3, 1978.

______. Retórica do Silêncio. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1989.

________. A filosofia de Agostinho da Silva na criação de Centros de Estudos no Brasil. Revista UFG, v. 14, n. 14, 2013.

______. A crítica e o princípio do prazer. Goiânia: Editora da UFG, 1995.

______. Hora Aberta. Poemas Reunidos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2003

______. Sortilégios da criação. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2005.

______. Saciologia Goiana. 8ª. Ed. Goiânia: Kelps, 2016.

______. Memórias Entrevistas. Goiânia: Elysium, Rio de Janeiro: Batel, 2017a.

______. O Terra a Terra da linguagem: seis livros de poemas. Rio de Janeiro: Batel, 2017b.

______. A poesia em Goiás: estudo, antologia. 3ª ed. Goiânia: UFG, 2019a. 

______. Lirismo Rural. O Sereno do Cerrado. Rio de Janeiro: Batel, 2019b.

______. A ficção da página: seleção de ensaios sobre a literatura brasileira. Editora Appris, 2020.

_____. &cones da Literatura em Goiás. Goiânia: Kelps, 2023a.

_____. À Vespera do Espanto. Rio de Janeiro:Batel, 2023b.

Coluna escrita por:

Marcos Carvalho Lopes

Marcos Carvalho Lopes

Doutor em filosofia, professor universitário e host do podcast Filosofia Pop
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