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Humor, racismo e outras formas de destituição: qual é a combinação possível?

Nesta edição da coluna "Perspectivas", Rosane Borges ressalta que "piadas não são enunciados deslocados da cadeia discursiva vigente"

Publicado em 26/05/2023

Atualizado às 16:37 de 13/07/2023

Por Rosane Borges

Nas últimas semanas, fomos atingidos por uma avalanche de comentários envolvendo o humorista Léo Lins em virtude de uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que determinou a exclusão de um especial de comédia do humorista. A justificativa do Tribunal foi respaldada na existência, no referido especial, de piadas discriminatórias, que incluíam questões como escravidão, perseguição religiosa, minorias e pessoas idosas e com deficiência.

Como se tornou hábito, a tônica dos comentários resumiu-se a duas perspectivas antagônicas: uma em defesa do humorista, alegando que a medida do Tribunal fere um direito inalienável, a liberdade de expressão, e que piadas não têm o poder de violar quem é o alvo de suas investidas; a outra, à qual me filio, sustentou que piadas não são enunciados deslocados da cadeia discursiva vigente e que, portanto, não podem reinar fora do pacto civilizatório. Ou seja, a piada carrega, sim, uma carga ofensiva, na medida em que transgride um princípio básico: a integridade e o respeito ao outro.  

Venho insistindo que o suposto direito de dizer tudo nas redes sociais e nos ambientes materiais solapa as formas de interdição (que asseguram a convivência entre os seres humanos), as quais não podem, nem sequer remotamente, ser confundidas com censura. Como se sabe, a tagarelice nas redes sociais, com enunciados que alcançam o inumano/desumano, é a tônica dos nossos tempos, tornando-se um traço peculiar dos dias que correm. Na nova ambiência comunicativa, em que somos produtores incessantes de informação, sentimo-nos livres para tudo dizer.

Eis os sintomas de uma crise que não cessa: sob o manto da liberdade de expressão, do fim da censura (expediente tão caro para nós), proliferam discursos que legitimam racismos, xenofobia, mixofobia, sexismo e múltiplas formas de discriminação. Não podemos ficar indiferentes ao fato de que os dizeres destituidores transmitidos em escala vertiginosa na internet e fora dela ganham eco na sociedade de tal forma a constituir o agir comunicativo da esfera pública. É de admirar, por exemplo, que as palavras malditas de Léo Lins e de outros humoristas não sejam vistas por seus pares e outras pessoas influentes como algo que fere de morte o pacto de civilização, de onde emerge o humano.

Considerando que toda palavra, por definição, encerra uma palavra de ordem, como diz o filósofo Gilles Deleuze, não temos como ignorar o primado segundo o qual os enunciados “operam como direcionamento, num processo educativo, a tomadas de posição e obrigações sociais” (GOMES, 2003)*. Essas tomadas de posição mostram que os enunciados humorísticos não se reduzem a mero instrumento do entretenimento, mas, antes, configuram-se em dispositivos que vão delimitando campos, orientando práticas, definindo e ordenando a realidade.

Sabe-se que, pelo menos desde a aurora do jornalismo, a sátira e a piada são um recurso assíduo que, pela chave do humor, firmou terreno no campo da contestação, do protesto, da zombaria, do sarcasmo – um traço dos tempos modernos, marcados pela confrontação das hierarquias e desigualdades, tendo na atividade noticiosa um agente indispensável para a disputa ideológica.

Sabe-se também que nem sempre o humor se prestou a esse papel, como nos ensina o filósofo Mikhail Bakhtin. Para o pensador russo, na Antiguidade, o humor e o riso eram esteios para suportar os rituais religiosos e oficiais; já na Idade Média, tinham um apelo visivelmente popular, eram impulsionados por uma aspiração à liberdade, convidavam as pessoas a abdicar da formalidade cotidiana. Nesse sentido, o Carnaval se converte em um dispositivo fundamental para o exercício dessa liberdade.
 
Considerando essa dimensão do humor, as piadas não devem ser um recurso de destituição do outro não hegemônico – com potencial explosivo para subtrair ainda mais sua humanidade –, mas, sim, afirmar-se como uma forma de confrontação das estruturas e do já estabelecido. O limite de uma piada reside, fundamentalmente, nas fronteiras erguidas para designar o humano e a civilização. Todo e qualquer avanço desse limite não é liberdade de expressão, não é piada de mau gosto com a qual podemos não nos vincular, e sim flerte inequívoco com a barbárie e a autorização de práticas discriminatórias. Decididamente, como lembrou o filósofo Ludwig Wittgenstein, “o que não pode ser dito tem que ser calado”.

*GOMES, Mayra Rodrigues. Palavra de ordem / dispositivo disciplinar. Galáxia: revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo, n. 5, p. 91, 2003.

Coluna escrita por:

Rosane Borges

Rosane Borges

É jornalista e doutora em ciências da comunicação.
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