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“Incompatível com a vida”: um grito pessoal e político de Eliza Capai

Na edição de novembro da coluna “Grande angular” conhecemos a força autobiográfica do novo filme da diretora paulista

Publicado em 23/11/2023

Atualizado às 14:42 de 23/11/2023

Por Luísa Pécora

Eliza Capai construiu sua carreira de documentarista filmando realidades muito diferentes da dela. Em Tão longe é aqui (2013), contou histórias de mulheres africanas; em O jabuti e a anta (2018), investigou o impacto de obras faraônicas na vida de povos ribeirinhos e indígenas; e em Espero tua (re)volta (2019), acompanhou a mobilização política de estudantes do ensino médio.

Retrato colorido da diretora Eliza Capai. Eliza é uma mulher branca, de cabelo longos e castanhos. Ela veste blusa preta.
Eliza Capai (imagem: João Pina)

Isso muda em Incompatível com a vida, seu documentário mais recente, que estreou em 16 de novembro nos cinemas. Desta vez, Eliza coloca sua própria história e seu próprio corpo na tela com uma franqueza que parece surpreender até ela mesma. “Não teria coragem de filmar outra mulher num momento tão frágil como aquele no qual estava me filmando”, afirmou, em entrevista à coluna.

Tal momento se deu em 2020, quando, grávida de 14 semanas do primeiro filho, Eliza recebeu o diagnóstico de que uma malformação tornava o bebê incompatível com a vida: ele morreria durante a gestação ou pouco após o parto. Aconselhada pelos médicos a interromper a gravidez, Eliza pôde fazê-lo de forma legal e pelo sistema público de saúde porque estava morando em Portugal, onde o aborto foi descriminalizado em 2007. 

Sem saber o que fazer com uma dor que nunca experimentara e sobre a qual não tinha referência, Eliza recorreu àquilo que sempre a ajudou a lidar com a dureza do mundo: filmar. A tristeza, no entanto, não era o único sentimento que a guiava. Eliza também refletia sobre o que teria acontecido caso tivesse recebido o diagnóstico no Brasil, onde interromper a gestação de um feto incompatível com a vida é inconstitucional. “Senti muita raiva ao pensar que as mulheres, além de enfrentar aquilo que não tem jeito, têm de enfrentar violência do Estado e violência hospitalar”, disse a diretora. "Foi assim que comecei a gravar.”

Frame do filme Incompatível com a vida. Na imagem, um médico realiza um ultrassom em uma mulher grávida. ao fundo, duas mulheres, usando máscaras, observam.
Frame de Incompatível com a vida (2023 (imagem: divulgação)

Em Incompatível com a vida, Eliza combina sua história à de seis outras brasileiras que receberam o mesmo diagnóstico. São mulheres de origens variadas e que tomaram diferentes decisões (algumas interromperam a gravidez, outras não), mas seus depoimentos pintam o mesmo retrato: num momento de profunda dor, não havia política pública para ampará-las.

São especialmente frequentes os relatos que revelam despreparo e falta de sensibilidade por parte da comunidade médica. Uma das mulheres foi orientada a pedir demissão, encontrar alguém para cuidar das filhas mais velhas, montar uma UTI em casa e se dedicar integralmente ao bebê. Outra não pôde ver a criança após o parto e passou a noite tentando conseguir alguma informação, sem sucesso. Uma terceira foi ameaçada no hospital mesmo tendo conseguido na Justiça o direito de interromper a gravidez (“Se estiver faltando algum documento, você sai daqui algemada”). E quase todas foram internadas em quartos onde, ao lado da cama delas, havia um berço.

Segundo Eliza, sensibilizar o corpo médico e hospitalar é um dos principais objetivos da campanha de impacto do longa, liderada pela plataforma Taturana. Com distribuição da Descoloniza Filmes, Incompatível com a vida foi o grande vencedor do festival É tudo verdade e está qualificado para concorrer ao Oscar de Melhor Documentário.

Frame do filme Incompatível com a vida. Na imagem, uma mulher está boiando no mar, de barriga para cima. Ela veste um vestido vermelho.
Frame de Incompatível com a vida (2023) (imagem: divulgação)

Leia abaixo os principais trechos da entrevista com Eliza Capai:

Quando começou a filmar momentos da sua gravidez, sua intenção era fazer apenas um registro pessoal. Em que momento isso mudou e você passou a gravar com o propósito de fazer um filme?

Eu diria que foi quando recebi o diagnóstico. É claro que, naquele momento, não conseguia entender se teria força ou vontade de fazer um filme, mas foi quando tive a certeza de que precisava filmar. Fui guiada por dois sentimentos muito diferentes: tristeza e raiva. Não imaginava que era possível ficar tão triste com a perda de uma pessoa tão pequena, de quem eu nunca nem tinha visto o rosto. Quando senti aquela dor, pensei em histórias, contadas por amigas, que eu não havia entendido por falta de empatia e sensibilidade. E percebi que precisávamos falar sobre o assunto, ter referência dessa dor. Se eu tivesse visto filmes ou lido reportagens sobre essa dor, talvez tivesse sabido lidar melhor com ela. E entendi também que eu tinha de me expôr, porque não teria coragem de filmar outra mulher num momento tão frágil como aquele no qual estava me filmando. Como documentarista que sempre trabalhou com questões ligadas a gênero, senti que era meu dever, mas também havia um sentimento de raiva, já que tive muitos privilégios e muita sorte dentro desse azar. [Quando recebi o diagnóstico] eu tinha acabado de chegar a Portugal, onde fui aconselhada pelos médicos a fazer o que eles nem chamam de aborto, e sim de interrupção médica da gravidez. Não conseguia imaginar o que teria acontecido se estivesse no Brasil, se tivesse de recorrer à ilegalidade ou à Justiça. Senti muita raiva ao pensar que as mulheres, além de enfrentar aquilo que não tem jeito, têm de enfrentar violência do Estado e violência hospitalar. Foi assim que comecei a gravar.

Frame do filme Incompatível com a vida. Na imagem, uma mulher branca está sentada em uma cadeira em uma varanda. Ela veste roupas de moletom.
Frame de Incompatível com a vida (2023) (imagem: divulgação)

Como eram essas gravações? A câmera ficava ligada o tempo todo?

Nos momentos mais abissais, a câmera não estava apontada, mas, quando a gente [Eliza e seu companheiro na época, João Pina] tinha força, gravava. O tripé ficava meio montado, com a câmera em cima. Alguns críticos ficaram em dúvida quanto às cenas serem montadas, o que é uma dúvida legítima. E me causa certa graça, se é que posso usar essa palavra, porque era um desespero armar aquele tripé. Sou documentarista e o João é fotojornalista. Lidamos com as desgraças do mundo fazendo imagens: ele documentou guerras, violência urbana, ditaduras; eu sempre estive ligada à denúncia social e a questões de gênero. Filmar foi a nossa forma de lidar com uma situação que não queríamos estar vivendo. Montar a câmera era pensar: “De repente vou conseguir fazer algo que valha a pena a partir deste momento da minha vida que gostaria que não existisse”. É claro que, depois, foi um longo processo para entender se eu deveria fazer um filme, se existia um filme, se o material era para a minha terapia ou serviria a outras pessoas também.

Como foi o processo de montagem?

Depois de me separar [o filme mostra o fim do relacionamento entre Eliza e João], eu me isolei em uma casinha no meio da montanha e comecei a assistir [ao que tinha gravado]. Foi uma coisa muito estranha me ver na vida real, me ver em sofrimento, mas fui assistindo e organizando em um corte zero, com a intenção de entender se aquele material tinha densidade cinematográfica ou era um registro pessoal. Depois de mostrar para algumas pessoas e entender que existia um filme, comecei a conversar com o Daniel [Grispum, montador do longa], que também viu potência cinematográfica e editou um primeiro corte. Fomos experimentando vários caminhos narrativos. Em determinado momento, por exemplo, o filme fazia um paralelo entre a minha gravidez e a da minha irmã, e terminava com o parto do meu sobrinho, mas fomos sentindo que a motivação principal, que era falar da solidão do luto gestacional e das políticas públicas relativas ao aborto no Brasil, estava ficando perdida na história. Percebemos que era necessário buscar outras mulheres que tivessem passado por situações parecidas e então chegamos a esse segundo momento do filme, no qual eu estou vivendo o tempo presente, num cinema mais direto, e outras mulheres que passaram pela mesma situação estão elaborando suas vivências através da fala. E aí, claro, há um encontro, porque também eu estava tentando elaborar a minha própria história.

Frame do filme Incompatível com a vida. Na imagem, uma mulher branca está sentada em uma cama, de costas para a câmera e tem um dos braços apoiados sobre uma mala de viagem.
Frame de Incompatível com a vida (2023) (imagem: divulgação)

Muitas das entrevistadas relatam situações nas quais os profissionais de saúde demonstraram não ter sensibilidade ou preparo para atendê-las. Quando debatemos o aborto, costumamos nos concentrar na questão política, na descriminalização, mas seu documentário mostra que esse será apenas o primeiro passo e que um trabalho muito mais abrangente terá de ser feito, especialmente no que diz respeito à comunidade médica. Gostaria que você falasse sobre esse aspecto do filme.

Acho que isso é altamente político também porque as políticas públicas englobam o preparo do corpo hospitalar como um todo. É importante dizer que o filme tem a preocupação de contar histórias com desfechos variados. São mulheres de diversas partes do Brasil, de diferentes cores e classes sociais, e que tomaram decisões diferentes: metade delas abortou, metade não. O filme não tenta criar uma contraposição ou estabelecer um certo e errado entre as decisões. Cada uma fez o melhor que estava ao seu alcance e infelizmente todas foram violentadas pelas nossas políticas públicas. Fiz muitas outras entrevistas antes das filmagens e quase todas as mulheres com quem conversei me contaram que, depois de realizarem o aborto ou perderem o filho, foram levadas a um quarto onde havia um bercinho ao lado da cama. É um protocolo hospitalar, mas não tem uma pessoa que possa tirar o bercinho do lado da cama de uma mulher que acabou de perder o filho? É uma violência simbólica muito grande, e é protocolo hospitalar. 

Sabemos que existe uma grande sobrecarga dos profissionais de saúde, que saem de um plantão para o outro, não dormem etc., mas muitas vezes eles não sabem lidar com o que está acontecendo. Pude ver isso no contato com a médica que me deu o diagnóstico. Durante o ultrassom, ela mal conseguia falar comigo, só me pediu para voltar no dia seguinte. Percebi que havia algo estranho, então insisti e ela disse que havia algo na cabecinha. Ali eu desmontei, comecei a chorar muito. No dia seguinte, voltei para me encontrar com três médicos e foi como se eu não estivesse na sala. Aliás, isso foi algo que ouvi de todas as personagens: é como se a sua barriga e aquilo que está sendo projetado [no ultrassom] fossem duas coisas completamente diferentes e não partes do mesmo corpo. Então eles deram o diagnóstico de costas para mim, e quando comecei a chorar a médica disse: “Não chora, não”. Meu então companheiro falou: “Deixa ela chorar”. E aí a médica falou: “Não chora, senão vou começar a chorar junto. Ontem não consegui dormir pensando em como dizer a uma mulher de 40 anos, na primeira gravidez, que o filho não vai sobreviver?”. Nesse momento percebi que o “não chora” não queria dizer “para de mimimi”, mas, sim, “eu não tenho estrutura emocional para lidar com isso”. O profissional de saúde deveria ser o primeiro a saber lidar com a morte, mas existe uma falta de preparo nas universidades de medicina e nos cursos de enfermagem. Para mim, a campanha de impacto do filme tem dois objetivos principais: acolher mulheres e casais que passaram por essa situação e sensibilizar o corpo médico e hospitalar em relação ao que está acontecendo dentro dessas mulheres e a como cuidar delas.

Você mencionou a diversidade entre as entrevistadas e de fato essa diversidade existe, mas eu me surpreendi com o fato de a grande maioria delas ser branca. Mulheres negras representam uma porcentagem grande entre quem faz aborto no Brasi e conhecendo seus trabalhos anteriores me pareceu improvável você não se atentar para essa questão. Houve algum motivo para que as entrevistadas brancas fossem maioria?

Agradeço por essa pergunta. Buscamos as mulheres por diferentes caminhos, incluindo maternidades e procuradorias públicas em diferentes regiões. Eu mesma fiquei em Recife quase um mês indo a maternidades públicas e quando víamos quem tinha recebido o laudo de incompatível com a vida só encontrávamos mulheres brancas. Naquele momento falei: “Estamos fracassando muito porque sei que a maioria dos abortos no Brasil é feito por mulheres negras, que esse é um problema ainda mais grave para elas”. Foi me dando um desespero, achei que estávamos errando no método de pesquisa. Conforme fomos combinando diferentes métodos, entendi um novo lugar de crueldade do racismo, que é o fato de muitas mulheres negras nem chegarem a receber o diagnóstico. E a essas mulheres, que não fecharam um laudo, nem se oferece a possibilidade de ir à Justiça para interromper a gravidez. Elas chegam ao sétimo, oitavo, nono mês de gravidez e têm um aborto espontâneo ou um bebê prematuro que morre. Ou seja, elas não têm tempo de se preparar para aquela perda. É uma forma de racismo que me parece ainda mais subterrânea e muito cruel. E é um problema do filme, que reflete um problema do país.

Frame do filme Incompatível com a vida. Na imagem, uma mulher negra está sentada em um quintal segurando uma criança em seu colo.
Frame de Incompatível com a vida (2023) (imagem: divulgação)

Há um momento do filme em que a câmera mostra o seu filho nas suas mãos. Como tomou a decisão de incluir essa imagem?

É uma cena que gera repulsa em muitas pessoas. Algumas críticas mencionaram que ela não deveria existir, e imagino que também atrapalhe a carreira do filme em festivais. Todas as opiniões são válidas e entendo a repulsa, mas acho a cena importante por dois motivos. Primeiro, porque tive muita sorte em encontrar alguém que me disse, no tempo entre o diagnóstico e o aborto, que olhar e ter contato com o feto me ajudaria na recuperação do luto. E, de fato, para mim aquilo foi muito importante como autocuidado e como processo de cura. Sei que é violento mostrar, porque é um cadáver, e é pequeno, mas é uma forma de falar: “Se você está passando por isso, pense nessa possibilidade e encare”. Por outro lado, é um grito político. Pouco depois do lançamento do filme no É tudo verdade, um senador pró-vida [Eduardo Girão, do Novo-CE] tentou entregar a réplica de um feto ao ministro [dos Direitos Humanos, Silvio Almeida]. Imagine ser uma mulher que queria ter tido um filho, que teve uma perda gestacional ou um aborto induzido como o meu, que viu o seu feto na mão… Imagine a violência que é ver esse senador fazendo marketing disso. Então também é uma disputa política sobre quem tem o direito de ter esse feto na mão: se são os pró-vida ou os pró-escolha e as mulheres que passaram por essas situações. Eu acho que quem tem o direito de ter esse feto na mão é quem teve o feto real na mão.

O site do jornal americano The New York Times publicou um curta-metragem que você fez a partir de Incompatível com a vida, e neste curta você diz que ter passado por essa experiência a ensinou que “todo aborto é, de alguma forma, causado por uma incompatibilidade com a vida”. Gostaria que você falasse mais sobre isso.

Quem estiver atento verá que o título do filme, Incompatível com a vida, aparece depois de [cartelas de texto que dizem] que no Brasil uma mulher morre a cada dois dias por causa de abortos inseguros e que em Portugal, depois que se legalizou o aborto, nenhuma mulher morreu. Meio milhão de abortos é realizado por ano no Brasil, então a criminalização não faz com que as mulheres deixem de abortar; além de abortar, elas estão morrendo. Então, por um lado, existe uma lei que é incompatível com a vida da mulher. A extrema direita banaliza, como se fazer um aborto fosse tomar uma pílula. E não é. É ruim, é horrível fisicamente. E para muitas mulheres que têm de recorrer à ilegalidade custa um útero, custa a vida reprodutiva. Então eu entendo que se a mulher decide fazer um aborto é porque realmente não é possível pensar em ter um bebê naquele momento da vida. Pode ser que ela não tenha dinheiro, que não tenha tempo de criar um filho porque se não trabalhar não tem comida, que não se veja com condições emocionais. Realmente não é possível, é incompatível com a própria vida pensar na maternidade naquele momento.

Frame do filme Incompatível com a vida. Na imagem, uma mulher está sentada em posição fetal, em uma janela de vidro.
Frame de Incompatível com a vida (2023) (imagem: divulgação)

Para terminar, que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?

Coragem! Façam o que sentem que têm de fazer e arrumem formas de contar as histórias que sentem que têm de ser contadas. Na primeira vez que aplicamos este filme [em um edital], recebemos uma ligação dizendo que ele deveria ser engavetado, que não deveria ser feito. Felizmente tive força para não seguir esse conselho, para entender onde estavam os pontos de incômodo nesse conselho. Acho que nós, mulheres, ouvimos esse tipo de coisa o tempo todo: que a nossa história, a história que queremos contar, não é boa o suficiente, é menor. Se você acredita que uma história tem de ser contada, veja formas de realizar. Faça, porque é importante compartilhar e ir criando visões, sentimentos e vivências mais plurais no cinema. Estamos finalmente começando esta transformação, então que a gente siga, e siga com mais furor, com mais paixão, com mais autoestima. Que a gente se apoie e consiga criar equipes carinhosas. Que a gente se trate bem no set e em todo o processo. Que a gente vá contra o mundo das injustiças e também saiba criar uma atmosfera de respeito entre nós. Que a gente aprenda a criar um cinema mais afetuoso também na forma de fazer.

Retrato colorido da diretora Eliza Capai. Eliza é uma mulher branca, de cabelo longos e castanhos e usa vestido preto. Ela está em pé, em frente a um lago. atrás dela há uma encosta de pedra.
Eliza Capai (imagem: João Pina)

Coluna escrita por:

 Luísa Pécora

Luísa Pécora

Jornalista e criadora do site Mulher no cinema.

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