Márcio Vasconcelos e Tereza Maciel são os novos convidados desta coluna, transformando palavras em imagem e texto
Publicado em 29/12/2021
Atualizado às 15:35 de 22/02/2022
Tereza Maciel
eu tinha a vista pro mar. da janela da sala contemplava a cadência das águas, quanto mais distante mais calmas, as ondas quebravam em câmera lenta. o elevador chegou. café esfriou. maya dormia no sofá. as ondas viravam espumas ali na minha frente. ondas cor-de-rosa, laranja, verde, dependia da hora que eu olhasse.
era bonito ver dali as ondas ganhando volume, texturas, mudando de cor. me sentia completamente feliz.
um dia ultrapassei o limite da janela e coloquei os pés naquela areia. senti a brisa fria das seis da manhã, meu corpo tremia, tinha uns raios de sol despontando no horizonte, eu vi. eu vi as ondas furta-cor tocando os meus pés, elas brilhavam muito e eram como dançar flutuando no ar.
as ondas iam e vinham deixando as pontas dos dedos coloridas, era mágico sentir aquilo. me sentia dentro de um sonho.
e quanto mais eu sentia mais eu tava. e fiquei dentro do sonho. acordei e era sonho. dormi dentro do sonho e ainda era sonho.
Márcio Vasconcelos
Tambor de promessa
– Vozinha, aonde a senhora vai assim, toda arrumada, cheirando a talco e seiva de alfazema?
– Vou lá no Centro Histórico, meu filho.
– Fazer o que, vó?
– Hoje é dia de São Benedito, meu filho! Padroeiro do tambor de crioula e meu santo protetor. Desde o dia que tu nasceste, eu me agarrei com esse santo e só largo ele no meu último dia desta vida. Quando tua mãe estava buchuda de ti, no dia do teu parto tu estavas atravessado e não ias nascer de jeito nenhum. Tivemos que chamar a parteira Judite para ajudar. Meu Deus, foi um desassossego! Corri para o meu quartinho, abri o oratório, peguei São Benedito, comecei a rezar pedindo que tu nascesses logo, gordinho e sadio. Tua mãe gemia de dor e eu conversava baixinho com o meu santo preto. Lá para as tantas da noite, depois de tanto sufoco, ouvi teu choro. Ah! Que alívio! Era o fim do sofrimento. Judite disse que o cordão estava enrolado no teu pescoço e foi difícil de tirar.
– E aí, vó, parou de rezar?
– Sim, parei, mas beijava o santo e chorava ao mesmo tempo de alegria e emoção. Nesse dia fiz uma promessa para agradecer pela tua vida. A partir daquela data eu teria que dançar tambor para São Benedito todo ano no dia dele. Foi esse santo que te trouxe ao mundo assim, bonito e saudável. Sou devota dele e tenho uma verdadeira paixão!
– Poxa, vozinha, então corre que já estou ouvindo o pipocar dos foguetes, o tambor já deve tá aquecendo na fogueira. Toma cuidado na volta, não vem muito tarde.
– Fica tranquilo, meu filho. Lá pela madrugada eu chego.
– São Benedito te proteja, vozinha!
– Amém!
*
Tambor de crioula é uma dança de origem africana, praticada por descendentes de africanos escravizados no Maranhão, em louvor a São Benedito, um dos santos mais populares entre os negros. É uma dança alegre, marcada por muito movimento dos brincantes e muita descontração.
O Dia de São Benedito é comemorado anualmente em 5 de outubro no Brasil. A data é celebrada por toda a comunidade católica como uma homenagem e devoção ao santo considerado o padroeiro dos afrodescendentes, dos cozinheiros e das donas de casa. O tambor de crioula é muito usado para pagamento de promessa pelos devotos de São Benedito.
Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.