Na edição deste mês da coluna “Inventário”, Marina Nacamuli e Walter Thoms transformam a palavra "resistência" em texto e imagem
Publicado em 06/11/2022
Atualizado às 10:02 de 04/11/2022
Marina Nacamuli
Caminhando pelas ruas de Los Angeles, hoje tomadas por moradores de rua, muitos com doenças mentais sérias, encontrei esse carrinho de supermercado. Ele carrega todos os bens de uma pessoa, inclusive um buquê de flores quase mortas, simbolismo de esperança para uma vida melhor.
Resistir é manter-se firme. O prefixo “re” já implica a intensidade da própria ação: “existir”. Nós, humanos, costumamos acreditar que devemos resistir às mudanças, sejam elas positivas ou negativas…
Walter Thoms
Caminho pela cidade pensando na precarização da vida.
Ao caminhar, é possível sentir as ruas saturadas dos traumas sociais dos últimos anos.
Apresso meus passos e não consigo deixar de pensar na destruição sistemática de diversos ecossistemas por parte do atual Governo Federal.
Enquanto cruzo o tráfego, eu me permito sonhar acordado em meio a um mundo que se despedaça. Sou presenteado com imagens de resistência:
- Uma grade de ferro quilométrica pintada de verde se estende por diversas quadras. Sua função é impedir as pessoas de cruzar a canaleta do ônibus. Em um pequeno pedaço de terra de 20 cm x 20 cm, um abacateiro insiste em crescer entre a grade, sua ascensão não abala a estrutura de ferro, tampouco incomoda a visibilidade de pedestres ou motoristas; porém num ato de controle alguém da rua poda os galhos sem autorização. Não satisfeito, o abacateiro busca se expandir novamente entre o concreto e a grade de ferro.
- Um guapuruvu forte e esbelto pulsa vitalidade no centro da cidade. Quando o sol incide sobre sua copa, ele gentilmente projeta uma sombra que acolhe alguns trabalhadores no intervalo do almoço. Um deles tira um tempo para fumar e ao finalizar seu cigarro escolhe tirar um cochilo encostado no tronco da árvore. Com suas raízes brilhantes, o guapuruvu embala o sono do trabalhador, mas por baixo da terra deforma a calçada de paver com várias ondulações como se ali tivesse passado um sutil terremoto.
- 300 anos é a idade aproximada de uma senhora paineira; com seus 35 metros de altura, ela é vista por todos na região em que habita. Ao longo das décadas, muitas foram as alterações geográficas no seu entorno; ela carrega consigo toda a memória de um bairro. Sua copa, repleta de flores rosa, é vista de longe na paisagem. É possível vislumbrar a interação de dezenas de maritacas que pela manhã entoam um canto uníssono enquanto visitam a árvore. No fim da tarde, outras visitantes também aparecem em dezenas, são borboletas-maracujá-silvestres que em um ritual coletivo dançam com o vento entre as folhas, uma verdadeira sinfonia de cores e sons.
- Vários coqueiros jerivá enfeitam a entrada de um prédio desses de caráter estéril decorado com pastilhas nas cores cinza e creme. Em uma terça-feira às 15 horas, três tucanos de bico verde buscam alimento e fazem dos coqueiros seu banquete. Noutro dia, em frente ao prédio, um carcará adulto caminha às 7 horas da manhã de um sábado e não se intimida com a presença de pessoas que o admiram numa distância de 3 metros. Como quem se despede de um amigo, rapidamente alça voo até o maior coqueiro para entoar seu canto e hipnotiza todos que estão com os ouvidos atentos.
- Nos arredores de um parque urbano, um grupo de seres cresce silenciosamente longe do interesse das pessoas. Agrupados no chão, próximos das raízes de árvores ou crescendo em troncos já caídos, criam cidades inteiras. É possível se maravilhar com uma família de Auricularia polytricha, cogumelos comestíveis agrupados em uma árvore, e logo ao lado com um grupo de Pycnoporus sanguineus, que auxilia a decomposição de outra árvore. Mais escondido no meio do parque, com um ar de mistério e maravilha, um mixomiceto amarelo se alimenta com inteligência de outros fungos em um tronco robusto. Ali nesse pedaço de natureza, todo um microcosmo fortalece um ciclo essencial para o bem comum.
Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.