Neste mês, Daniela Paoliello e Bruno Inokawa transformam o medo em imagem e texto
Publicado em 27/10/2021
Atualizado às 15:38 de 27/07/2022
Bruno Inokawa
O homem, todos os dias, no mesmo horário, caminha de sua casa até a beira do rio. Todos os dias, o homem traz consigo um banquinho dobrável de madeira, um caderno e uma caneta preta de ponta fina. O homem ajeita o banquinho de madeira, senta-se confortavelmente, olha para o rio, abre o caderno e desenha, todos os dias no mesmo lugar. O espetáculo, que se repete todos os dias, no mesmo horário e no mesmo lugar, é visto da janela da sala pelo menino. O menino, todos os dias, no mesmo horário, vai até a janela da sala para ver o homem caminhar, sentar, abrir o caderno e desenhar à beira do rio.
Certo dia, o menino decidiu ir ao encontro do homem e perguntou:
– O que você está desenhando?
– As ondas – respondeu o homem, com as mãos e o olhar fixos no caderno.
– Você desenha as ondas todos os dias?
– Sim, todos os dias.
– Por quê? – questionou o menino, confuso e sem entender o homem.
– Porque temo que irei esquecê-las.
O menino hesitou, olhou para o rio e, depois de alguns segundos, voltou-se para o homem e respondeu:
– Se você ficar com os olhos fechados por um tempinho, dá para ver e ouvir o barulho das ondas de qualquer lugar, sabia?
O homem de repente parou de desenhar, olhou profundamente para o rio e, surpreso, indagou:
– É mesmo...?
O homem então fechou seu caderno, guardou sua caneta no bolso, levantou-se, recolheu seu banquinho de madeira e iniciou sua caminhada de volta. Já o menino permaneceu de pé e assistiu ao homem lentamente ir embora.
Depois daquele dia, o homem não voltou mais à beira do rio para desenhar. Mas o menino, todos os dias, no mesmo horário, vai até a janela da sala com a esperança de ver novamente o homem.
Daniela Paoliello
Observação 1:
São 18 horas. O vento é quente e úmido. Mastigo a areia fina que se deposita em minha boca contra minha vontade. Meus dentes rangem. Entre meus lábios um deserto inteiro. Sentir na boca o gosto do tempo. Sobre os olhos o peso da paisagem. Aquilo que coloca o corpo em movimento mais intenso é também o que lhe exaure. Um excesso de sentido que perturba: corpo em excesso. As nuvens anunciam uma tempestade. Os olhos se acostumam aos poucos com a escuridão. Três silhuetas se aproximam. Boa noite. Coração desacelera aos poucos. Dois clarões em cada ponta da praia.
Observação 2:
Seis moedas jogadas ao acaso. Na natureza, água sobre trovão representa uma chuva com trovoada, que em situações limites remete aos cataclismos […] remete ao Caos Primordial, que antecede o surgimento do Universo.¹ O trovão indica um furo no escuro, uma ruptura, uma força explosiva que rompe. Água representa dificuldade, armadilha, perigo exterior, um obstáculo que limita e fortalece ao mesmo tempo a atividade ligada ao trovão. O ideograma Zhun aponta para uma força criadora e originária, é o ideograma da germinação.
Observação 3:
São 3 horas da manhã, Lua quase cheia, maré baixa, vento forte, nuvens densas, gosto de cajá-manga e cachaça na boca. Jânio me pergunta: você se lembra do dia do seu nascimento? Se não sabemos nosso início, se não conseguimos lembrar de como viemos ao mundo, como vamos saber o fim?²
Observação 4:
Das coisas que nos separam com abismos. Medir a profundidade da distância.
Observação 5:
Você gostaria de ler o livro da sua vida?³
Observação 6:
Fotografar sem ver a cena. Dupla cegueira. “Não ver” pelo gesto de tornar-se objeto da própria captura, dar-se à câmera como imagem, perder o controle do olhar. E “não ver” por uma questão óptica, pela ausência de luz. Processo escultórico negativo de escavar uma forma no escuro. Fotografar cenas que apenas a câmera é capaz de revelar, que o olho não alcança. Escavar, abrir as formas visíveis.⁴ Caminho pela praia buscando resquícios de brilho. Preciso deixar que meus olhos se acostumem à escuridão.
Observação 7:
O artista deve estar sempre afetado pelo risco.
Observação 8:
A conversa com Jânio prossegue e ele diz: Se não houvesse Lua nem estrelas, seria tudo trevas. E, se alguém acendesse um isqueiro, qualquer um que visse, mesmo de longe, seria atraído pela luz.
Observação 9:
Cada um guarda mais o seu segredo, sua mão fechada, sua boca aberta, seu peito deserto, sua mão parada, lacrada, selada, molhada de medo.⁵
1. I Ching, o tratado das mutações, de Wu Jyh Cherng.
2. Jânio, artesão morador de Santo André, na Bahia.
3. Livro de Líbero, Alfredo Nugent Setubal.
4. A semelhança informe: ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille, de Didi-Huberman.
5. “Na hora do almoço”, música de Belchior.
Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.