Em novo texto para a sua coluna, Ramon Vitral afirma: "Há tempos não lia tão pouco quadrinhos, há tempos não lia tão bem quadrinhos"
Publicado em 26/07/2020
Atualizado às 17:21 de 01/06/2022
Há tempos não lia tão pouco quadrinhos, há tempos não lia tão bem quadrinhos. A pandemia do novo coronavírus adiou lançamentos e eventos, alterou planos de artistas e editoras e impulsionou uma crise financeira que inibe certos gastos. Arte é fundamental, e mais do que nunca em tempos de reacionarismo crescente, mas ninguém precisa ler toda e qualquer novidade agora e imediatamente. Ser mais seletivo em relação às minhas leituras tem rendido leituras mais interessantes.
Tenho dificuldade com quadrinhos digitais, eu me distraio com facilidade em frente ao computador e no celular, não me concentro como ao ler edições impressas. Nas telas, prefiro ler tiras. Aguardo ansiosamente pelos trabalhos do João Montanaro. Me impressiona a habilidade dele em expor em um único quadro os absurdos da atual realidade política-social-epidemiológica brasileira.
A Laerte também não tem erro, mas ela já faz parte das minhas leituras diárias desde criança. Ela ecoa como ninguém o assombro de grande parte da população em relação aos atuais governantes. As tiras de Estela May para a Folha de S.Paulo também entraram nesta minha rotina.
Recebo notificações a cada nova tira do Paulo Moreira no Instagram. Não perco uma, mesmo as que não entendo. Talvez as minhas preferidas sejam as que não entendo. Aliás, ele criou toda uma saga para leitores que não entendem suas tirinhas. Pumii do Vulcão, do Rogi Silva, é outra que não deixo passar. É poesia em quadrinhos sobre os habitantes de um vulcão.
Tenho lido os quadrinhos publicados semanalmente no selo Mina de HQ. Descobri algumas artistas que não conhecia, esbarrei com algumas que já admirava e encontrei algumas pequenas pérolas sobre estes tempos estranhos que estamos vivendo. Recomendo em particular as HQs da Manzanna, da Cecilia Marins, da Aline Zouvi, da Laura Athayde e da Gabriela Güllich.
Li recentemente a terceira edição da revista Pé-de-Cabra, organizada pelo quadrinista e editor Carlos Panhoca e com capa de Benson Chin. Reúne HQs curtas de vários autores com o tema “televisão”. Também me apresentou alguns autores que não conhecia. Enfatizo a presença de seis páginas do Fabio Zimbres, dos grandes nomes dos quadrinhos nacionais, e recomendo com todas as forças as quatro páginas de Fábio Lyra reinterpretando os personagens de Os Simpsons.
Nessa vibe mais underground também li Supermercadinho Brasil, do Lobo Ramirez, publicado pelo selo Escória Comix. Uma pequena crônica em quadrinhos sobre a sociedade brasileira a partir da investigação do assassinato de uma criança em um mercado de rua.
Parei para reler com calma os nove volumes de Saga, épico espacial roteirizado por Brian K. Vaughan e ilustrado por Fiona Staples, publicado por aqui pela editora Devir. Sai desde 2012 e está em hiato desde setembro de 2018 – os autores dizem que o que saiu até agora equivale à metade da série. Difícil imaginar algo que prometa tanto e entregue ainda mais como Saga. Se passa em outras galáxias, muito longe daqui, mas como toda boa fantasia fala sobre o mundo hoje.
Aí que aproveitei para começar a reler Y: o Último Homem, também do Brian K. Vaughan, em parceria com a quadrinista Pia Guerra. Trata-se de um clássico do início dos anos 2000, e seu mote é uma epidemia que matou todos os indivíduos com cromossomo Y no planeta. Uma HQ que já era boa e ficou ainda mais atual nestes tempos de pandemia. Foi republicada recentemente, num formato de luxo descabido que encareceu a obra. Uma pena.
Li a coletânea Todo Wood&Stock, com a íntegra das tiras do Angeli protagonizadas pelos hippies Wood e Stock. Tô na metade da Toda Rê Bordosa e logo mais invisto na Todo Bob Cuspe. Junto com a Laerte, o Angeli moldou muito do meu gosto por quadrinhos. Às vezes tenho a impressão de que tudo o que mais me interessa em termos de HQ é derivado desses dois. A experimentação dela, a sujeira dele. E gosto muito dos trabalhos do Angeli com personagens, mas ainda mais de seus trabalhos “em crise”, com tiras mais introspectivas, e outras nas quais a cidade é a protagonista. Tomara que isso também seja republicado um dia.
Reli os três álbuns do norueguês Jason publicados por aqui pela editora Mino: Sshhhh!, Eu Matei Adolf Hitler! e A Gangue da Margem Direita.
O primeiro é uma coletânea de HQs mudas meio nonsense e o segundo uma ficção científica policial sobre um assassino profissional em crise com a namorada que é contratado por um cientista para viajar no tempo e matar Hitler, mas o terceiro talvez seja o meu preferido. Jason apresenta Ezra Pound, James Joyce, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway como quadrinistas insatisfeitos com os rumos de suas carreiras e suas dificuldades financeiras na Paris dos anos 1920, então eles arquitetam um roubo. Sobra elegância e ritmo nos trabalhos do Jason.
Há algumas semanas reli Sabrina, do norte-americano Nick Drnaso, publicada por aqui pela editora Veneta. Também trata dos rumos tristes da sociedade ocidental nos últimos anos. Baixo-astral demais, mas essencial, dos lançamentos mais importantes do ano. Aliás, ainda não li, mas tenho certeza de que se trata de outra das publicações grandiosas de 2020: Maxwell – o Gato Mágico, publicado pela Pipoca & Nanquim, reunindo as tiras escritas e ilustradas por Alan Moore no início de sua carreira.
Para não passar batido, uma leitura que não recomendo: Superman – Ano Um, escrita pelo Frank Miller e ilustrada pelo John Romita Jr. Arrisco cada vez menos em HQs de super-heróis. Investi por conta do histórico de bons trabalhos dos dois autores. Desisti na segunda edição. Dos textos mais constrangedores que já li.
E já comentei em edições prévias da coluna sobre Sunny, do Taiyo Matsumoto, e O Ditador Frankenstein, coletânea com trabalhos do Julio Shimamoto. São mais ou menos esses os quadrinhos que me acompanharam nestes meses de isolamento. Foram boas companhias e talvez também possam ser para você. Uma de cada vez e sem pressa. Se possível, via livrarias independentes. Evite lojas de carecas bilionários com aspirações de dominação global naipe Lex Luthor.
Três perguntas para… Gabriel Dantas, autor de Abandonado por Elena e Talvez Tudo Fique Bem
O entrevistado da seção que fecha a décima edição da Sarjeta é o quadrinista e ilustrador Gabriel Dantas, autor das HQs Abandonado por Elena e Talvez Tudo Fique Bem. Os títulos estão disponíveis de graça nas contas dele no Twitter e no Instagram.
O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?
É o fato de que os autores e leitores dos quadrinhos nacionais estão cada vez mais atraídos por obras que não se pareçam nem um pouco com o quadrinho de indústria. Basta um passeio rápido pelas redes sociais que encontramos diversos artistas com uma voz tão única que se torna uma tarefa quase impossível rastrear as possíveis inspirações do autor. Enfim, o Brasil é um país com uma riqueza cultural muito grande e diversa e isso se reflete diretamente na arte que produzimos.
Como leitor e autor, o que mais te interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?
Eu me interesso por quadrinhos que tenham algo a dizer e que se comuniquem bem com os leitores. Que eu consiga me conectar de alguma forma com aquilo para que eu chegue até o último quadro. Ah, e se for engraçado também ganha uns pontos no meu coração.
Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?
Lembro muito bem de ir à banca de um supermercado aqui da minha cidade e voltar com um gibi da Magali. Não sei qual edição era, mas lembro que ela estava num helicóptero de melancia. Tinha uma história dela com o Mingau naquele gibizinho que era muito engraçada e me fazia reler um monte. Depois disso, eu estava pegando folhas de papel, dobrando no meio, grampeando e fazendo meus próprios gibis com lápis e giz de cera; 90% das vezes protagonizados por animais. Eu deveria ter uns 4 para 5 anos e, desde então, nunca mais parei de fazer quadrinhos.