O primeiro longa-metragem de Lillah Halla traz a história de Sofía, jovem e talentosa jogadora de vôlei que descobre uma gravidez indesejada
Publicado em 21/02/2024
Atualizado às 20:09 de 21/02/2024
por Luísa Pécora
No vôlei, levantamento é a ação que prepara o ataque: o momento no qual um jogador passa a bola para outro buscando dar-lhe as melhores condições para marcar um ponto. Mas levante também pode ser um ato de insurreição: a mobilização conjunta de um grupo de indivíduos contra algo ou alguém. Ambas as ideias estão contidas na trama e no título do primeiro longa-metragem da diretora brasileira Lillah Halla, o qual estreia no dia 22 de fevereiro nos cinemas. Levante apresenta a narrativa de Sofía (Ayomi Domenica), jovem e talentosa jogadora de vôlei que descobre uma gravidez indesejada e, ao tentar interrompê-la, torna-se alvo de um grupo fundamentalista.
Outros filmes ficcionais recentes – incluindo os ótimos O acontecimento (2022), da francesa Audrey Diwan, e Nunca, raramente, às vezes, sempre (2020), da estadunidense Eliza Hittman – contaram histórias de jovens mulheres que buscaram interromper uma gravidez quando não era possível fazê-lo de forma legal. Porém, enquanto muitos desses longas retrataram o quão solitária pode ser essa experiência, Levante cerca sua protagonista com o apoio do pai, da treinadora e, principalmente, das pessoas que jogam com ela. A situação de Sofía não é fácil. No entanto, o que chama atenção do espectador não é o grupo que a persegue, e sim aquele que a defende.
“Para nós, mais do que um filme sobre aborto, Levante é um filme sobre a rede de apoio e de afetos que mantém a pessoa firme para conquistar o que deseja”, afirmou a roteirista venezuelana María Elena Morán, que conversou com a coluna acompanhada da corroteirista e diretora Lillah Halla. As duas se conheceram na Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba e trabalharam no projeto durante oito anos, incluindo os quatro nos quais Jair Bolsonaro ocupou a Presidência do Brasil. Ao longo desse período, sentiram necessidade cada vez maior de colocar a amizade, e não o medo, no centro da quadra.
“O título já está muito baseado na ideia de que um levante não se faz sozinho”, afirmou a diretora. E completa: “A importância da organização coletiva, da rede de apoio, do afeto, da alegria e do desejo como força e estratégia política – esses pontos são, para nós, a essência do projeto, que transcende inclusive a questão do aborto”.
Realizado numa coprodução entre Brasil, Uruguai e França, Levante ganhou o Prêmio Fipresci (entregue pela Federação Internacional de Críticos de Cinema) no Festival de Cannes e o troféu de Melhor Direção no Festival do Rio. A equipe majoritariamente feminina também inclui a diretora de fotografia Wilssa Esser, a montadora Eva Randolph, a diretora de arte Maíra Mesquita e a compositora Maria Beraldo, entre outras mulheres.
Leia a entrevista com Lillah Halla e María Elena Morán.
Levante se diferencia de outros filmes recentes que tocam na questão do aborto ao mostrar uma personagem que conta com o apoio da família, da treinadora e do círculo de amigos. Por que quiseram abordar o tema dessa forma?
María Elena Morán: Tínhamos [essa abordagem] evidente desde o começo, pois vários filmes que conhecíamos tocavam no assunto do ponto de vista da solidão. Queríamos fugir disso e entender as forças que estavam em jogo, tanto a favor quanto contra. Por esse motivo, sempre pensávamos na quadra de vôlei e nos times que se enfrentam nesse campo. Isso foi se tornando cada vez mais vital. Fomos dando mais espaço para o time, que é a família que ela escolhe, porque percebemos que ali estava a verdadeira força do longa. Para nós, mais do que uma obra sobre aborto, Levante é sobre essa rede de apoio e de afetos que é o que salva, o que defende, o que mantém a pessoa firme para conquistar o que deseja.
Lillah Halla: O título já está baseado na ideia de que um levante não se faz sozinho. A importância da organização coletiva, da rede de apoio, do afeto, da alegria e do desejo como força e estratégia política – esses pontos são, para nós, a essência do projeto, que transcende inclusive a questão do aborto. Se qualquer pessoa do time passasse por qualquer situação que ameaçasse sua possibilidade de existência, soberania e agência, o filme teria um desenlace muito parecido.
O time de Sofía é queer, mas o filme não se ocupa em definir ou explicitar se cada integrante é cis, trans, lésbica, hétero, não binária etc. É algo que não importa e, ao mesmo tempo, importa, porque esta não parece ter sido uma escolha narrativa aleatória ou gratuita. Falem um pouco sobre a formação do elenco e de por que foi importante ter na tela este time, e não qualquer outro time.
L. H.: [É algo que] importa como presença, existência e possibilidade, mas que não importa como caracterização. O filme questiona justamente essas caixinhas e coloca para jogo o quão nocivas elas podem ser. Se você olhar uma quadra de vôlei de cima, vai ver que são dois polos binários, assim como a fronteira entre Brasil e Uruguai, tão presente no filme, é baseada numa ideia binária e numa cartografia política. Tudo isso (esses papéis e cartografias socialmente definidos) estão ali como armadilha. Pensando um pouco além, escolher um elenco também é se encontrar com pessoas que têm visões de mundo, vozes e desejos de troca que se somam aos nossos. Cada uma das pessoas [escolhidas para atuar no filme] representa isso para nós. Tanto que, quando fechamos o time, não sabíamos quem iria ser a Sofía, quem iria ser a Bel, quem iria ser a capitã. Fechamos o time e sabíamos que aquelas eram as pessoas com quem iríamos trabalhar. E então começamos a trabalhar. É um pouco como a Sol [personagem de Grace Passô, a técnica que forma o time de vôlei]: no momento em que você cria um microcosmo numa obra, [consegue] possibilitar a presença de mundos, vidas e vozes nos quais acredita.
Se o elenco se formou sem que as personagens estivessem atribuídas, o que fez vocês pensarem que a Ayomi Domenica era a pessoa certa para interpretar Sofía?
L. H.: Tudo! Tudo o que você vê no filme. Ela tem a força, a maturidade, a coragem, a presença e a multiplicidade de tons de que Sofía precisava. E, além disso, nossa troca foi maravilhosa desde o começo. Acabamos tendo afinidade grande com uma galera de teatro, porque nosso processo foi de experimentação: não buscamos pessoas que coubessem exatamente dentro das personagens que escrevemos, mas, sim, pessoas que estivessem a fim dessa troca. Isto definiu a conversa com a Dodô [como ela se refere à atriz Ayomi Domenica]: a ideia de buscarmos juntas quem era a Sofía. E foi um processo que começou comigo e com a Mari [Maria Elena Morán] em 2015 e terminou na gravação do ADR [como é conhecido o processo de regravar alguns diálogos depois da filmagem]. Acho que o mais legal para mim, ao longo de toda a realização do filme, foi essa porosidade. Quando os ensaios começaram, já tínhamos nove versões do roteiro, mas a Mari teve desprendimento para se abrir a quem estava chegando e revisar as coisas de novo. Foi um processo vivo o tempo todo. Não era algo completamente centrado na figura da direção, e sim uma grande colaboração.
Como foi essa experiência para você, María?
M. E. M.: Desde que começamos a trabalhar juntas, Lillah e eu sempre tivemos desapego e abertura para testar coisas. O processo de escrever as últimas versões do texto, quando já estavam acontecendo os ensaios, foi uma aula sobre [a importância de] entender o roteiro como algo vivo. Apegar-se ao que está escrito ou à mise-en-scène que você pensou é, na verdade, tirar vida do processo. Para mim, foi um privilégio poder abrir o roteiro e ver o que ressoava e o que estava falhando. Eu assistia aos ensaios, que eram todos filmados, e mexia nos diálogos, depois isso voltava [para o elenco] e voltava de novo [para ela]. É um pouco exaustivo, e nem sempre fácil, mas faz parte de deixar arejar o processo. Quando começamos a filmar, Lillah e eu trabalhávamos no filme havia mais de seis anos, então nossa visão estava meio acostumada. Talvez a gente já tivesse perdido um pouco do tesão, mas aí entrou uma galera com o tesão lá em cima. Como não aproveitar isso? Como não deixar isso explodir? Acho que essa força está toda ali na tela. Se não tivéssemos feito dessa forma, o filme não seria o que é.
A trilha sonora também tem grande importância narrativa. Como foi esse trabalho?
L. H.: Começou com a Badsista [nome artístico da artista musical Rafaela Andrade] no momento dos ensaios, quando pedi que as pessoas trouxessem suas playlists e aquilo que estavam ouvindo. Ela chegou com força, criando algumas músicas e musicando letras escritas pela Onna [Silva, que interpreta Nicolle] e pela Dodô. Esse primeiro encontro norteou um pouco o caminho, e depois a Maria Beraldo entrou para realmente pensar a trilha toda. Ela compôs muita coisa, chamou outras pessoas para cantar, musicou e fez uma curadoria de grupos que tinham a ver com o universo do filme. Foi um trabalho muito parecido com o da direção e o de roteiro nesse sentido de [combinar] pesquisa e porosidade. Ela propunha coisas, a gente testava, via o que chegava e o que não chegava, ia revendo para chegar à melhor essência. Foi um trabalho superárduo, mas maravilhoso. Conforme rodamos o mundo nos festivais, pessoas do Japão, do Líbano e de vários outros lugares me escreveram para perguntar quando a trilha vai sair nas plataformas.
E vai sair?
L. H.: Vai. Em breve.
Lillah, você foi uma das fundadoras do Coletivo Vermelha, criado em 2014 para promover discussões e ações ligadas às questões de gênero no audiovisual. Como avalia esse período de dez anos no que diz respeito a esse assunto?
L. H.: O Vermelha teve importância muito grande na minha formação. Em um primeiro momento, por fortalecer meu pensamento político ligado a gênero e por criar espaços seguros de troca e de rede, palavra tão importante em Levante. E, em um segundo momento, por me fazer não só mergulhar na questão da representatividade na frente e por trás das câmeras, como também refletir sobre mitos fundacionais e começar a estudar teoria queer. Acho que sim, mudou muita coisa [nesses dez anos], tanto para mim quanto para o mundo. Porém, ao mesmo tempo, não. Não o suficiente. Estamos longe de falar de um lugar de justiça e respeito, e de agência criativa, financeira e física, tanto em relação às mulheres e a pessoas queer no cinema quanto fora dele. Após terminar meu primeiro longa, parece-me importante ter em conta [a necessidade de] tirar do cinema as piores características da sociedade patriarcal. A configuração industrial do cinema vem contaminada de hierarquia, de ideologias, de maneiras de fazer, de figuras heroicas, de autoridades, de violências. Há uma necessidade grande de revisar o que há de hegemônico na maneira de fazer o que a gente faz. E, sim, falta muito. Mal começamos. Mas começamos. E você, María? Como vê esses últimos dez anos no que diz respeito às questões de gênero no audiovisual?
M. E. M.: Pensando no mercado, em termos bem práticos, vemos mais mulheres finalmente tendo acesso a trabalho em áreas como direção de fotografia e som, que são muito dominadas por homens. Mas tenho a sensação de que ainda estamos num momento em que tudo precisa ser meio cota. Não há como retirar políticas públicas [que fomentam igualdade de gênero], tudo ainda tem de ser meio supervisionado. E, para além do gênero, pensando nos modelos hegemônicos e nesse funcionamento patriarcal do audiovisual, ainda temos coisas tão absurdas quanto diretores e roteiristas não ganharem direito de autor. É um modo de funcionamento muito precarizado. Parece que você tem de amar muito [este trabalho], porque senão não dá conta.
Que conselho vocês dariam às mulheres que querem trabalhar no cinema?
L. H.: Escolham seus colaboradores. Cada porta fechada que parece importante também possibilita um fluxo de energia para que as portas que de fato importam possam se abrir quando chegar o momento. E, assim como o levante, o cinema não se faz sozinho. Além disso, questione-se todo o tempo, porque você pode estar pisando em um lugar de privilégio. Como você lida com isso? De que maneira você pisa para abrir caminho? De que maneira você pisa junto com mais gente? No fim, as histórias atrás do fazer a história são tão ou mais importantes do que a história mesmo.
M. E. M.: Diria mais ou menos a mesma coisa. Cheguei ao Brasil há 11 anos e foi um baque sentir que estava sozinha, que tinha perdido a comunidade que havia feito em Cuba. Só comecei a sentir que estava possibilitada a fazer cinema novamente quando Lillah e eu nos unimos para trabalhar, porque ela tem um talento particular para juntar pessoas e criar redes. É um pouco aquela coisa de encontrar a sua tribo ou a sua galera. Não gosto da expressão “dar voz” – prefiro “dar ouvidos”, porque voz a gente já tem, o que precisamos é poder falar e ser ouvido. E, para mim, a única forma de sobreviver no cinema, na literatura e em qualquer arte é deixar que entrem as pessoas que têm um clique com você, com quem você dialoga nos sentidos artístico e político, que estão completamente entrelaçados. A gente vive por esse trabalho, mas também passa muito perrengue. Então, precisamos estar com as pessoas certas.