As maravilhas de uma música que extrapola gêneros
Publicado em 21/11/2023
Atualizado às 09:02 de 21/11/2023
Em 2018, quando lançou Mormaço queima, Ana Frango Elétrico, cantora, compositora, instrumentista, produtora, artista visual e escritora, deixou claro que não era apenas mais uma pessoa na multidão. Com texto afiado e debochado, canções que fugiam do lugar-comum, instrumentação criativa, senso estético apurado e certo ar naive tropicalista, Ana dava seus primeiros passos com firmeza e bastante jogo de cintura, dividindo a produção do álbum com Guilherme Lirio, Gustavo Benjão, Marcelo Callado e Thiago Nassif.
No ano seguinte, aprofundando seu mergulho na produção, estabeleceu uma parceria com Martin Scian para lançar o ótimo Little electric chicken heart – o experimentalismo do álbum anterior deu lugar a uma pesquisa no universo musical, principalmente dos anos 1950, de artistas como Nora Ney, Johnny Alf e Anita Odayos. O mais interessante desse processo é constatar a maturidade alcançada por ela, sem que fossem perdidos o frescor e a criatividade, agora somados a arranjos mais elaborados e sofisticados. Não foi por acaso que Little electric chicken heart foi indicado ao Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa e que Ana ganhou o Prêmio de Artista Revelação, entregue pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Além disso, ela caiu nas graças de Anthony Fantano, crítico de música estadunidense, e do francês Giles Peterson, radialista, DJ e fundador das gravadoras britânicas Acid Jazz, Talkin’ Loud e Brownswood Recordings, o que acabou dando um impulso internacional a seu nome.
Com a chegada da pandemia, além de começar a desenhar o que viria a dar o tom de seu trabalho seguinte, com os singles “Mama planta baby” e “Mulher homem bicho”, Ana passou a se dedicar mais à produção, sendo a responsável pelos elogiados álbuns de estreia das bandas Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo (com seu disco homônimo, lançado em 2021), e Bala Desejo (com Sim sim sim, lançado em 2022). Ainda teve tempo de lançar o livro Escoliose: paralelismo miúdo, que reúne poemas, gravuras e ilustrações feitos entre 2015 e 2019, fazer a foto da capa de No reino dos afetos, de Bruno Berle, em 2022, e a pós-produção de Música do esquecimento, segundo álbum de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda Tempo, e produzir Baby blue, segundo álbum de Julia Branco, ambos em 2023.
A experiência com os trabalhos de outros artistas deu a Ana ainda mais desenvoltura como produtora, o que acabou sendo fundamental para seu ponto alto até aqui, o novo e aclamado (com toda justiça!) Me chama de gato que eu sou sua, lançado no Brasil pelo selo Risco, na Inglaterra pelo Mr. Bongo e no Japão pela Think! Records, com um incrível design gráfico assinado por Maria Cau Levy.
Imersa no estúdio com os músicos que participaram do disco e com o que queria bem definido em sua cabeça, Ana conduziu o processo, misturando sonoridades dos anos 1970 e 1980, numa pegada disco, soul, rock, pop e jazzy, sem que em nenhum momento o álbum soasse datado. Muito pelo contrário! Me chama de gato que eu sou sua é, musicalmente, atualíssimo, assim como a temática queer que permeia as letras. O disco é sexual, sem cair nos clichês ultradesgastados do pop hypado, que tomou conta dos palcos, das plataformas digitais, dos blogs e das rádios mainstream. Ana tira sarro de tudo isso e passa ao largo, distribuindo deboche, ironia e, principalmente, inteligência. As questões ligadas ao não binarismo, aos gêneros e à sexualidade dialogam perfeitamente com a multiplicidade de influências musicais, fazendo deste o seu álbum mais multifacetado, porém o de maior unidade no resultado. O que nos mostra a tamanha sagacidade da artista no desenvolvimento conceitual, assim como na parte técnica.
Das dez faixas, duas são assinadas apenas por Ana: “Insista em mim” e “Let’s go before again”; quatro com parceiros diversos: “Dela”, com Joca e Pedro Amparo; “Nuvem vermelha”, com Marina Nemésio; “Coisa maluca”, com Vovô Bebê; e “Boy of stranger things”, com Alberto Continentino. As outras quatro são: “Electric fish”, parceria de Bruno Cosentino com Marcio Bulk e Sylvio Fraga; “Camelo azul”, de Victor Conduru; “Debaixo do pano”, de Sophia Chablau; e “Dr. Sabe Tudo”, de Jonas Sá e Rubinho Jacobina.
Para esta empreitada e com sua direção artística, Ana convocou nomes de altíssimo nível, que executaram com extrema competência suas ideias musicais, inclusive trazendo uma enorme contribuição. Na ficha técnica constam: Alberto Continentino no baixo; Guilherme Lirio na guitarra; Sérgio Machado na bateria; Marcelo Costa na percussão; Lux Ferreira no wurlitzer e no synth; e Thomas Jagoda no synth bass e no synth pad. Marlon Sette, além do trombone, foi responsável pelos arranjos de metais, que tiveram Diogo Gomes no trompete e Gilberto Pereira e Jorge Continentino nos saxofones e nas flautas. Dora Morelenbaum, que ao lado de Calu participou dos vocais, assinou os arranjos de cordas, executadas por Luisa de Castro, Thiago Teixeira, Tomaz Soares e Ivan Scheinvar nos violinos; Thais Ferreira e Daniel Silva nos cellos; e Felipe Ferreira na viola. Ainda participam Thomas Harres no tamborim; Carla Rincon no violino; Aline Gonçalves no clarone, na clarineta e na flauta; Pablo Carvalho na percussão; Vovô Bebê na flauta; Rodrigo Maré na percussão; e Joca no vocal em Dela.
Com Me chama de gato que eu sou sua, Ana Frango Elétrico revisita sonoridades passadas do pop brasileiro e internacional e os atualiza em um álbum que soa atemporal. Os temas abordados, por mais pessoais que sejam, algumas vezes até dolorosos, sinalizam questões que estão cada vez mais ganhando espaço e aqui são tratadas com a leveza e a naturalidade de quem percebe, como diz um trecho de “Debaixo do pano”, que: “abaixo do céu tudo é chão e acima do chão tudo pode ser”.
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