Desde o dia 15 de abril, a plataforma de streaming Itaú Cultural Play disponibiliza a "Mostra Helena Solberg", com cinco obras da premiada cineasta brasileira
Publicado em 27/04/2022
Atualizado às 12:21 de 04/01/2023
Conta a pesquisadora Mariana Tavares, uma das principais especialistas na obra da diretora Helena Solberg, que o lançamento do documentário Carmen Miranda: banana is my business, em 1995, pegou muita gente de surpresa. Na época, o trabalho de Helena era tão desconhecido no Brasil que grande parte dos críticos, jornalistas e pesquisadores equivocadamente pensou que seu 12o filme era, na verdade, o primeiro.
É provável que parte desse desconhecimento se devesse ao fato de a diretora brasileira ter realizado a maioria de seus filmes nos Estados Unidos, onde viveu por 32 anos. Mas também é provável que Helena tenha recebido menos atenção do que deveria por ser uma mulher em uma profissão dominada por homens, ainda mais nos anos 1960 e 1970, quando começou sua carreira. Como muitas diretoras no Brasil e no mundo, ela tem sido “redescoberta” graças ao crescente debate sobre a igualdade de gênero no cinema. Em 2014, foi homenageada pelo festival É tudo verdade; em 2018, ganhou retrospectiva organizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB); e agora é tema de uma mostra com cinco filmes na Itaú Cultural Play, plataforma gratuita de streaming do Itaú Cultural (IC).
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Em quase 60 anos de carreira, e explorando principalmente o documentário, Helena abordou a luta dos povos indígenas em Terra dos bravos (1986); a influência da Igreja católica em A terra proibida (1990); a relação entre música e poesia em Palavra encantada (2008); a transformação social por meio da arte em Alma da gente (2013); a luta armada durante a ditadura militar em Retrato de um terrorista (1985); e a situação política de países latino-americanos em Nicarágua hoje (1982), Chile: pela razão ou pela força (1983) e A conexão brasileira, a luta pela democracia (1982).
Um tema especialmente presente em sua obra é a questão de gênero – aliás, não é exagero dizer que o cinema de Helena Solberg nasceu de suas indagações sobre a condição feminina. Em seu primeiro curta-metragem, A entrevista (1966), ela partiu de questionamentos pessoais e de seu próprio círculo social para investigar o papel da mulher na sociedade. Munida de um gravador de áudio, ouviu dezenas de mulheres entre 19 e 27 anos que, como ela, pertenciam à classe média do Rio de Janeiro, tinham estudado em colégio de freira e sido criadas para ser mães e esposas. As entrevistadas falaram sobre casamento, filhos, sexo e aspirações profissionais, compondo um mosaico de respostas que nunca se alinham em discurso único.
Helena não teve autorização para filmá-las e se viu em um impasse: tinha registros de áudio, mas não de imagem. A solução foi sobrepor as entrevistas às filmagens de sua cunhada, Glória Solberg, se preparando para o casamento. Enquanto vemos uma mulher provando um vestido branco, ouvimos opiniões de outras mulheres que por vezes batem de frente com essa mesma tradição. Da oposição e do estranhamento sai um filme forte e original, que se tornou um marco do cinema documental e feminista brasileiro.
Mulheres em foco
A entrevista seria apenas o primeiro de uma série de filmes nos quais Helena Solberg abordaria as questões de gênero. Na década de 1970, quando se mudou para os Estados Unidos, a diretora foi uma das criadoras do coletivo International’s Womens Film Project e liderou equipes quase inteiramente formadas por mulheres na realização de três documentários: A nova mulher (1974), que aborda 170 anos da luta feminista nos Estados Unidos; A dupla jornada (1975), sobre a força de trabalho feminina na América Latina; e Simplesmente Jenny (1977), o retrato de meninas em um reformatório na Bolívia.
O interesse de Helena por personagens femininas reais ou ficcionais também se manifestou em três dos cinco filmes que estão no catálogo da Itaú Cultural Play. Um deles é o próprio Banana is my business, documentário que traça a trajetória de Carmen Miranda e reflete sobre o modo como a imagem da cantora luso-brasileira foi moldada pelos norte-americanos.
A figura de Carmen Miranda combina diferentes elementos caros a Helena. Por um lado, trata-se de uma mulher que desbravou caminhos em uma indústria machista; por outro, sua história diz algo sobre a relação entre os Estados Unidos e a América Latina, também um tema frequente na obra da diretora. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando o governo de Franklin D. Roosevelt (1882-1945) buscou acenar aos países latino-americanos, Hollywood foi convocada a fazer filmes que dialogassem com a política da boa vizinhança. Carmen, é claro, foi vista como peça importante nessa estratégia, uma descoberta fascinante para a cineasta.
Carmen, Helena, Jandira
Banana is my business revela uma clara identificação de Helena Solberg com Carmen Miranda – que, como ela, era uma artista brasileira vivendo e trabalhando nos Estados Unidos. Da mesma forma, não é difícil estabelecer paralelos entre a diretora e a protagonista de seu filme seguinte, a ficção Vida de menina, também disponível no catálogo da Itaú Cultural Play. Adaptação dos diários de Helena Morley (pseudônimo da autora Alice Dayrell Caldeira Brant), o longa faz um retrato da vida de uma adolescente em Diamantina (MG) entre 1893 e 1895. E, se Helena Solberg nasceu do relacionamento de um norueguês e uma carioca e cresceu estudando em colégios de freira, Helena Morley tinha pai inglês e mãe mineira e formação ao mesmo tempo protestante e cristã.
Nota-se, portanto, uma atenção especial da diretora às mulheres que nem pertencem totalmente a determinado lugar, comunidade ou grupo nem são totalmente estrangeiras a eles. “Embora inseridas em espaços geográficos definidos, suas personagens mantêm uma espécie de decalagem, de descolamento em relação e esses espaços”, escreveu Mariana Tavares em Helena Solberg: do Cinema Novo ao documentário, lançado pela Imprensa Oficial em 2014. “É como se essas personagens se sentissem um pouco estrangeiras em suas pátrias, o que lhes proporciona um olhar crítico, diferenciado [...] Em geral, [elas] estão em processo de transição. Estão divididas, fragmentadas, cabendo aos filmes a investigação e a tentativa de reconstrução de suas identidades.”
A investigação cinematográfica de Helena combina o pessoal e o político, partindo de questões macro para falar do indivíduo e vice-versa. Esse diálogo está fortemente presente em seu filme mais recente, Meu corpo, minha vida (2017), que também pode ser visto na Itaú Cultural Play. O documentário se desenvolve em dois eixos principais: de um lado, entrevista médicas, juízas, jornalistas e outras profissionais sobre o aborto no Brasil; de outro, reconstrói a trajetória de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, que morreu no Rio de Janeiro, em 2014, após um procedimento clandestino em uma clínica gerenciada por milicianos. Juntos, os dois eixos mostram que a trágica história de Jandira passa por questões ligadas ao Estado, à família e à Igreja, e dão pistas sobre a força do conservadorismo na sociedade brasileira um ano antes da eleição de Jair Bolsonaro. “Talvez uma das características de meus filmes é que eles tentam ir além da informação para fornecer uma análise e uma perspectiva teórica através das quais se possa compreender as questões”, afirmou Helena, em depoimento transcrito no livro de Mariana Tavares. “Ao mesmo tempo, tento encontrar maneiras de simplificar as questões de forma que possam ser facilmente compreendidas e digeridas.”
Compreender, mas não necessariamente responder. Embora mais de 50 anos separem A entrevista e Meu corpo, minha vida, muitas questões de um se repetem e se renovam no outro. Se o cinema de Helena Solberg nunca deixou de refletir sobre os direitos das mulheres, é porque o tema nunca deixou de ser contemporâneo e urgente, e porque as possibilidades de discuti-lo e representá-lo nas telas estão longe de ser esgotadas.
No início de A nova mulher, há um texto introdutório que diz: “Olhamos através dos livros de história e não há sinal de nós. Só temos as nossas memórias e as histórias que contamos umas às outras”. Como os livros, também o cinema não registrou nem discutiu as histórias e questões das mulheres como deveria. Aos 83 anos e com novos projetos em desenvolvimento, Helena Solberg segue disposta a mudar esse cenário.