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O carrossel de emoções de “Leaving Neverland”

Sempre tive fascínio por Michael Jackson. Não apenas pelo seu talento para a música e para a dança, mas também por sua personalidade

Publicado em 29/04/2019

Atualizado às 15:19 de 19/06/2020

Por Um Por Todos - Anna Muylaert

por Um Por Todos - Anna Muylaert

Sempre tive fascínio por Michael Jackson. Não apenas pelo seu talento para a música e para a dança, mas também por sua personalidade. Sempre achei que ele fosse o cara mais maluco de que já se teve notícias: desde o sucesso precoce, e depois a explosão de "Thriller" (que nenhum jovem de hoje consegue dimensionar), sua luxuriante ida às compras numa loja de decoração ou de brinquedos, sua casa-parque-de-diversões, suas férias solitárias num hotel em Las Vegas, seu casamento de fachada com a filha de Elvis Presley, seus filhos de proveta. Com ele, tudo era excêntrico, megalomaníaco, difícil de entender.

Ah, e havia também o fato de que ele era uma criança que nunca crescera e que podia andar de mãos dadas com seus amiguinhos, 40 anos mais novos. Agora, com o lançamento do filme Leaving Neverland, de Dan Reed, produzido pela HBO, as coisas se complexificaram ainda mais. Numa narrativa de quatro horas, dois meninos brancos, Wade Robson e James Safechuck, hoje adultos, falam de suas relações com Michael Jackson. O filme impressiona pela profundidade e pela minuciosidade dos depoimentos, que vão se somando em detalhes e semelhanças, revelando a violência dos fatos, embasados num farto material de arquivo. Ao final, o filme mostra um retrato do ídolo não apenas como pedófilo, mas como alguém muito mais complexo – já que, além do sexo, ele se envolvia romanticamente com as crianças, dando-lhes inclusive joias e fazendo rituais de casamento simbólicos. São histórias de cair o queixo.

Minha reação de perplexidade, no entanto, não foi majoritariamente de raiva ou revolta contra Michael Jackson. Ao contrário, fui acometida por imensa tristeza. Não apenas pelos meninos-vítimas, como também pelo próprio Michael. Que pessoa era essa que, no topo do mundo, se arriscou desse jeito para viver seus romances com garotos de 7 anos? Que tipo de alma era essa? Que tipo de abuso não terá ele sofrido na infância para chegar a esse ponto?

Fiquei alguns dias bastante abalada. O filme me mostrou realidades que nunca imaginei que existissem. Toda a estratégia que o Rei do Pop usava para seduzir as crianças e suas mães. O longo tempo que ele esperava para conseguir levar os meninos naturalmente para sua cama. O modo como envolvia as vítimas, tão fascinadas quanto inocentes. E, depois de tudo exposto, a luta dos meninos para ficar em pé ao entrar na vida adulta – e, por maior que fossem seus esforços, não conseguiam construir nada sólido, indo de uma crise a outra, de uma depressão a outra, como se estivessem tentando erigir sua vida sobre terreno arenoso.

Mais do que uma denúncia contra o herói morto e uma tentativa de libertação das vítimas, o filme é principalmente um mergulho psicanalítico na questão do abuso sexual e de suas consequências – assunto que hoje parece mais inflamado do que nunca, talvez porque justamente, pela primeira vez na história, está sendo tratado abertamente na mídia e nas redes sociais e, consequentemente, vem derrubando capos como o produtor de cinema Harvey Weinstein, em Hollywood, e o médium João Teixeira de Faria, no Brasil.

Surgem questões por todos os lados. Como as mães não viram? Como elas deixaram? Fica claro que diante do poder de Michael Jackson na época nada era impossível, ou tudo era possível. O fascínio exercido pelo cantor nas crianças, nas famílias, nas mães e no público autorizava tudo. Até deixá-lo dormir com dezenas de meninos em sua cama – e, mesmo depois de algumas denúncias de pedofilia, contra as quais Michael pagou dezenas de milhões de dólares, as mães continuavam “não desconfiando” de nada. Mas aqui também não gostaria de julgá-las, já que todos nós, público e fãs, também víamos as fotos dele com a criançada e, ainda que achássemos estranho, ninguém tinha certeza do óbvio ululante que ocorria ali. De modo que, se as mães foram cúmplices, todos nós fomos cúmplices – e isso mostra como o poder corrompe até mesmo o olhar.

Como diria minha avó: “Se fosse cobra, mordia”. Mas hoje estamos em outro momento. Há um pouco mais de consciência. Não em relação à prática dos diversos tipos de abuso ou à pedofilia em si – que, imagino, segue correndo solta. Agora as vítimas estão conseguindo, cada vez mais, digamos, “sair do armário”. Mesmo em posição de desvantagem, mulheres trabalhadoras da indústria de Hollywood abriram fogo contra Weinstein e, com o apoio das famosas e da imprensa, conseguiram derrubar o até então maior produtor norte-americano. No entanto, infelizmente, nem sempre é assim.

É notório que muitas vítimas de estupro acabam sendo humilhadas em delegacias, por seus vestidos ou seus decotes, e levando a culpa pelo crime que sofreram. É notório que muitas meninas vítimas de abuso sexual acabam levando a pior – sendo tachadas de mentirosas ou de oportunistas por pessoas que escolhem para si o caminho da omissão. Mas filmes como Leaving Neverland servem não apenas para expor e expurgar o passado de uns, como também, e principalmente, para abrir os olhos e formar novos cidadãos dispostos a denunciar os abusos dos poderosos, rumo a um mundo menos violento.

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