Se canções, filmes, televisão, games e redes sociais hoje geram os nossos valores, a filosofia tem a tarefa de questionar essas formas de expressão
Publicado em 14/02/2025
Atualizado às 17:27 de 14/02/2025
Umberto Eco (1932-2016), em uma entrevista da segunda metade da década de 1970, analisando a cultura e a arte pop, observou que, para os norte-americanos, a sociedade de consumo é tão natural quanto "árvores, rios ou vacas" – uma paisagem internalizada, não questionada. Essa percepção cria uma ironia: crianças em sociedades industriais veem o leite como um produto tão artificial quanto a Coca-Cola. Eco apontou que essa naturalização do artificial redefine utopias: o socialismo, para um jovem norte-americano, poderia ser imaginado como o acesso universal a discos de rock e camisas do Mickey Mouse. Mas o que seria um paradoxo para um europeu era uma assimilação do contexto norte-americano e o reconhecimento de que a cultura pop pode ser tanto produto quanto ferramenta de resistência.
De certa forma, o próprio Umberto Eco vivenciava essa tensão naquele momento, já que se tornou conhecido, no começo da década de 1960, como teórico da obra de arte com algo de interpretação aberta, dialogando tanto com a cultura erudita (Tomás de Aquino, James Joyce, música dodecafônica etc.) quanto com a cultura popular (quadrinhos, televisão, romance policial etc.). Nesses trabalhos, Eco, no entanto, pendulava da posição de alguém “integrado” aos progressos da técnica e da comunicação de massa para alguém “apocalíptico”, portador de uma narrativa de decadência, alertando para os perigos de alienação e de perda de referências promovidos pela cultura de massa, em que o intérprete começa a reivindicar o poder de ter a última palavra (ainda que de modo injustificado). Diante disso, seria preciso reafirmar os limites da interpretação e denunciar a ameaça política que essas posições de abertura ilimitada para a interpretação podem suscitar, gerando um espaço ideológico para o relativismo, em que o fascismo cresce. Na descrição de Umberto Eco, o fascismo é uma ameaça eterna que, de modo gnóstico, não se prende a uma teoria, mas adere a qualquer coisa ou discurso que considere útil para tomar ou manter o poder.
A solução tentada por Eco, em seu livro Tratado Geral de Semiótica, foi desenvolver uma espécie de “crítica da razão pura do significado possível”, no entanto, o pequeno sucesso de sua empreitada no espaço acadêmico ficou muito longe de sua pretensão teórica. Em meados da década de 1980, o discurso do autor em favor dos limites da interpretação foi articulado a uma narrativa grandiloquente, em que todos os teóricos que considerava gnósticos (Agostinho, Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Harold Bloom, Jacques Derrida, Richard Rorty etc.) eram vistos como ameaças que reforçavam posições irracionalista-gnóstico-relativistas, que alimentam o fascismo eterno. A narrativa de Eco, para funcionar, apaga diferenças e simplifica posições, e talvez merecesse como resposta outra “palavra grande”, como reacionário-metafísico-onto-euro-falo-logocêntrico. Os termos reducionistas são importantes para mostrar a força retórica deste embate, mas não se sustentam quando se considera novamente a complexidade do problema. De todo modo, servem-nos de mote para fazer a pergunta sobre “o que é filosofia pop”, a partir do paradoxo de “como construir uma crítica cultural quando o próprio objeto da crítica é visto como ‘Natureza’?”.
Em 2009, fiz uma breve entrevista com o filósofo, poeta e crítico Antonio Cicero (1945-2024). Aproveitei para perguntar sobre o texto que ele encenou em sua participação no filme O cinema falado (1986), dirigido por Caetano Veloso, uma reflexão sobre e contra a ideia de uma filosofia pop. Meu questionamento foi quanto ao que ele achava deste tipo de abordagem da filosofia pop que mistura filosofia com fenômenos culturais de massa. A resposta de Cicero incorpora um trecho provocativo de uma entrevista em que o filósofo francês Gilles Deleuze falou de pop philosophy como um tipo de interpretação espontânea. Cito as palavras de Cicero:
Não tenho nada contra mistura nenhuma. É possível uma leitura pop da filosofia, mas o que não se pode é reduzir toda filosofia a um fenômeno pop. Não concordo com Deleuze quando ele diz que “uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro da mesma maneira que se escuta um disco, que se vê um filme ou um programa de televisão, da mesma maneira que se acolhe uma canção”. É claro que é possível ler dessa maneira, mas não é uma maneira boa, e sim ruim, empobrecida, de ler filosofia ou poesia. Do mesmo modo, você pode ouvir um quarteto de Beethoven como música de fundo, mas é uma maneira ruim, empobrecida e não boa de ouvir tal música.
A resposta do autor é cuidadosa e suficientemente ambígua para “salvar as aparências”, deixando a possibilidade de bons e maus encontros entre a filosofia e a cultura pop, sem reduzir toda filosofia à perspectiva dessa esquina. Ele mesmo escreveu ensaios que podem ser pensados a partir dessa articulação, como as reflexões éticas e políticas de “O trânsito no Brasil”. Em verdade, o filme O cinema falado transitava nesse lugar, ensaiando diálogos entre diversas expressões culturais (como a canção popular, a televisão e o cinema) e suas potencialidades emancipatórias e alienantes.
Diversos artistas passaram e mesmo habitaram essa esquina entre a filosofia e a cultura popular, e são possíveis diversas formas de relação entre esses dois campos. Em alguns casos, as obras artísticas incorporam citações filosóficas (às vezes, de modo equivocado); noutros, indiretamente, analistas tomam as obras artísticas como chave para desenvolver reflexões, que muitas vezes não vão além de aplicar/enquadrar o que é analisado em sua metodologia/teoria prévia. Noutros casos, ainda, as obras são efetivamente pensadas como filosofia, ou seja, em vez de usarem a cultura popular como trampolim para introduzir conceitos filosóficos, considera-se que as obras da cultura popular podem elas mesmas fazer filosofia, apresentando argumentos ou levantando questões filosóficas. Então, de forma tácita, muitas pessoas podem ser pensadas como desenvolvendo filosofia pop no Brasil, ainda que não adotem esse termo.
Cabe a Charles Feitosa o mérito de tomar o termo “filosofia pop” na sua articulação filosófica e no contexto brasileiro, desenvolvendo um projeto de apresentação da filosofia em diálogo com a arte e a cultura pop. O livro Explicando a filosofia com arte (2004) alcançou tanto sucesso fora da academia (conquistou o Prêmio Jabuti de livro paradidático e foi recomendado a todas as bibliotecas escolares pelo Ministério da Educação) que a pouca repercussão dentro das universidades mostrava o perigo da empreitada, mesmo quando exitosa. O gesto de recontextualizar a filosofia e pensar a partir de obras de arte e da cultura popular era altamente subversivo e ameaça – de modo apocalíptico – as fronteiras e os limites do saber acadêmico. A publicação recente do livro Transversões: ensaios de filosofia & pedagogia pop (2022) permite entender os pressupostos que se articularam no livro de Feitosa e como ele tem desenvolvido sua perspectiva na direção de uma pedagogia pop.
Além dele, outras pessoas têm utilizado e se apropriado de modo criativo do termo. Uma delas é a filósofa Marcia Tiburi, que, partindo de uma formação vinculada à Escola de Frankfurt, articula o conceito em programa de televisão e numa série de livros. Além dela, o filósofo e psicanalista Daniel Lins, que, numa perspectiva deleuziana, escreveu livros dedicados a Bob Dylan, Lampião e Ayrton Senna, por exemplo. Já o filósofo Ronie Alexsandro Teles da Silveira não utiliza o termo “filosofia pop”, mas editou uma série de livros articulando temas de filosofia e cultura brasileira (Drummond e a filosofia; Novela brasileira e filosofia; Carnaval e filosofia; Samba e filosofia etc.). Podemos ter diferentes concepções desse termo, com abordagens e metodologias diversas, e aqui quero destacar alguns dos pressupostos da perspectiva pragmatista e melhorista que desenvolvi nos textos desta coluna.
O título do filme O cinema falado tem sua origem no começo da letra do samba “Não tem tradução”, de Noel Rosa, em que o autor problematiza os efeitos do cinema e da invasão da cultura norte-americana, que faria com que as pessoas imitassem as gírias, as danças e os costumes dos gringos, desvalorizando o samba e tudo o que seria autenticamente brasileiro. A denúncia de Noel Rosa toma a forma da canção popular – feita para ser disseminada pelo rádio – para denunciar os efeitos do cinema, que, ao misturar imagem e som, multiplicava seu apelo de mobilização dos desejos. Noel Rosa estava certo quanto ao modo como o avanço da cultura norte-americana pelos meios de comunicação de massa tornou-se um problema cada vez mais evidente com a televisão e o progresso da tecnologia.
A partir da década de 1960, como descreve o historiador Eric Hobsbawm, acelerou-se o processo de ascensão da indústria cultural, quando, na esteira de uma grande mudança nos horizontes de autocriação, deixou-se de ter como referência livros sagrados para buscar se balizar por filmes, canções, itens da moda, programas de televisão, produtos, videogames etc. Isso significa que o horizonte ético e estético e as narrativas que moldam o cotidiano das pessoas saem agora da indústria cultural.
Se o existencialismo se tornou moda e clima cultural – sendo cantado até mesmo em marchinhas de Carnaval (“Chiquita Bacana lá da Martinica / Se veste com uma / Casca de banana nanica / Não usa vestido, não usa calção / Inverno, para ela, é pleno verão / Existencialista (com toda razão!) / Só faz o que manda o seu coração”) –, a ideia de que as pessoas não têm essência e deveriam criar suas identidades, sendo responsáveis por suas escolhas, foi logo incorporada pela indústria cultural, por meio da literatura beat e do rock, inventando a ideia da juventude e da identidade como algo construído, que se externalizaria em produtos, moda etc.
Se isso é verdade, assim como Platão criou a filosofia ocidental questionando o lugar do relativismo dos sofistas e a posição dos poetas no processo educativo da Grécia Antiga, recusando o ideal guerreiro de Aquiles e promovendo como modelo a racionalidade socrática, para fazer filosofia, devemos também reconhecer e questionar os discursos e as formas de representação que moldam a educação das pessoas em seu cotidiano. E, se são as canções, os filmes, a televisão, os games e as redes sociais que geram hoje os valores que moldam os processos de identificação e autocriação, a filosofia permanecerá alienada se não questionar essas formas de expressão. Não se trata de novamente expulsar os poetas e todos aqueles que multiplicam aparências ilusórias, como fez Platão no livro X da República, mas de reconhecer e pensar as formas de discurso que manipulam e moldam nossos desejos.
Na análise do filósofo e crítico de arte Arthur Danto, quando Andy Warhol reproduziu uma caixa de esponjas de aço em uma exposição, seu gesto denunciava e assumia a condição das obras de arte como mercadorias, incorporando ao seu trabalho uma posição filosófica que deveria ser desvendada por quem interpreta a obra. Essa mesma abertura e dimensão filosófica passou a fazer parte de diversas formas de expressão (como o cinema e a canção popular), de modo tácito ou explícito. No caso da música popular brasileira (MPB), o Tropicalismo repetiu e recontextualizou o gesto de Warhol, propondo uma continuidade de questionamentos, uma linha evolutiva que pedia o diálogo e a reapropriação contínua da própria tradição, com a problematização da ideia de autenticidade, mostrando a clivagem de identidades. (Um exemplo disso é o escândalo causado pela citação de um refrigerante na letra de uma canção. A geração seguinte apropriou-se do nome dessa marca para batizar a si mesma e, mais tarde, bandas de rock e artistas tropicalistas aceitaram fazer propaganda do mesmo refrigerante.) Incorporando a perspectiva antropofágica do Modernismo, a Tropicália também forneceu uma resposta para a relação entre natureza e cultura, num ritual de reinvenção que sagrava o artificial num altar kitsch. A força, as potencialidades e os problemas dessa perspectiva merecem ser investigados, questionados, problematizados.
A relação entre natureza e cultura pode ter diversas articulações e, embora a hegemonia da cultura norte-americana tenha forçado a naturalização do artificial, isso não significa que essa posição se desenvolva do mesmo modo em todos os lugares. Autores como Vilém Flusser destacam como historicamente, no Brasil, durante o processo de colonização, a natureza foi vista como uma inimiga a ser dominada, em uma perspectiva predatória e desenraizada. Essa dinâmica pode ser reconhecida, hoje, nas formas de monocultura desenvolvidas no interior do país, que têm uma dinâmica exploratória mais próxima da mineração (com práticas que, de maneira exaustiva, exportam água na forma de commodities, mantendo um tipo de “colonialismo químico” por meio da aplicação de agrotóxicos, muitos deles produzidos e proibidos em países de “primeiro mundo”), numa abordagem distante do que chamávamos tradicionalmente de agricultura, que buscava um equilíbrio sustentável e respeitava a biodiversidade e a saúde do solo e das pessoas. Ou seja, a própria ideia de técnica tem abordagens diversas. Já o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro defende que os indígenas têm uma perspectiva ontológica diversa da concepção ocidental que permite falar de um multinaturalismo ameríndio. Ou seja, não podemos reduzir a complexidade das relações entre natureza e cultura a uma única descrição, já que movimentos ecofeministas ou indígenas usam a cultura pop como resistência.
O título deste ensaio traz uma falsa promessa de definição, já que a filosofia pop – e a própria filosofia – pode ser caracterizada justamente por não ter uma “essência”, por estabelecer relações e colocar em questão aquele que se arrisca a jogar esse jogo. Persiste o questionamento sobre se aquilo que você produz merece o nome de “filosofia”, ou se faz jus ou articula de modo válido o termo “pop” (termos também em disputa).
No meu caso, em 2005, desenvolvi – com Murilo Ferraz, Janos Biro e Eduardo Ferraz – um blog chamado Filosofia Pop: da Alquimia de Totem em Tabu, em que tomava como “metodologia” a combinação de analogia e ironia para desenvolver breves ensaios que dialogavam com a canção popular, tendo como referência artistas que hoje estão bem estabelecidos (Cazuza, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii, Pato Fu, Skank, Cidade Negra), mas que, na época, ainda eram vistos como parte da decadência apocalíptica que transformou a MPB em objeto de distinção de classe. A acusação de “decadência apocalíptica” formulada por Umberto Eco tornou-se algo que, muitas vezes, é uma marca de nostalgia e ressentimento geracional. Então, o que é considerado pop para uma geração, para outra, pode ser avaliado como cringe, o que só mostra como os valores podem ser contingentes.
Alguns produtos da cultura de massa, no entanto, superam as barreiras geracionais e mantêm sua relevância, ainda que estejam longe de conseguir unanimidade. Por exemplo, meu primeiro livro, Canção, estética e política, publicado em 2011, reúne ensaios sobre a Legião Urbana e sobre como essa banda de rock traduziu seu tempo em canção. Há dez anos, com Murilo Ferraz, criei o podcast Filosofia Pop, o qual, com mais de 200 episódios, tem promovido diálogos com diversos especialistas em filosofia ou em outros temas que consideramos relevantes: neste caso, o próprio meio de divulgação transforma a atividade filosófica em algo pop, já que geralmente as pessoas se desarmam dos longos discursos previamente escritos e se dispõem a dialogar abertamente sobre temas pelos quais são apaixonadas. Continuei escrevendo textos sobre filosofia e cultura popular, que foram em parte reunidos no livro Entusiasmo dos deuses (2023), que dialoga com a canção popular, o Carnaval, a televisão etc., e foi o mote para a criação desta coluna.
Fazendo isso, tentando articular a filosofia e a cultura popular, contribuímos para desenvolver uma sociedade em que o jogo de pedir e dar razões ganha espaço no cotidiano. Mas é preciso ressaltar que o vocabulário em que buscamos a autocriação deveria ser diferente daquele em que tentamos construir consenso político. Podemos, de modo justificado, ter gostos diversos e nem por isso considerar que todas as pessoas devam ter os mesmos julgamentos. O grande perigo, denunciado por Umberto Eco, da ausência de limites da interpretação tem um sentido político claro e urgente quando tratamos do processo de socialização (diante das fake news, da hegemonia das big techs etc.); mas, a forma exagerada e reducionista com que a denúncia apocalíptica é feita pelo filósofo italiano deixa claro que não há um método prévio de garantir a validade de interpretações: precisamos avaliar cuidadosamente cada caso em sua especificidade. Sigo aqui a posição pragmática do filósofo John Dewey:
[Quando] a filosofia vier a cooperar com o curso dos acontecimentos e tornar claro e coerente o significado dos pormenores diários, a ciência e a emoção hão de interpenetrar-se, a prática e a imaginação hão de abraçar-se. Os sentimentos religiosos e poéticos serão as livres flores da vida. Promover esta articulação e revelação dos significados do curso corrente dos acontecimentos é a tarefa e o problema da filosofia.
Oxalá assim possamos contribuir para tornar nossa sociedade mais democrática. De modos diversos, continuamos a caminho.
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