Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

O que é nosso

Na estreia da coluna A Caminho, o filósofo Marcos Carvalho Lopes apresenta uma interpretação do Brasil, entre filosofia e rodas de caminhão

Publicado em 09/02/2024

Atualizado às 17:16 de 15/02/2024

Por Marcos Carvalho Lopes

Quando me perguntam por que escolhi fazer filosofia, tenho algumas narrativas que utilizo como resposta. Uma delas é genealógica: lembrando que meu pai era caminhoneiro e minha mãe era professora alfabetizadora, se a filosofia – como descreve Karl Jaspers – é um estar a caminho, posso dizer que herdei certa errância (de meu pai) e o gosto pela palavra que surge (de minha mãe). É uma explicação que pode ser considerada autoindulgente e que dificilmente seria aceita como muito mais do que uma ilegítima reflexão pessoal. Como fazer filosofia num contexto em que a vida cotidiana não faz parte do pensamento? Como reivindicar ser parte de uma tradição da qual se é filho ilegítimo? Afinal, ninguém vive a filosofia por aqui

Eu, que sou do interior de Goiás, durante a graduação em filosofia na Universidade Federal de Goiás, cheguei a ouvir de um professor carioca uma pergunta debochada dirigida a toda a minha turma, sobre por que escolhemos fazer filosofia, se seria muito mais lógico aprender a dirigir ou consertar trator, ou trabalhar na roça. Para ele, carioca, a filosofia seria uma possibilidade, mas para quem nasce em Goiás, não. O pressuposto de um tipo de perspectiva privilegiada de quem nasce no Sul-Sudeste em relação ao restante do país diz muito sobre o lugar que a filosofia ocupa nas academias como uma espécie de autocolonização que tem sempre um modelo externo (e, por isso, só pode ser a cópia da cópia da cópia): o Brasil é uma grande caverna platônica; sair dela é estudar na Europa ou nos Estados Unidos, para depois voltar e divulgar a(s) verdade(s) mais recente(s). É claro que esse modelo é caricatural e reducionista, mas por isso mesmo é suficientemente provocativo para pensar por que os objetos e práticas culturais hegemônicos no interior do Brasil são considerados a sombra das sombras, a imitação da imitação. As pessoas que nascem e crescem no interior do país, fora da vanguarda civilizacional litorânea e sudestina, deveriam saber seu lugar na ordem do saber-poder: deveriam cantar música sertaneja e dirigir trator, e não pretender fazer filosofia. 

Talvez por isso é tão difícil entender os valores e as formas culturais que a canção sertaneja tornou hegemônicos no país, em um contexto em que a exportação de commodities agrícolas vinculadas ao latifúndio e à monocultura comanda os caminhos de uma modernização dependente. Se não nos pensarmos, se não questionarmos qual vida vivemos e queremos viver, não poderemos desenvolver formas de vida democráticas. Mas pior é repetir sem reconhecer as estruturas autoritárias de colonização e de autoimperialismo.  

Por isso, pelo gesto de pensamento, que o livro O que é meu (Fósforo, 2023), do jovem professor universitário e doutor em sociologia José Henrique Bortoluci, merece ser lido: o autor entrelaça as desventuras da nação com a trajetória de seu pai, que por meio século foi caminhoneiro e, no período da pandemia, enfrentou o tratamento de um quadro grave de câncer. O autor criou um texto que não se encaixa propriamente em nenhuma estante, por não ser uma biografia exaustiva nem um texto que se prenda a uma disciplina teórica ou que funcione como um ensaio temático. Mais próximo da memória e da autobiografia, o texto traz uma experiência que tem um sentido coletivo, que promove um tipo de reconhecimento como aquele que o escritor norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882) descreve que acontece quando nos deparamos com um “gênio”, quando lemos algo que nos faz acreditar que é a tradução do que já sentimos mas não conseguíamos expressar. A genialidade está em salvar as aparências, em resgatar e valorizar o cotidiano, em reconhecer no lugar a possibilidade de pensamento. 

José Henrique Bortoluci foi um aluno de escola pública de uma família humilde – na qual, se nunca passou fome, não deixou de passar vontade – e que desde pequeno se destacou. O sucesso acadêmico levou a uma inevitável ruptura com a linguagem familiar, para incorporar um jargão e questões necessárias para o jogo acadêmico. O livro é uma tentativa de “retornar para casa”, com um sentido de urgência e reorientação. Em maio de 2018, uma paralisação dos caminhoneiros desafiou os teóricos políticos (de modo semelhante aos movimentos de junho de 2013), encenando a ascensão de forças políticas e de vozes que não estavam catalogadas e que desafinavam dos padrões conciliatórios do quadro político normalizado. Se não havia uma direção política definida, logo o discurso autoritário e nacionalista de extrema direita capturou esse público e alcançou o poder nas eleições para a presidência daquele ano. O livro foi escrito durante a pandemia e no contexto de banalização da morte, da violência e do autoritarismo, com ameaças à democracia e com a manutenção de um clima cotidiano de ansiedade, entrando em crise também as possibilidades de representação do país. No texto, a pergunta sobre como justificar a manutenção desses valores autoritários e a normalização da violência é articulada em conjunto com um questionamento: “Como herdar a trajetória de meu pai?”. 

Em três faixas horizontais sobrepostas verticalmente (a primeira, amarela; a segunda, verde; a terceira, azul), estão desenhos de caminhão. Na do meio, há uma representação da estátua O Pensador.
Filosofia e caminhão (imagem: Girafa Não Fala)

De uma família de origem italiana, José Bortoluci, o Seu Didi, nasceu em Jaú (SP), no ano de 1943. Com pouco estudo, ele cedo teve de ajudar no trabalho no campo, e depois foi mecânico até começar a trabalhar como caminhoneiro, profissão que exerceu por 50 anos (entre 1965 e 2015). Nesse arco de tempo, a ditadura militar e a promessa do Brasil Grande aceleraram a marcha para o oeste e a ocupação do território, seguindo uma cartilha de modernização que significou devastação ecológica, latifúndios, monocultura, genocídio silencioso de populações indígenas, extrativismos desenfreados e toda violência naturalizada em uma sociedade originariamente escravagista e que mantém a desigualdade e as fronteiras entre as pessoas consideradas portadoras de direitos (presumivelmente brancas) e as demais. O autor, que nasceu em 1984 e cresceu dentro de uma promessa/processo de democratização, sabe que a ameaça de uma volta da ditadura não surgiu de repente, mas é um sintoma de um trauma que não foi devidamente pensado, redescrito. Se o caminhão era o que movia essa promessa de Brasil Grande, a decadência das condições de vida desses profissionais coincide com o fracasso das possibilidades de sonhar um futuro diferente e melhor. Por isso, os anseios reacionários continuam ecoando e, aqui no interior de Goiás, talvez deem certa densidade ao silêncio que não permite pensar ou questionar esse caminho de autodestruição.

José Henrique Bortoluci é certeiro quando avalia que os “caminhoneiros são uma espécie de vanguarda da ambição neoliberal em converter trabalhadores em pequenos empreendedores desprovidos de direitos ou garantias. Todo risco que esses trabalhadores assumem é privado, e as surpresas no caminho podem arrasar seus sonhos de ascensão” (p. 103). Para mim, o problema, ou melhor, a diferença é que meu pai nunca se viu como um trabalhador, mas como mais um explorador da fronteira, alguém que queria “se dar bem” de algum modo, sem se colocar como empregado de ninguém. Meu pai era cerca de 15 anos mais novo que Seu Didi, e provavelmente eles tenham se cruzado pelas estradas ou balsas na direção de AltaFloresta, Santarém ou Belém. Porém, sendo uma daquelas crianças pardas (sem consciência racial) que são parcialmente adotadas por boas famílias brancas, ele sempre teve uma dívida impagável para cobrar do mundo e, por vezes, efetivamente não conseguia voltar para casa. Algumas viagens demoravam seis meses e o resultado era sempre precário e de promessas tão vazias quanto ditas com sinceridade. O gosto pela vida, os braços fortes, a barriga proeminente e o vício em Coca-Cola eram de meu pai, Gilberto. A ausência presente é uma herança comum a todos os filhos de caminhoneiros.

O desafio que esse livro enfrenta permanece válido, já que reivindicar uma herança e uma continuidade é um dilema para o Brasil. No caso de Dom Casmurro, de Machado de Assis, Bentinho queria porque queria ter um filho, mas, quando este nasceu, não conseguia se reconhecer nele, não conseguia ser pai. Das poucas representações de caminhoneiros que conheço, lembro-me de um filme muitas vezes reprisado na televisão: Falcão – o campeão dos campeões. Sylvester Stallone dá vida a um caminhoneiro que ganha um torneio de queda de braço e a luta pela guarda e pelo amor do filho. Caricatural e com uma trajetória de herói infantilizada, não deixava de ser um espelho (ainda que ruim). Precisamos aprender a pensar nossa paisagem, o que é nosso, tentar traduzir o melhor no mais comum e seguir viagem. Vamos! 

Outros caminhos

Canções 

Filmes: Falcão – o campeão dos campeões (1987), com Sylvester Stallone e direção de Menahem Golan. Estrada da vida (1980), com Milionário e José Rico e direção de Nelson Pereira dos Santos. 

Livro: Cowboys do asfalto. Música sertaneja e modernização brasileira (2015), de Gustavo Alonso.

Podcast: Filosofia pop, episódio 146 – “Música sertaneja, com Gustavo Alonso.

Coluna escrita por:

Marcos Carvalho Lopes

Marcos Carvalho Lopes

Doutor em filosofia, professor universitário e host do podcast Filosofia Pop
Compartilhe