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“Os menino tá com o pacote”

Na estreia da coluna “Sincera forma do mundo”, Gabriel Martins fala sobre as várias manifestações e experimentos na produção audiovisual

Publicado em 07/03/2024

Atualizado às 11:22 de 08/03/2024

Por Gabriel Martins

Eu decidi nomear esta coluna, que marca o início da minha participação neste espaço, Sincera forma do mundo. Esse é o nome de um extinto tumblr que criei há muito tempo para ser uma espécie de válvula de escape para pequenos projetos de curtas feitos de forma “não oficial” por mim e amigos realizadores. Sempre gostei dessa coisa do filme espontâneo, do filme que não sabe se é filme, uma espécie de acidente cinematográfico que, no final da primeira década dos anos 2000, encontrava um parceiro forte no YouTube. Esta coluna será, ao longo do ano, sobre divagações que não têm a pretensão de ser – a princípio – um estudo muito profundo sobre nada. São pontas de conversas para “jogar prosa fora” mesmo. Quero destacar também coisas importantes que não estão sendo devidamente observadas no audiovisual, principalmente o brasileiro. Zero formalidade por aqui. Até um pouco de humor – que não quer dizer, claro, que não falo sério. Às vezes pode até parecer que não. Mas falo sério. O primeiro assunto é um desses casos.

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Eu queria que o primeiro texto fosse sobre uma paixão atual e, no meu caso, é o canal Arte & Produção (@Arte.4d) no YouTube. Mas, antes de falar disso, preciso lembrar de uma espécie de filme-evento que aconteceu nos festivais por volta de 2010, que é o curta-metragem do hoje consagrado Gabriel Mascaro, As aventuras de Paulo Bruscky. No filme, Mascaro encontra o artista recifense Bruscky no aplicativo Second life, na época conquistando grande popularidade. O app consiste em um espaço espelho do nosso mundo real, uma mistura de The Sims e GTA, em que a pessoa convive ali com o seu avatar em um CGI numa época de renderização bastante básica. É uma espécie de rede social misturada com jogo onde até bandas como o U2 já tiveram apresentações exclusivas.


Na imagem, que é uma animação, um homem de camiseta preta e calça acinzentada segura uma filmadora, que está direcionada para outro homem. Ele é calvo, está sentado em uma calçada, usa camiseta de listras cinza e calça azul. Ambos estão na praia, com o mar ao fundo.
As aventuras de Paulo Bruscky (imagem: Frame de vídeo/ canal Arte & produção)

No filme, o personagem Gabriel Mascaro é um cineasta desiludido com a vida real, que vive de fazer vídeos encomendados no Second life. Ele presta seus serviços fazendo um documentário com Bruscky, em que as reflexões sobre tecnologia, arte e contemporaneidade vão se encontrar com a imaterialidade do espaço físico do Second life, onde basicamente se pode tudo. O filme começa, inclusive, com Bruscky debaixo d’água. Nessa documentação da navegação do avatar de Paulo pelo universo, uma imersão quase metafísica acontece num espaço onde o próprio conceito de espaço é ilimitado, onde a gravidade é flexível, onde é possível atravessar a matéria gozando entre o programado e o glitch.


Na imagem está um cano com uma escada em espiral ao redor, na cor laranja. Ao fundo, um céu azul com nuvens avermelhadas. É possível ver um homem pulando no topo da escada.
As aventuras de Paulo Bruscky (imagem: Frame de vídeo/ canal Arte & produção)

Naquela época, a beleza do filme – e do aplicativo – me parecia esse intervalo de tempo entre a emulação de um mundo aleatório e a concretude da existência de Paulo e Gabriel, suas vozes reais e um fio de conexão com o mundo material que tornavam a casualidade da coisa (“Vamos dar um rolê ali naquela boate” – uma boate que tem, entre os presentes, uma mulher-dragão) ao mesmo tempo muito engraçada e melancólica.

Nos anos pós Second life, The Sims etc., essa ideia de mundo de avatares de CGI bruto se tornou muito popular em várias manifestações audiovisuais, que vão de Xavier Renegade Angel, série de Vernom Chatman e John Lee, a @garotadoblogui no Instagram. A junção de computação gráfica imperfeita (não é realista, mas também não é abstrata) com a sensação de aleatoriedade das narrativas traz um efeito bastante aprazível de mergulharmos em um vórtex de expressão em que tudo é válido.

Dois avatares de personagens do programa
Personagens do seriado Chaves aparecem em vídeo do Arte & produção (imagem: Frame de vídeo/ canal Arte & produção)

O canal Arte & Produção data de 11 anos atrás e parece ter sido criado como uma forma de dar vazão a experimentos do artista Elói Coelho nos softwares After Effects, Cinema 4D e Blender, esse último uma plataforma gratuita voltada principalmente para modelagem e animação 3D. O canal, que teve hiatos de postagens com o tempo, ganhou certa regularidade há dois anos, ao começar a fazer simulações no universo do icônico programa Chaves. Vídeos como “Chaves dançando breakdance” e “Chaves episódio proibido” (Seu Madruga dando uns pegas na Dona Florinda, basicamente) começaram a ser replicados, virando memes, pílulas de Instagram etc. Mas o auge começa quando essas ideias de pílulas se tornam episódios ainda mais insanos de Chaves. O criador extrapola o universo dos personagens do programa para se tornar um verdadeiro multiverso, onde temos a participação de Dilma, Exterminador do Futuro, Kleber Bambam, Ronaldinho Gaúcho, Neymar e quem mais Elói pensar que cabe. O resultado é uma obra-prima em construção: a novela “Chaves – a venda da vila”, que, até a escrita deste texto, estava no episódio 34.

Através de técnicas de aplicação de fotos dos personagens na modelagem em 3D dos seus corpos, temos uma mistura meio explosiva de uma reprodução de meio do caminho de figuras reais que, com essa liberdade de animação, conseguem fazer basicamente qualquer coisa: Luva de Pedreiro pode soltar um foguete no peito do Mussum gritando “Receba!”, por exemplo, ou o Professor Girafales dar um mortal para trás enquanto ginga capoeira. Como a construção de personagens se dá por meio da utilização de fotos, tornando o rosto bem próximo do real, qualquer pessoa pública – o que hoje somos todes nós – pode virar personagem. Para completar, através de técnicas de inteligência artificial, a maior parte dos personagens tem a voz da própria pessoa, não só em diálogos escritos por Elói, mas também em músicas. Temos, portanto, o presidente Lula cantando “Os menino tá com o pacote”, de MC PH, e Quico, do Chaves, cantando “Ligando os fatos”, do Pique Novo, em um caraoquê na vila.


Na imagem, que é uma animação, aparecem várias pessoas dançando, sendo que algumas estão sentadas em cadeiras brancas. Avatares de personagens do programa Chaves, políticos, como Lula e Dilma, Mussum, personagem de
Políticos e personagens famosos se juntam em Chaves – a venda da vila (imagem: Frame de vídeo/ canal Arte & produção)

Para além do humor óbvio de ver celebridades em situações atípicas, parece-me estar em jogo uma esfera de criação muito livre por parte de Elói, que, ao evoluir seus estudos públicos de efeitos especiais, algo que é muito próprio da nossa geração YouTube, acaba fazendo uma arte popular contemporânea completamente sintonizada com as nossas ansiedades. É como se diante da nossa loucura diária, principalmente neste Brasil coquetel molotov dos anos 2010 e 2020, fosse possível projetar outro mundo de combinações improváveis que vê a internet como uma bomba sempre prestes a explodir. É um mundo em que Bolsonaro elogia a voz de Lula em sua performance e, por um momento, parece que está tudo bem. É um mundo em que Mano Brown pega uma carona com Silvio Santos enquanto proseiam sobre coisas da vida. Como a Carreta Furacão subverte a Disney e os desenhos animados, o canal Arte & Produção bate no liquidificador basicamente a TV e a internet brasileira. Sai um multiverso meio danadinho, meio alucinógeno, meio sonhando acordado que brinca com o nosso desejo de ver, por exemplo, a Dilma fora da formalidade ou o Faustão requebrando ao som de “Sweet child o’mine” na voz de Silvio Santos. Nisso, uma narrativa que não precisa prestar contas a nada, somente a sua própria vontade de testar os limites dos encontros.

Na imagem, que é uma animação, Mussum, personagem de
Adversários políticos se cumprimentam em Chaves – a venda da vila (imagem: Frame de vídeo/ canal Arte & produção)

Mas talvez o que mais me fascine seja que aquilo ali é cinema de garagem. É audiovisual na unha, para ser visto em tela grande. E eu trago o assunto à baila aqui porque sinto que nem sempre esse tipo de trabalho é levado a sério. Penso que a percepção do que é feito no Brasil em audiovisual ainda é muito organizada com base em critérios elitistas, acadêmicos e intimamente conectados com uma tradição de pensamento colonial. É difícil, portanto, fazer a conexão entre a verve de um trabalho como esse e o território do que se chama de mercado audiovisual ou mundo do audiovisual. Bom, eu nem preciso dizer aqui o que esse trabalho é ou não é, pois o próprio título do canal já diz. Não conheço o Elói, mas, por algumas fotos e pela criatividade dos temas, ele me parece ser um cara de quebrada ou pelo menos sintonizado com ela. Esse poder de criar mundos na mão desse cara é algo muito potente. Cria intervalos no espaço-tempo e sai de lá do Mascaro, obviamente num processo natural consciente de destinação do seu trabalho (festivais de cinema, galerias de arte) para uma espécie de delírio frontal da imagem, mas focado na ideia mesma de apertar botão e criar essa loucura de história em que a Vila do Chaves está próximo de ser comprada pelo Neymar (por que não esse filme?). Mas, nessa lombra, um monte de vontade de criar, um monte de desejo de entender o Brasil. Talvez, no fim das contas, seja o que a gente mais necessite.

Coluna escrita por:

Gabriel Martins

Gabriel Martins

Cineasta mineiro. Seu filme mais recente é Marte um.
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