A colunista Naine Terena reflete sobre a “obsolescência programada” dos ditos espaços de visibilidade para a presença indígena
Publicado em 09/01/2022
Atualizado às 16:43 de 11/02/2022
Não sei quão equivocada estou quando recorro à memória e vem a recordação de um velho ancião que me relatou o fato de que sua família trabalhou fortemente para que todos os seus filhos e netos frequentassem a escola primária até a formação superior. Isso traria uma oportunidade de geração de renda maior e o entendimento de como era o mundo lá fora. Era preciso conhecer as estratégias de ação dos purutuia (não indígenas) para estar constantemente reformulando as do seu povo, dando um passo para a frente e outro para trás.
Mesmo sabendo como é difícil lidar com esse sistema que opera a partir de lógicas outras e vínculos que ferem o entendimento de ser indígena, tudo isso era preciso.
Parece ser a sempre presente contradição entre estar e não estar em locais onde se deveria ter certa repulsa pela sua atuação excludente e colonizadora. Mas as portas de alguns desses lugares parecem estar abertas (mais do que nunca). Por que não entrar?
Dar um passo para trás pode parecer retrocesso se pensarmos em como esse dito é encarado do ponto de vista da sociedade não indígena, mas isso diz muito de como transitar entre os mundos e dos riscos desse trânsito. O mais latente risco neste momento parece ter se corporificado no acesso ininterrupto à internet, porque, como consumidores dessa vastidão de informações, vislumbramos quase sempre os seus aspectos positivos. Acontece que se acredita que o acesso a ela já resolve boa parte de nossos dilemas. Estamos produzindo incansavelmente informação. Em todos os lugares possíveis. Aproveitando todas as oportunidades. Dando visibilidade à entrada em muitos espaços que antes nem sonhávamos pisar. Inspirando.
Mas alguns pontos são pertinentes a todos nós para dar um passo à frente e um passo atrás, porque o discurso da democratização da informação e dos espaços é realmente forte. Desde a primeira infância até a maior idade, temos a impressão de que esse espaço virtual pertence a todos, simplesmente porque sabemos usar os caminhos que nos levam aonde queremos chegar quando estamos conectados. E por isso muitos de nós mergulhamos nele com muito afinco e certeza de que estamos no lugar certo. O lugar onde se constroem os debates mais acalorados acerca da contemporaneidade.
Um exemplo desse debate é o do iPhone indígena e como ele sinaliza a maneira como a sociedade envolvente seleciona quais bens os indígenas devem se apropriar e sua funcionalidade para manter a “indianeidade” padrão. Choveram imagens nas redes sociais de indígenas com seus iPhones nos últimos tempos.
É a partir dessa sociedade do consumo que se desenha a demanda de quantos indivíduos indígenas estão integrados a ela pelo viés do consumo – onde ele deveria estar e onde não deveria. Quanto dinheiro deveria ter para gastar (com um iPhone!) e como deveria gastar. Qual imposto paga ou deixa de pagar. Ser indígena também está ligado ao poder de consumo! Porque o iPhone incomoda (já pensou isso no contexto estrutural de consumo?).
Isso tudo é ditado, inclusive, pelos próprios parceiros da “causa”, que se acostumaram com o romance da luta e, ao sinal da contradição, não se aprofundam muito no que disse o ancião lá atrás – é preciso entender e viver um pouco desses outros códigos (mas não se esqueça de olhar para trás). Já cantava o antigo pajé: “Olho pra frente, olho pra trás, olho para um lado e olho para o outro”.
O cidadão consumidor indígena percorre o universo das práticas de consumo, que ora olha para a frente, ora olha para trás, e tenho dito, isso tudo vem deixando muitos parentes um pouco confusos com essa lógica da mercadoria, porque ela quer dizer “Abaixo o iPhone”, mas ao mesmo tempo pretende nos enquadrar como uma mão de obra do mercado que produz um iPhone (quem deveria poder comprar um iPhone?). Por outro lado, a revolução, a contrainformação e o ativismo acontecem a partir do dispositivo tecnológico indígena – ou essa é a expectativa, ter acesso às tecnologias que possam fazer ecoar as demandas.
Manter-se fiel aos seus propósitos requer olhar para a frente e olhar para trás, para um lado e para o outro, e pensar que esse movimento constrói significados históricos a certa medida, mas que o compartilhamento das informações e a entrada em espaços e instituições não asseguram que se está efetivamente alcançando e formando audiências para as causas desses povos. Cuidado com a obsolescência programada dos ditos espaços de visibilidade para a presença indígena. Porque a falsa democratização dá a oportunidade de compartilhamentos. Mas a forma como ele será absorvido, verificado, historicamente analisado, isso são outros 500. Agora 522 anos.