Em entrevista, a cineasta fala sobre o seu processo criativo e sobre política cultural no Brasil
Publicado em 23/02/2022
Atualizado às 17:30 de 17/08/2022
A obra da diretora colombiano-brasileira Paula Gaitán é tão multidisciplinar quanto sua trajetória profissional. Assim como ela navegou pelo cinema, pelas artes visuais, pela fotografia e pela escrita, seus filmes também transitam por diferentes linguagens, temas, estilos e formatos – do curta ao longa, do documentário à ficção, dos clipes musicais às instalações, das séries de televisão aos ensaios poéticos e experimentais.
Ao mesmo tempo, há unidade nessa obra tão variada e múltipla, a começar pela proximidade que Paula estabelece com personagens, histórias e materiais, seja quando retrata um ritual indígena, seja quando relembra momentos de sua própria vida familiar. Seus filmes deixam clara, também, sua vontade de explorar as possibilidades da relação entre som, imagem e luz; sua admiração pelo fazer artístico, que a põe em constante diálogo com músicos, atores e outros cineastas; e seu forte interesse pela memória, que a leva de volta aos seus próprios arquivos e a retrabalhar os planos que filmou. Seu processo de criação, diferente a cada obra, envolve muita pesquisa, mas também se baseia na intuição e no improviso. E a capacidade de desenvolver múltiplos projetos ao mesmo tempo, ainda que sem grandes recursos financeiros, faz de Paula uma cineasta bastante prolífica. Desde 2020, por exemplo, ela lançou quatro filmes: Luz nos trópicos; É rocha e rio, Negro Leo; Se hace camino al andar; e Ostinato.
Formada em artes visuais na Universidade de Los Andes, em Bogotá, Paula começou a fazer cinema com Glauber Rocha (1939-1981), seu parceiro na vida pessoal e profissional. Depois de trabalhar como diretora de arte em A idade da terra (1978), ela passou a se interessar mais profundamente pela imagem em movimento. Em 1988, lançou o primeiro longa, Uaka, no qual faz um mergulho – ou uma aproximação, como ela define – na preparação do povo Kamaiurá para a celebração do ritual Quarup no Xingu.
Uaka é um dos três filmes de Paula Gaitán que estão disponíveis no catálogo da Itaú Cultural Play e que remontam a diferentes momentos de sua trajetória profissional. O segundo título, Diário de Sintra, foi lançado em 2008, mas recupera algumas das primeiras imagens feitas pela diretora, em 1981. Vivendo em Portugal e munida de uma câmera de super-8, ela registrou a vida com Glauber e os filhos, Ava e Eryk, mas também sua própria percepção dos objetos e da natureza.
O título que completa a seleção da Itaú Cultural Play é Noite (2015), filme experimental que acompanha o percurso de uma mulher na noite carioca. É a própria cineasta quem opera a câmera, guiada pelo desejo de estabelecer uma relação sensorial entre som e imagem e de criar uma estética tão pulsante quanto a música que toca em cena.
A coluna conversou com Paula sobre os três filmes, seu processo criativo e os possíveis caminhos para o cinema brasileiro em um período de crise profunda. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Você é uma diretora produtiva, que lança muitos filmes. Gostaria de saber mais sobre seu processo criativo: você costuma desenvolver várias ideias e projetos ao mesmo tempo?
Sim, trabalho em vários projetos simultaneamente e reciclo muito material de filmes que já fiz. Vou aproveitando tudo que vou filmando: um plano que está em um filme pode estar em outro, pode ser reinterpretado e colocado de uma nova forma. Não tenho uma maneira muito ortodoxa de trabalhar: há muito improviso, mas também muita pesquisa. E cada filme obedece a um processo diferente. Às vezes há um roteiro que antecipa as coisas, às vezes há toda uma pesquisa, às vezes não. Memória da memória (2013), por exemplo, foi realizado em três dias. Foi como um grito, uma experiência muito veloz tanto conceitualmente como do ponto de vista da edição. Mas há filmes que demoram muito mais, como Luz nos trópicos (2020), para o qual passei quase 15 anos refletindo, estudando, pesquisando.
Em muitos de seus filmes você também opera a câmera. O que a atrai nesse trabalho?
Sempre me interessei por fotografia, e de fato tenho feito a câmera de muitos de meus filmes. Em Noite, por exemplo, quis aproveitar a relação de pulsão, de atração e repulsão da câmera com a música. É como uma coreografia entre som e imagem: chego com a câmera e estabeleço uma relação direta com os músicos e as diferentes sonoridades, o que é muito interessante. No caso de um filme como Diário de Sintra, que parte de material filmado em super-8, a câmera é mais sensorial, tátil e impressionista. É uma câmera que se relaciona com os objetos, a luz, os reflexos. Diria que a fotografia é como uma extensão do meu corpo e das coisas.
Gostaria que você falasse sobre cada um dos três filmes que podem ser vistos gratuitamente na Itaú Cultural Play. Começando por Uaka: o que diria sobre o filme e o que ele representa para você?
É um filme que surge do Quarup, a homenagem do povo Kamaiurá aos mortos, e da relação que eles têm com a finitude ou com essa espécie de permanência das almas dos mortos. Muitas coisas acontecem no momento do Quarup, e o filme acompanha o período anterior à festa, os 40 dias em que toda a aldeia se prepara, a produção do alimento, o cultivo, a colheita. Isto me parece muito interessante: a convivência desse mundo imaterial e desse mundo concreto da produção do alimento. É um filme que eu amo, o meu primeiro longa-metragem. Ele nunca foi lançado comercialmente no Brasil, mas se tornou um cult. Agora consegui fazer uma nova cópia digital, que está circulando em festivais e na plataforma [Itaú Cultural Play].
A temática indígena está presente em outros filmes seus. Como você vê o atual momento do cinema brasileiro, em que há maior atenção por parte do público, dos festivais e das plataformas para a produção cinematográfica que é feita pelos próprios indígenas?
A questão indígena é muito forte para mim, até pelo fato de eu ser uma mulher latino-americana, e Uaka partiu do meu interesse de me aproximar dessas questões. Foi um período longo de filmagem, de várias visitas à aldeia. Não se trata de um trabalho rápido e jornalístico; é mais a experiência de poder estar perto e de ir me aproximando lentamente. Sobre os realizadores indígenas, acho natural que estejam sendo convidados [para os festivais], porque os filmes são muito bons. Temos diretores indígenas brilhantes, aliás, [temos artistas indígenas brilhantes] em todos os setores – na pintura, nas artes visuais. Lembro-me, por exemplo, de quando assisti a Tatakox (2007), do Isael Maxakali. Para mim, esse filme reinventa a própria escrita do cinema. É extraordinário. Naquele momento percebi a relação intrínseca e direta do cineasta indígena com a linguagem cinematográfica. O indígena tem um olhar que é o próprio cinema. Parece-me que sua relação com o cinema é totalmente natural, quase que uma prolongação do seu olhar e da sua visão de mundo. Não há nada mais próximo do cinema do que esse olhar.
Voltando aos filmes disponíveis na Itaú Cultural Play, fale um pouco sobre Diário de Sintra.
Este é um filme que levou quase 25 anos para ser feito, porque as imagens filmadas em super-8, do período em que vivi com Glauber e meus filhos em Portugal, são de 1981. É um material muito interessante, que mostra o início da minha relação com a imagem em movimento. São os meus primeiros experimentos, porque tinha comprado uma câmera de super-8 e começado a filmar nossa estadia em Sintra, assim como paisagens e instalações. Estou registrando meus filhos e o Glauber, mas também a minha percepção da natureza. É um material mais contemplativo, que estabelece relação com os objetos, as composições, a luz, as impressões. Em 2007, ganhei o edital Rumos, do Itaú Cultural, e fui filmar em Portugal, para onde nunca tinha voltado desde a época das filmagens. Não é um documentário tradicional e não tem um recorte historicista ao pé da letra. É algo mais intuitivo, que mostra reencontros com amigos do Glauber 25 anos depois, mas também encontros espontâneos com pessoas de lá. É um percurso no tempo, um filme sobre a própria memória. São duas viagens em paralelo: a viagem física, do retorno a Portugal, e a viagem mental, da memória.
E o que diria sobre Noite?
Noite representa outro momento das minhas pesquisas. O som sempre foi parte fundamental dos meus filmes, mas, na década de 2010, comecei a trabalhar mais com músicos e a me interessar muito pelo noise, pelo ruído, pela música eletroacústica. Rodei o filme na noite do Rio de Janeiro, em espaços como a Audio Rebel e a Comuna, onde vários desses artistas tocavam. Crio uma história a partir da personagem da Clara Choveaux, uma mulher que transita pela noite à procura dessa sonoridade que também é interior e permeia suas emoções. Acho esse filme lindo. Fiz a câmera, a montagem, o design sonoro... É um filme muito especial e todo noturno. O título em inglês é Night box, porque é como se fosse uma caixa preta, um espaço sideral infinito. É como se o corpo dessa mulher estivesse em uma caixa de ressonância espacial, cósmica.
Você falou sobre como seu cinema aborda a memória e usa materiais do seu próprio arquivo, que são reinterpretados. Arquivo supõe preservação, algo extremamente problemático no Brasil, como mostrou o incêndio do galpão da Cinemateca, que inclusive afetou parte do acervo do Glauber. Para você, qual é a importância de um órgão como a Cinemateca e de preservar a memória audiovisual?
A preservação é fundamental para qualquer cinematografia, e a Cinemateca é o espaço onde se guarda a memória – a memória do cinema, a memória das coisas, a memória da memória, a memória do mundo, porque o cinema está a serviço do mundo e da história. Em 2021, recebi uma homenagem na nova Cinemateca de Bogotá, na Colômbia, um país também extremamente afetado por conflitos internos e por um governo difícil, que ataca a cultura. Porém, houve algum tipo de estratégia, uma articulação entre os cineastas e as políticas públicas da cidade de Bogotá, e eles conseguiram erguer aquela cinemateca impressionante, incrível. Fiquei muito comovida, porque, ao mesmo tempo que estava naquele lugar tão sofisticado, acompanhando uma retrospectiva dos meus filmes, também estava acompanhando o que estava acontecendo no Brasil, aquele estado de abandono.
O que aconteceu com o acervo do Glauber é muito triste, assim como é triste o que aconteceu com a memória de tantos outros autores. O cinema brasileiro, o mexicano e o argentino talvez sejam os mais importantes da América Latina, aqueles que têm história mais longa. É fundamental que essas cinematecas sejam tratadas da melhor forma possível e tenham tudo de que precisam. O Brasil tem equipes técnicas e pesquisadores extremamente qualificados, pessoas incríveis, que dedicam sua vida à preservação. Sabemos que existe a capacidade de termos uma Cinemateca maravilhosa, como já foi um dia. Mas é preciso que isso seja prioridade de todo e qualquer governo.
O cinema brasileiro vive um momento de especial dificuldade e limitação, por causa da pandemia e do desmonte promovido pelo governo federal. Sendo uma diretora que conseguiu fazer muitos filmes mesmo sem ter grandes recursos financeiros, o que diria aos cineastas brasileiros, especialmente os mais jovens, que se sentem desencorajados pelo cenário? Quais caminhos você vê para o cinema nacional?
Estamos atravessando uma versão mais grave do que aconteceu no período do [governo Fernando] Collor [que extinguiu a Embrafilme, órgão então responsável pelo fomento ao cinema nacional]. Foi um desmonte que vivi de perto, um momento de grande decepção e tristeza. Já havia feito alguns filmes, já sabia que queria trabalhar como realizadora, mas tinha três filhos – de 11, 10 e 2 anos –, era mãe solteira e viúva. Diante das circunstâncias, em 1993 tive de voltar para a Colômbia, onde fiquei até 2000, e consegui manter minha família trabalhando para a televisão colombiana. Fiz mais de 40 documentários, sempre com equipes reduzidas e orçamentos muito pequenos. A gente pesquisava, escrevia, viajava, ia para a ilha de edição fazer a montagem. Foi emocionante rever esses filmes na retrospectiva da Cinemateca de Bogotá do ano passado, pois toda a produção que fiz naquele momento foi muito importante para mim. Fui acostumada a trabalhar com recursos escassos. Aprendi a me virar, a tentar fazer muito do pouco – a ter poucos recursos e muita imaginação.
Acho que estamos revivendo esse momento nefasto da era Collor, mas de forma bem mais trágica. É um momento de desterro: estamos desterrados do nosso país. Este momento também exige reinvenção e nos leva a repensar que tipo de cinema podemos fazer e que tipo de novas estratégias é possível. Ao mesmo tempo que é um período gravíssimo, também é um período fértil, no sentido de que novas experiências irão surgir da necessidade de sobrevivência. Sinto que é muito importante que a gente se proteja, ou seja, que não deixemos que tudo isso que está acontecendo invada nossa percepção de mundo e nos tome por completo. Penso que o manifesto da “Eztetyka do sonho” [escrito por Glauber Rocha em 1971] faz muito sentido. É importante que a gente possa se reinventar a partir de uma nova percepção de como trabalhar, e que nosso imaginário possa ser, também, a nossa potência.