Na estreia da coluna “Perspectivas”, Rosane Borges resgata o contexto da última década para pensarmos em novos caminhos nos horizontes que se desenham
Publicado em 27/01/2023
Atualizado às 08:37 de 10/05/2023
Caso coloquemos em perspectiva a última década, sem recuar a outras quadras da nossa história, veremos que, desde 2013, pelo menos, desenhou-se no horizonte um cenário plúmbeo em nosso país. As manifestações legítimas que tomaram as ruas naquele ano não souberam ser decodificadas nem incorporadas às agendas tradicionais de lutas como mereciam e, assim, foram absorvidas pela sombra regressiva que ganhou corpo monstruoso e bárbaro nas eleições de 2018.
De lá pra cá, as vozes dos terrivelmente outros (negros, povos originários, população LGBTQIAP+, mulheres) irradiavam das bordas alertando, de forma ainda mais altissonante (os nossos passos vêm de longe, vale lembrar a frase da intelectual e ativista Jurema Werneck), que se fazia urgente a reconfiguração da política tradicional, visivelmente em decomposição, em que fosse possível outro pacto civilizatório. Como era de esperar, esse pacto teria de considerar as diversas formas de acepção do humano e, a partir desse princípio, partilhar o comum (Jacques Rancière) com todos, todas e todes da sociedade.
Tal partilha supunha que os terrivelmente outros do mundo deveriam também ser sujeitos de sua história e da história coletiva, o que colocou a expressão “fulane de tal me representa ou não me representa” no topo dos enunciados reivindicativos dos espaços digitais e materiais.
Já referi, em outros momentos, que cada tempo possui configurações e desafios políticos específicos, o que me levou a percorrer alguns traços que vêm delineando o nosso século: para além da covid-19 (que para muitos inaugura o século XXI), uma das marcas expressivas que vincam as páginas da nossa história recente são os embates “na ordem do imaginário, guerra de imagens e signos, sede de representação e visibilidade. Não sem motivos, entre as certezas, ainda que provisórias, que cultivamos, seguro-me, em tempos tão voláteis, a essa ideia de modo ferrenho de tal modo que se constitui em horizonte epistêmico e político”¹.
Como, portanto, avaliar essa reivindicação, que certamente não é nova, mas ganha novos contornos, alcança novos patamares e tem alguns reflexos positivos na institucionalidade brasileira (empresas públicas e privadas)? Como pensar a virada de chave, garantida nas últimas eleições, em que o desejo da maioria pela democracia derrotou a barbárie? Qual é o papel das mulheres e dos homens negros nesse processo? Como aprender com os povos originários, num contexto de terra arrasada para muitas etnias indígenas, com a morte brutal dos Yanomami, sintetizando sob qual guarda-chuva os vulneráveis estavam (des)abrigados(as)?
Mais do que resposta, tais questionamentos acima arrolados precisam ser tracejados como linhas de condução que nos levem ao jogo de temporalidades. A relação entre passado, presente e futuro, na perspectiva das culturas africanas, é sempre de formação e constituição, o que nos redireciona ao passado para recolher o que a empresa colonialista tentou soterrar e para oferecer ao mundo o que se escavou; só assim reabilitamos o presente e compomos o futuro. Como recuperar o tecido social tão esgarçado pela brutalidade e pela regressão? De que maneira desbloquear o nosso futuro? Quais são as perspectivas para este 2023, que começa tentando debelar o brutal, o passado que não passa (o extermínio dos povos originários é projeto deste país desde antanho)?
Em outros momentos, já defendi que podemos talvez principiar por refletir sobre essas questões considerando o lugar dos subalternizados no jogo político, interditados pela fala na efetiva participação na produção e no usufruto do comum. Lembrando a pensadora indiana Gayatri Spivak, poderíamos indagar: “Pode o subalterno falar?”.
Quando se concede a possibilidade de escuta às humanidades subalternizadas, elas ingressam na praça da visibilidade da vida pública como alguém a quem o Estado deve prover e quase nunca como alguém que detém a capacidade de definir os destinos de uma coletividade. É preciso, assim, uma compreensão coletiva de que é fundamental uma antecedência no que diz respeito à reconfiguração do comum, entendendo este comum como um espaço em que se percebe a divisão entre espaços, tempos e formas de atividade desempenhadas pelos sujeitos que possuem a capacidade de definir como eles tomam parte no processo de repartição do visível, para lembrar novamente o pensador Jacques Rancière.
A feminista negra e pensadora Lélia Gonzalez, quando iniciou sua conferência na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), declarando que “o lixo vai falar e numa boa”, estava incidindo sobre essa deformação democrática brasileira. Levar minimamente em conta o que esse enunciado ensina ao momento presente supõe dele extrair a seiva para que de fato viremos o jogo e, quem sabe, se aviste logo ali um mundo em que a vida de cada um(a) e de todos(as) efetivamente importa.
Obs.: este artigo são minhas perspectivas de estreia nesta coluna, que leva o mesmo nome daquilo que me impulsiona a escrever. O nome da coluna não é, portanto, algo fortuito, mas desenha as possibilidades de escrita num “tempo partido, de homens partidos”, para lembrar Carlos Drummond de Andrade. Até as próximas perspectivas!
¹ Trecho do prefácio, de autoria de Rosane Borges, para a edição brasileira de Olhares Negros: Raça e Representação, de Bell Hooks.