Cléo de Verberena, a primeira mulher a dirigir filmes no Brasil, fundou, ao lado do marido, a produtora Epica-Film
Publicado em 25/08/2021
Atualizado às 18:34 de 16/08/2022
"Uma senhora convidada a assumir a direção de um filme em São Paulo, onde as dificuldades nesse campo chegam a desanimar muitos homens, é sem dúvida uma novidade palpitante. A Epica-Film é a empresa que prepara essa surpresa para nosso público e a corajosa e interessante patrícia que a isso se propõe é Cléo de Verberena.”
Foi com essas palavras que, em 1930, o jornal Diário de S. Paulo anunciou o começo da carreira daquela que se tornaria a primeira mulher a dirigir filmes no Brasil. Se em 2021 ainda há quem pense que a participação feminina no audiovisual é “novidade palpitante”, a breve nota sobre Cléo de Verberena é um lembrete de que no Brasil, como em muitos lugares do mundo, as mulheres dirigiram filmes antes mesmo de poderem votar.
Reportagens como a do Diário de S. Paulo são a principal fonte de informações sobre a vida de Cléo de Verberena, na verdade Jacyra Martins da Silveira, que nasceu em Amparo, no interior de São Paulo, em 1909. Ela e o marido, César Melani, dividiam a paixão pelo cinema, e em 1929 fundaram juntos a produtora Epica-Film. No ano seguinte, Cléo lançou O Mistério do Dominó Preto, o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher no Brasil, no qual também atuou.
Foi uma carreira breve: Cléo abandonou a vida artística na segunda metade dos anos 1930, após dificuldades financeiras da Epica-Film, projetos frustrados como atriz e a morte do marido. Mas ela não foi a única mulher que se destacou por trás das câmeras no Brasil durante o cinema mudo. A atriz e produtora Eva Nil (1909-1990) é outro nome importante, uma jovem nascida no Egito que fundou a Atlas Film junto com o pai Pedro Comello. Foi ele quem dirigiu a única produção da empresa, Senhorita Agora Mesmo (1927), na qual Eva trabalhou como atriz, produtora e assistente de câmera e laboratório, além de ter se encarregado da divulgação.
Outro nome fundamental é o de Carmen Santos (1904-1952), atriz e produtora que nasceu em Portugal e se mudou para o Brasil ainda na infância. Com grande atuação em frente e por trás das câmeras, ela estrelou obras de diretores importantes, criou a produtora Vox Filmes (depois Brasil Vita Filmes) em parceria com Humberto Mauro e dirigiu Inconfidência Mineira (1948), considerado perdido, e A Carne (1923), que nunca chegou a ser lançado.
Cléo, Eva e Carmen foram perfiladas pelo Women Film Pioneers Project, renomado projeto da Universidade de Columbia, em Nova York, que reúne informações sobre pioneiras do cinema mundial. Nos três perfis, uma informação em comum: não há como assistir aos trabalhos delas. O texto sobre Carmen Santos, escrito por Ana Santos, afirma que “uma completa avaliação de sua contribuição para a indústria cinematográfica brasileira é prejudicada pela irreparável perda da maioria de seus filmes”. Acrescenta, ainda, que os únicos três filmes nos quais Carmen atuou e que ainda estão completamente preservados são Limite (1931), de Mário Peixoto; e dois de Humberto Mauro: Sangue Mineiro (1929) e Argila (1940).
Em outro texto, a pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo afirma que todos os filmes de Eva Nil foram perdidos, e que uma das principais fontes de informação sobre a artista são cartas trocadas por ela com o jornalista Pedro Lira, um precioso material dividido entre o acervo da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e o do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Curiosos em assistir ao primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher no Brasil também esbarram na impossibilidade de fazê-lo. O Mistério do Dominó Preto é um filme perdido, e tudo o que sabemos sobre ele vem do que foi publicado na imprensa - a sinopse, algumas fotos e uma única crítica.
Um caso emblemático
A falta de cuidado com o cinema mudo não é particularidade do Brasil, nem algo que atingiu exclusivamente cineastas mulheres. Obras pioneiras de todo o mundo foram guardadas de forma inadequada, tratadas com pouco cuidado, danificadas por incêndios ou simplesmente perdidas.
Um caso emblemático é o da francesa Alice Guy-Blaché (1873-1968), a primeira diretora de todos os tempos, que lançou seu primeiro filme, A Fada do Repolho, em 1896, apenas um ano depois das exibições dos irmãos Lumière que hoje são consideradas o marco inicial do cinema. Uma das primeiras obras audiovisuais de ficção da história, A Fada do Repolho fez sucesso na época do lançamento, mas também não foi preservado (a versão que se encontra na internet é, na verdade, um remake filmado pela diretora em 1900).
Alice foi uma profissional prolífica: de 1896 a 1920, dirigiu cerca de mil filmes entre curtas e longas-metragens, foi chefe de produção cinematográfica dos estúdios Gaumont na França e dona de sua própria empresa, a Solax, nos Estados Unidos. Sua importância é indiscutível, mas até pouco tempo seu nome era completamente desconhecido pelo público e ignorado por livros e cursos especializados.
A história de Alice Guy-Blaché é a de uma mulher que lutou para impedir que o mundo a esquecesse. Durante anos ela se dedicou à recuperação da própria trajetória, seja corrigindo livros e artigos que não mencionavam seu trabalho, seja escrevendo sua autobiografia, publicada apenas postumamente. Seu principal esforço, porém, foi no sentido de tentar encontrar seus filmes. Teve algum sucesso, mas muitas obras só foram localizadas após sua morte e centenas de outras seguem perdidas.
Perda irreparável
Histórias como as de Alice, Cléo, Eva e Carmem ganham especial relevância neste momento catastrófico da cultura brasileira, especialmente no que diz respeito à conservação. No final do mês de julho, um incêndio consumiu um galpão da Cinemateca Brasileira, o principal órgão responsável pela preservação do audiovisual do país.
A imagem das chamas consumindo o prédio causaram tristeza e revolta, mas não surpresa, pois os problemas da instituição, que já eram antigos, foram elevados à mais alta potência na presidência de Jair Bolsonaro. Em 2019, o governo federal encerrou o contrato com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), organização social que fazia a gestão da Cinemateca, e em agosto de 2020, recolheu oficialmente as chaves do prédio. Como nenhuma outra organização foi escolhida como gestora, a Cinemateca foi fechada, os funcionários foram dispensados e o acervo delicado e altamente inflamável ficou abandonado. A partir dali, a destruição não era mais questão de se - era questão de quando.
Pôr em palavras o impacto da perda de um acervo como o da Cinemateca é tarefa tão difícil que muitos optam por um único adjetivo: irreparável. Com o acervo perde-se parte da história, da cultura e da identidade do país, inúmeros documentos, sons e imagens que ofereciam uma valiosa janela para quem fomos, quem somos e quem podemos vir a ser. "Um país é seu território, sua geografia, suas riquezas, mas principalmente sua história e sua cultura”, me disse a atriz Andrea Beltrão em uma conversa sobre a Cinemateca no ano passado, nove meses antes do incêndio. "Quando você vai conhecer um lugar, você não quer saber quanto tem disso, qual a riqueza. Você quer saber: qual a cultura? O que eles fazem aqui? O que eles dançam aqui? O que eles assistem aqui? Como eles vão para a rua? Então a Cinemateca é o coração, o cérebro, as vísceras da nossa história.”
Heróis anônimos
A perda irreparável tem impacto, também, na busca por outras Alices e Cléos que foram apagadas pelo machismo e pelo descaso com a cultura. Não há como conhecer ou contar outra história do cinema sem a ajuda das instituições e pessoas que trabalham com a preservação, que localizam, recuperam e analisam o material que pode ampliar nossa compreensão sobre o audiovisual e a própria sociedade. Quando conversei com Pamela B. Green, diretora de Be Natural: A História Não Contada da Primeira Diretora do Mundo (2019), um documentário sobre Alice Guy-Blaché, ela definiu os profissionais do setor de preservação como “heróis anônimos”. “São pessoas que trabalham duro e se importam com os filmes, que tiram tempo para analisar o inventário, que têm mente aberta para questionar o que está na prateleira e para olhar as novas informações que podem mudar a história do cinema”, afirmou.
Sem arquivistas, historiadores e pesquisadores, não poderíamos ver os filmes de Alice Guy-Blaché nem reunir o conhecimento que temos hoje sobre as pioneiras brasileiras. Não saberíamos que a americana Lois Weber (1879-1939), uma das mais importantes cineastas dos anos 1920, era a verdadeira diretora de alguns dos filmes atribuídos a seu marido, Phillips Smalley (1904-1922). Não teríamos tido acesso aos filmes etnográficos de Zora Neale Hurston (1891-1960), que registrou o modo de vida dos negros no sul dos Estados Unidos. Não teríamos visto As Aventuras do Príncipe Achmed (1926), o mais antigo longa de animação preservado da história, dirigido pela alemã Lotte Reiniger (1899-1981) mais de uma década antes de a Disney lançar Branca de Neve e os Sete Anões (1937), e cuja cópia original fora destruída durante a guerra. Não teríamos redescoberto Amor Maldito (1984), de Adelia Sampaio, a primeira mulher negra a lançar um longa-metragem nos cinemas do Brasil.
Os exemplos são tantos que chegam até à era pandêmica. Em maio de 2020, funcionários da Filmoteca Espanhola localizaram Mallorca, um curta da década de 1930 que pode ser o primeiro filme sonoro dirigido por uma mulher no país. Entregue à filmoteca em 1982 e atribuída ao diretor Francisco Aguiló Torrandell, a obra nunca tinha sido digitalizada até dias antes de a Espanha decretar estado de emergência por causa do novo coronavírus. Em confinamento, os funcionários da Filmoteca assistiram ao curta e descobriram, logo nos créditos iniciais, que a direção não era de Torrandell, e sim de uma mulher, María Forteza.
O caso Mallorca é mais um doloroso lembrete de que o real impacto da destruição de arquivos como o da Cinemateca escapa à nossa real compreensão. Nesta perda irreparável, não perdemos só aquilo que conhecemos: perdemos, também, o que nem chegamos a conhecer.