Na coluna “Na ponta da agulha”, o jornalista Jorge LZ destaca o olhar atento de um artista que dá aos figurantes o protagonismo que lhes é devido
Publicado em 17/09/2024
Atualizado às 11:25 de 24/09/2024
“Gosto de falar dos figurantes, o protagonista não me interessa tanto” – assim declara Paulo Vitor Castro, o Caxtrinho, nascido em Belford Roxo, no Rio de Janeiro. A frase, que está em seu release, sintetiza o que se percebe ao ouvir Queda livre, seu primeiro álbum, que chegou às plataformas digitais no fim de agosto. A edição é do QTV Selo, que celebra dez anos de serviços prestados à música com um catálogo de primeira, que inclui nomes como bella, Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Mbé, Saskia e Tantão e Os Fitas.
Cantor, compositor e violonista, Caxtrinho, em dez canções (nove de sua autoria, com parcerias, e uma, “Merecedores”, assinada por Kau), constrói uma crônica urbana na qual, por meio de um texto afiado e, ao mesmo tempo, direto e poético, desfia as complexidades da Baixada Fluminense – região rica culturalmente, mas pouco favorecida pelo poder público. Assim, o artista dá protagonismo aos tais figurantes ao relatar o dia a dia de quem normalmente é invisibilizado.
Se o texto é afiado, a parte musical segue na mesma batida. Ou melhor: nas mesmas batidas, já que Caxtrinho trabalha suas composições de várias formas, enriquecendo seus sambas com diversas correntes, do funk ao jazz, passando por blues, rock e ritmos do nordeste brasileiro. Os arranjos são um capítulo à parte, a começar pela maneira altamente percussiva com que ele empunha o instrumento, criando a tensão perfeita para embasar seu discurso. As quebras de compasso e certa atonalidade em faixas como “Branca de trança”, parceria com Xuxuvevo, e “Papagaio”, nos remetem à Vanguarda Paulista (Arrigo Barnabé, principalmente, ainda que isso não se configure em uma influência direta). Segundo Caxtrinho, uma de suas maiores influências é Luiz Melodia, que paira sobre o samba esperto “Brankkkos”, com a participação especial de Negro Leo, e sobre o já citado samba-jazz atonal “Papagaio”.
Queda livre foi produzido por Vovô Bebê e Eduardo Manso, dois artistas extremamente criativos e abertos às possibilidades de experimentação, tanto como produtores quanto em seus trabalhos autorais. A dupla conseguiu criar o ambiente ideal para que a potência de Caxtrinho fluísse perfeitamente. Além disso, eles se encarregaram da instrumentação, com o primeiro na guitarra e na flauta e o segundo na guitarra, no sampler, no Rhodes, no sintetizador, na escaleta e no harmônio. Aos dois, juntaram-se João Lourenço no baixo e Phill Fernandes na bateria. O álbum ainda conta com a participação de vários nomes do cenário musical contemporâneo, com destaque para Ana Frango Elétrico, no coro de “Branca de trança” e na voz e no piano de “Merecedores” (que também tem Tori e Bruno Schiavo), e Thomas Harres, presente na percussão em “Papagaio”, “Rolê na B2” e “Queda livre” (parceria entre Caxtrinho e Kau). Outros destaques do álbum são “Samba errado”, com Romulo Fróes – um encontro de Rio e São Paulo em um samba ótimo que de “errado” só tem o nome –, e “Vó jura”, canção instrumental com toques de psicodelia.
Autêntico e convicto, Caxtrinho traça seu caminho musical com firmeza, sem cair no canto de sereia do pop-chiclete-tropical, optando por uma estética livre de amarras. Desse modo, cria uma obra consistente, instigante e sofisticada que, além do enorme valor artístico, traz à tona uma discussão importante ao colocar os figurantes no seu verdadeiro lugar: o dos protagonistas.
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