Em sua estreia na coluna Game Perifa, Andreza Delgado fala do consumo de "games" no Brasil e desconstrói o estereótipo do que é um "gamer"
Publicado em 24/07/2022
Atualizado às 11:44 de 19/01/2023
Minha estreia nesta belíssima coluna, que vai abordar o universo dos jogos, não poderia ser de outro jeito: uma provocação-manifesto.
Para começo de conversa, acho de bom tom contar que andam vendendo por aí que a indústria dos games é um lugar de muitas oportunidades. Acredito que não seja totalmente uma inverdade, mas precisamos abrir a caixa da indústria e problematizá-la um pouco mais para ver se realmente estão chovendo oportunidades e, obviamente, para quem.
Os números apontam que o Brasil está em quinto lugar no mercado consumidor mundial de jogos eletrônicos, e isso significa muita coisa, inclusive que precisamos entender quais são os perfis dos gamers no país. Quem são esses jogadores? Pertencem a que classe?
A princípio, talvez este texto pareça não ser uma leitura para todas as audiências, até pela falsa sensação de que pensar sobre o que significa a indústria dos games, sobretudo no Brasil, seja apenas para o público gamer. Posso prometer que, ao terminar a leitura, você vai concordar comigo e, inclusive, com a afirmação de que gamer não é só quem tem o maior e o melhor setup e joga absolutamente bem.
Juro para você: sua tia, sua mãe e sua vizinha, que amam jogar Candy Crush e Colheita Feliz no ônibus na volta do trabalho, também são gamers. E, já que tocamos no assunto dos jogos de celular – os famosos mobile, ou “joguinhos de celular”, como por vezes são depreciativamente chamados por aqueles que acreditam que quanto maior o setup melhor –, esses seguem trazendo grandes feitos. Free Fire, por exemplo, é considerado um fenômeno. Com números gigantes de jogadores e com campeonato próprio, o jogo movimentou uma audiência de 14 milhões de pessoas com a exibição da sétima edição da Liga brasileira de Free Fire na TV. Veja bem: estamos falando de um jogo de celular, em que os gráficos fogem da perfeição, mas que com certeza tem mudado a vida de algumas centenas de pessoas.
O jogo mudando
Eu me lembro de quando realizei a Copa das favelas – campeonato voltado para jogadores de favelas de todo o Brasil – e decidimos que a disputa seria com um jogo mobile. Nós colocamos em evidência vários times de jogadores com histórias incríveis e que precisavam ganhar espaço entre as que sempre são apresentadas: de jogadores profissionais das categorias de eSports que ostentam riquezas e fazem parecer que é tudo fácil em suas mansões gamers.
Entre pró-players e jogadores
A “Pesquisa Game Brasil” de 2021 apontou que negros e pardos representam 50,3% do público interessado em jogos no Brasil. No entanto, precisamos falar que, em contrapartida, as propagandas e as oportunidades para pró-players e influenciadores, assim como os demais espaços de trabalho na indústria, não abraçam essa parcela significativa da população. É inevitável a necessidade de seguirmos desconstruindo a imagem única do homem branco num mundo cheio de oportunidades. Será que não tem oportunidade para todo mundo? Ou existe uma escolha preguiçosa de continuar segmentando uma comunidade com o mesmo perfil? Não é apenas sobre números, mas também sobre a escolha que a indústria tem feito e sobre quem tem sido chamado de representante da comunidade.
Falando sério, quanto está custando um computador completo hoje? Por menos de 5 mil reais, você não compra uma máquina boa para fazer streaming e treinar para um campeonato.
Na outra ponta, avançamos incomodando e tocando o terror no imaginário daqueles que acham que uma comunidade se faz com apenas um perfil. Avançamos com iniciativas como o coletivo Wakanda Streamers, o AfroGames, a Copa das favelas, os Campeonatos indígenas e tantos outros contrapontos que me levam a acreditar fielmente que outra fase desse universo gamer é possível, com uma comunidade saudável e diversa.
Para celebrar as mudanças e aquecer os corações, no dia 15 de julho, Sher Machado, uma travesti negra, ganhou o prêmio de melhor streamer feminina numa premiação de alcance enorme. Alguns decidiram ir para as redes sociais contestar a vitória, e eu me peguei pensando que nunca existiu um rompimento de privilégio que não trouxesse barulho.“Enquanto os cães ladram, a caravana passa.” Em todos os anos, as categorias estão repletas de pessoas brancas vencendo e isso não traz nenhum desconforto, mas basta alguém que consideram “fora da curva” assumir o lugar de destaque e ter o trabalho reconhecido que tudo vira uma grande questão.
A verdade é que o problema não é exatamente o jogo, mas sim uma sociedade em que sempre se beneficiaram determinados grupos. E talvez, no fim, essa disputa toda para democratizar o que é um gamer também sirva para avançarmos na disputa por uma sociedade melhor.
Talvez eu não consiga colocar em palavras o quanto caminhamos para novos cenários enquanto tudo muda e avança no que diz respeito à tecnologia, mas o fato de estar neste espaço iniciando minha primeira coluna e trazendo essas reflexões é uma pontinha desses novos olhares e oportunidades.