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Quero ser o Tony Leung

Na coluna deste mês, Rodrigo Masina reflete sobre o que é trabalhar com imagem

Publicado em 13/07/2022

Atualizado às 11:41 de 19/01/2023

Por Rodrigo Masina Pinheiro

por Rodrigo Masina Pinheiro

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A fotomontagem de 1928 de Claude Cahun e Marcel Moore: dois corpos dentro d'água olham para fora d'água. Esses dois corpos são dois narcisismos refletidos. São apenas os seus reflexos. Não há nenhum corpo que olha, que quase cai na água. Só há reflexo. Cahun escreveu: “Nossos dois narcisismos se afogavam, era o impossível realizado num espelho mágico”. É muito intrigante falar do narcisismo afogado e não do Narciso. Ainda mais para nós que trabalhamos com a fotografia. Quero poder afogar quem eu fotografo, e não manter seco. Cahun ainda declarava: “Narcisismo absoluto: não-cooperação com Deus. Resistência passiva”. Que estratégia fabulosa a de não cooperar com a continuidade. Não fazer promessas. Sou uma fotógrafa que não faz promessas também. É essa, e somente essa, a melhor forma de usar o diafragma e respirar embaixo d'água. E a melhor forma de futuro. E de se amar. O futuro é uma promessa da normatividade que luta por um sistema de amor reprodutivo e eterno. Enquanto, para nós, o descontínuo é a esperança de uma futuridade queer. Esses últimos termos não são meus, são de tantos estudiosos, de José Esteban Muñoz, por exemplo. Estou com o livro de Viníciux da Silva (com uma dedicatória linda) e li seu diálogo com Helena Vieira. Eu me pergunto onde estará a fotografia nisso tudo. Nós temos fabricado uma economia do desejo visual que nos faça ser desejades por nós mesmes? Eu quero isso para mim. Um espelho que me deixe sem roupa. Que vá além das aparências. Vou tentar descrever o meu narcisismo. Estou andando na calçada da Vila da Penha, tenho 12 anos, e digo para todo mundo que me olha enquanto passa por mim: “Foda-se, não, não”. Vou xingando e negando antes de as pessoas dizerem ou pensarem alguma coisa. Essa autonomia de andar na rua é parte da minha futuridade.

Ninguém pode entrar duas vezes na água do mesmo batismo, pois quando nela se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, da série GH, Gal e Hiroshima (2020)

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Martine Gutierrez está em um quintal só de calcinha. Algumas peças de roupa branca secam penduradas no varal, ao sol. Ela está de quatro em cima de um espelho. Um dos seus joelhos está apoiado na moldura rosa que contorna esse espelho. Uma das suas mãos está apoiada na mesma moldura. Ela se equilibra. Tem a coluna arqueada, a lombar para baixo, uma postura de ataque, e usa uma peruca loira que lembra o cabelo da Marilyn Monroe. Martine é uma mulher trans de ascendência indígena. Isso acontece em seu filme China doll, de 2020. Nesse momento, ela narra sobre três pessoas: a mulher dentro do espelho, a mulher em cima do espelho e nós que assistimos ao filme. "Se eu sou o espelho e ela é a imagem, quem é você?" Ela se toca, acho que se masturba, enquanto se vê. Se eu, Masina, fosse ela, me tocaria também, é o que penso. Será que penso assim sobre todas as fotografias que amo? Se eu fosse uma fotografia que amo olhar, faria a mesma coisa que ela faz. Quero ser a fotografia. Transformo a fotografia em mim. Entro devagar no evento da fotografia como se tomasse um banho de revelador, parador e fixador.

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Na voz de Roni Horn: “Na sala de espera de um consultório médico, há uns anos, ouvi uma mãe dizer que seus filhos tinham medo de entrar. Se não pudessem ver lá dentro, não entrariam. É como ser desmembrado”. Roni, artista visual, começa com essas palavras o seu monólogo chamado Saying water (Dizendo água). Sinceramente, entendo as crianças. A qualquer momento, elas seriam dissolvidas. É como ir ao teatro. Tenho medo de os atores me chamarem para subir no palco. Sou capaz de deixar de ir à peça. Deixo perfeitamente de ir a qualquer lugar. Roni faz uma comparação entre a sala de espera e a água de um rio, opaca por causa da poeira das pedras e da sujeira da terra. Só existe a superfície da água. Atrás da superfície é o desconhecido. Roni fala ainda dos suicidas que entraram no Rio Tâmisa, e em muitos outros, para desaparecer. Lembro da Virginia Woolf. Não quero mais dizer do que me lembro. Mas é no opaco que vemos a nossa imagem e a imagem do céu e das árvores. Na água transparente está a confiança: não nos vemos. É a fotografia que pode nos partir.

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Dark room (quarto escuro) é o lugar onde se transa com desconhecidos em uma boate e é o laboratório onde se revelam fotografias. Dark room é também o título da série em andamento do fotógrafo Paul Mpagi Sepuya. As fotografias da série são autorretratos em que ele, o fotógrafo, às vezes aparece, sempre nu, acompanhado por amigos e amantes, também nus. E às vezes ele, o fotógrafo, quase aparece. Fica só o vestígio. Os autorretratos parecem colagens feitas no ato de fotografar. Não sei até que ponto posso chamá-los de autorretratos. Tem vezes em que ele desaparece e fica representado por sua câmera refletida. Paul não faz pós-produção, tudo acontece na hora. O estúdio de Paul é cercado por espelhos imensos, fixos e móveis, e é através deles que vemos sua câmera, seu tripé armado, seu corpo nu e seus amigos e amantes nus. Todos se ocultam e se revelam sem pudor. Interagem. Abraçam-se. Alguns tecidos são estrategicamente pendurados para cobrir partes do espaço e do corpo, mas ainda sem pudor. Só cobrem o corpo para desmembrá-lo. Fotografias picotadas de outros corpos são coladas no espelho e produzem um efeito curioso, parecem buracos no vidro. Braços, cinturas, torsos, bundas, a gordura da pele de outros corpos marcada na superfície do espelho, como digitais da presença, tudo em um enquadramento que privilegia a desconstrução. O que é que ele quer dizer com dark room? Ele fala sobre todos os quartos escuros. Ele diz que o corpo negro, dele, dos amigos e dos amantes, faz com que as digitais do espelho apareçam. No claro, não se vê nada. Que a pele e o veludo preto revelam a presença daquilo que já aconteceu e virou mancha, virou embaçamento. Se Paul foi pressionado contra o espelho, se pressionou alguém, se alguém já suou em cima do espelho, se alguém já entrou e saiu, se. O embaçado gorduroso registra tudo.

Screenshot do filme Hiroshima, mon amour, da série GH, Gal e Hiroshima (2020)

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Quero ser o Tony Leung. Ter o seu jeito de andar, de olhar, a sua postura quieta, a sua forma de beleza. Vejo o Tony na tela do cinema e da TV até esquecer que eu sou eu, aqui fora, e ele é ele, lá dentro. Vejo Amor à flor da pele, um dos melhores filmes que já vi, e quero ser o Chow Mo-wan e a Su Li-zhen, as personagens. Quando me vejo em um retrato, sem perceber, passo pelo mesmo processo de admiração. Isso caso eu fique bonite, o que é raro, então tenho medo de retratos. Se não for para me afogar, não quero, não gosto de ficar seca, dói não sentir o ímpeto de querer entrar e ao mesmo tempo ter medo de entrar. A vertigem de estar diante e dentro. De mexer o braço, virar o rosto e ver o braço mexer, o rosto virar; de estar em sincronia com alguma coisa. O Tony é melhor que eu. Eu nunca vou ser como quero. Escrevi isso porque, simplesmente, faz falta se ver. José Esteban Muñoz, mencionado no primeiro parágrafo, escreve sobre as disidentifications (desidentificações), título de seu livro de 1999. A capa é um retrato avermelhado da performer Vaginal Davis. Um corpo feminino negro que veste uma coroa de flores por cima de uma peruca loira lisa e comprida, até o colo, onde, entre as pernas, outras flores estão colocadas. Atrás dela, da Vaginal, estão vários recortes de revistas. Há um homem branco de bigode, talvez de uma pornografia da década de 1970. É uma colagem enorme, um mural em segundo plano, mas muito importante para a capa do livro; a Vaginal Davis sob uma luz vermelha e a colagem de homens gays normativos. Agora, de novo, o que quero dizer é que, simplesmente, as pessoas dissidentes de tudo desenvolveram o hábito, danoso ou não, de se verem espelhadas naquilo que não as representa. Mas esse hábito também é perspicaz e ambíguo. Esse hábito distorce aquilo que vemos, adapta, tem a malícia de inventar um contexto novo, de perdoar as lacunas, de fazer com que aquilo que não nos representa em imagens se transforme em nós. Penso nas divas da música e do cinema. O que você quer ser? Aquilo. Usamos de metáforas, vivemos de metáforas. A fotografia é boa para isso.

Autorretrato com palo santo, da série GH, Gal e Hiroshima (2020)

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Sabe uma outra coisa? Não sei se trabalhar com imagem é se aceitar ou não se aceitar. O que não é, com certeza, é ser modesto.

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