Laura Esber aborda o fenômeno e as estratégias iconoclastas de grupos em casos pelo Brasil e pelo mundo
Publicado em 09/12/2021
Atualizado às 10:43 de 15/02/2022
Uma onda de iconoclastia varreu os países da antiga União Soviética a partir de 1989. Diversos monumentos foram retirados, realocados ou totalmente destruídos. Há também os que foram abandonados – encontráveis hoje em fundos de quintal, oficinas desativadas e estábulos – ou dispersos sobre roçados. Memoriais de guerra soviéticos espalhados pela Europa Central foram vandalizados, enquanto nas repúblicas centrais da antiga União Soviética novos monumentos foram construídos. As obras do período comunista que sobreviveram nas cidades se tornaram objeto de intervenções políticas e artísticas constantes.
Enquanto na antiga União Soviética a retirada e a destruição de monumentos seguiram um curso mais ou menos previsível – e já vivido em outros contextos históricos de mudança de regime político –, é inegável que as estratégias iconoclastas ganharam força e certo grau de “originalidade” após o “sucesso midiático” do 11 de Setembro. Para teóricos da imagem e estudiosos da cultura visual, o 11 de Setembro foi o evento espetacular que marcou o início da época contemporânea, instaurando nela a marca da iconoclastia como parte de uma disputa acirrada pela gestão das imagens e dos símbolos de poder.
A partir de então, terroristas islâmicos de diferentes grupos passaram a investir também na captação e difusão midiática da destruição de patrimônio artístico e cultural, como ocorreu com as estátuas de arenito conhecidas como os Budas de Banyam, demolidos num bombardeio no Afeganistão a mando do Talibã. Em 2015, foi destruído o sítio arqueológico assírio de Nimrud, no Iraque, e no ano seguinte foi a vez dos templos de Bel e Baal-Shamin, com mais de 2 mil anos, e ainda do arco do triunfo de Palmira, na Síria. Essas últimas foram ações reivindicadas pelo grupo Estado Islâmico (EI).
No Brasil, todo ano, o monumento a Zumbi – legado do Governo Brizola situado na Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio de Janeiro – é alvo de pichações com clara preferência por símbolos nazistas. Mas há também ataques a monumentos que escapam à pauta antirracista e/ou política e podem ser vistos como expressão mais próxima da ideia de vandalismo, em geral equivocadamente utilizada para descrever ações de iconoclasmo de teor político.
Algumas estátuas que representam, por exemplo, músicos e escritores brasileiros, várias delas até muito queridas pela população, são sistematicamente depredadas. É o caso da estátua de Noel Rosa, que já foi cortada, decapitada e roubada inúmeras vezes. Os óculos do poeta Carlos Drummond de Andrade, uma das obras prediletas para selfies entre cariocas e turistas de passagem pelo Rio, foram roubados pelo menos 12 vezes. Anos atrás, uma estátua de 400 quilos comemorando a República independente foi roubada para ser fundida e revendida.
Não é raro haver pessoas sem-teto dormindo ou vivendo improvisadamente sob monumentos. A precariedade social também se reflete na forma como lidamos e em que valor atribuímos aos monumentos, o que diferencia o contexto brasileiro do de cidades europeias ou estadunidenses, nas quais o patrimônio público – e as estátuas e os monumentos em particular – é fiscalizado e protegido de maneira mais ostensiva e efetiva, envolvido, em alguns casos, numa aura de sacralidade.
Até não muitos anos atrás, a remoção de monumentos públicos e a instalação de novas estátuas eram feitas de forma caótica e aleatória, muito em função das amizades e inimizades dos prefeitos. Somente em 2013 a cidade de São Paulo criou um setor que regulamenta, discute e supervisiona essa questão. Ou seja, os desafios para a preservação do patrimônio são enormes. Isso talvez se reflita na não prioridade de remover os monumentos, pois eles não são vistos como tão seguros ou permanentes.
Os iconoclasmos contemporâneos expressam uma importante mudança de atitude das sociedades em relação ao manejo das imagens que elas utilizam para se legitimar e autorrepresentar. Nos Estados Unidos, Cecil Rhodes, figura-chave na propagação do Império Britânico, tornou-se o centro do debate sobre memorialização. Os monumentos erguidos em sua homenagem foram atacados, e alguns deles removidos, tanto no Reino Unido como na África do Sul, onde o movimento foi batizado de Rhodes Must Fall e se infiltrou nos campi universitários.
Como declarou Zethu Matebeni, membro do movimento e pesquisador do Institute for Humanities in Africa, da Universidade da Cidade do Cabo, o protesto não pode ser reduzido à proposta de remoção da estátua. A campanha, que começou em março de 2015 na Universidade da Cidade do Cabo, catalisou diversas pautas do movimento estudantil, incluindo a descolonização da universidade e o direito ao Ensino Superior gratuito.
No dia 9 de março de 2015, o estudante e ativista Chumani Maxwele despejou um balde de excrementos humanos sobre a estátua de Cecil Rhodes situada no campus universitário. A ação individual de Maxwele, que depois também liderou o movimento Fees Must Fall, tornou-se manchete em jornais sul-africanos e ajudou a consolidar o movimento Rhodes Must Fall no campus. Em 9 de abril do mesmo ano, após votação do conselho da Universidade da Cidade do Cabo, e mesmo diante da divisão da sociedade sul-africana sobre o tema, a estátua foi removida.
Na disputa pelo sentido e valor dos iconoclasmos, setores populistas e extremistas de direita são rápidos em se apropriar de vídeos e registros fotográficos de ações militantes, utilizando-os para desmoralizar os envolvidos com campanhas vexatórias e mentiras que desorientam e seduzem seu público-alvo. O problema não é só brasileiro nem norte-americano. Na bem mais pacata Dinamarca, uma ação realizada em novembro de 2020 por uma professora e seus alunos resultou em arremessar num dos canais da cidade um busto retirado do edifício da Real Academia de Belas-Artes da Dinamarca – e teve precisamente o mesmo destino.
O busto do Rei Frederik V, fundador da academia de artes, era uma réplica feita em gesso nos anos 1950 a partir de um original de bronze do século XVIII, mas mesmo assim a professora, que assumiu a responsabilidade pela ação, foi demitida, um inquérito policial foi aberto e, meses depois, a ministra da Cultura demitiu a reitora da instituição, alegando que ela não fora capaz de produzir a articulação devida entre a demanda dos estudantes e as tensões produzidas por essa iniciativa. As imagens da ação, insistentemente criminalizada e qualificada de vandalismo por setores tanto da direita quanto da esquerda, foram inicialmente captadas de forma anônima: a filmagem foi feita em baixa resolução, de forma improvisada, mas adquiriu grande visibilidade ao ser divulgada por Morten Messerschmidt, uma das lideranças do Dansk Folkeparti, um partido populista de direita.
Todos esses fenômenos são distintos e merecem análises detidas capazes de revelar a complexa história dos iconoclasmos contemporâneos, permitindo mostrar as diferentes atitudes da sociedade em relação aos símbolos de poder e aos ícones culturais que elegemos para ser instalados na paisagem urbana.
As estratégias iconoclastas de grupos militantes devem continuar se fortalecendo nos próximos anos e, em diversos casos, como no brasileiro, terão de se defrontar inevitavelmente com uma paisagem política marcada pelo que Jacques Rancière chama de “ódio à democracia”. Nesses contextos, a estratégia iconoclasta também pode ser arrastada para dentro dos fluxos de exploração midiática do desgaste dos sistemas políticos vigentes, adensando o caldo perigoso da descrença no sistema político representativo e na própria democracia. Isso não deve ser motivo para um recuo estratégico, mas para a elaboração de estratégias discursivas, midiáticas e políticas mais atentas ao modo como setores reacionários podem utilizar imagens de protesto a seu favor.