Rogério Felix estreia esta coluna mensal com um mergulho em exposições etnográficas e seus engendramentos de apropriação da herança cultural
Publicado em 12/05/2021
Atualizado às 17:29 de 10/08/2021
Tendo em vista que a fotografia, em suas potências de linguagem, é atualmente reposicionada para refletir sobre as heranças imperialistas e sexistas e os imaginários modernos através da arte contemporânea, gostaria de comentar, inicialmente, a respeito de um ambiente primordial em que essa modalidade de imagens costuma circular amplamente: exposições etnográficas. Trago esse tema pois, à medida que essa forma de modelar exibições – que, vale dizer, remete ao século XVIII – continua sendo reproduzida em instituições culturais/museais, especialmente para tratar de artefatos não europeus, sua trajetória é composta da mobilização de fotografias para denotar autoridade sobre quem vê. Ou seja, para inventar conjunturas, apesar da reivindicação de apresentar verdades. Mais uma reverberação, portanto, da espoliação de recursos físicos e humanos implicada nas geopolíticas coloniais.
Exposições etnográficas
Nesse tipo de exposição, o princípio norteador geral para a usura fotográfica, na virada para o século XX, residia na função de traduzir, ou ainda, atribuir certa vivacidade a artefatos inertes dispostos no sentido de fornecer um panorama das formas de vida em territórios estrangeiros, compreendidos como partes ultramarinas dos estados europeus, caracterizando o que chamaremos aqui de “fotografia de contexto”.
Poucas décadas depois das reivindicações de Daguerre, em 1839, pelo patenteamento do dispositivo de captura de luz, o Museu de Etnografia do Trocadéro (1877-1934) seria instalado na estrutura palaciana que há pouco havia sediado a Exposição universal de Paris, realizada entre maio e novembro de 1878. No bojo das estratégias curatoriais (museográficas) adotadas, intimamente ligadas às práticas museológicas contemporâneas, estava o rito colecionista que começava nas missões, produtoras de encontros fotográficos, aos quais seguiam-se as coletas, algumas anotações de registro, o transporte e a lotação em reservas técnicas e/ou salas de exibição.
Essas apreensões foram dirigidas a diversas localidades, precisamente da América, da África e da Oceania. Assim, viagens curtas a terras longínquas e desconhecidas, empenhadas em aumentar as informações armazenadas (vulgo conhecimento) – mote do estabelecimento das ciências humanas e sociais – necessárias para aperfeiçoar as técnicas de dominação, resultaram na tomada de vistas de locais em pleno curso de expropriação, ao mesmo tempo que os discursos institucionais participavam da fundação da etnografia e dos regimes de visibilidade modernos, responsáveis por diluir no imaginário ocidental massivos retratos negativados de certas regiões desses continentes.
A fotografia e o que “estava lá”
Enquanto o amplo acesso direto aos lugares mostrados não era – nem é – possível, a curadoria, em associação programada com fotógrafos como grupo de espectadores privilegiados, estrutura(va)-se como organizadora dos procedimentos técnicos de documentação, conservação e exibição e das narrativas adjacentes, outorgando-se a autoridade etnográfica – laureada a quem supostamente poderia, no nirvana da racionalidade e com excepcional competência, recompor cenas do cotidiano que consubstanciariam realidades ideais. E de tal modo que essa associação inaugural entre fotografia e museografia, pelo desejo de tornar palatáveis ao público europeu realidades subimaginadas, engendrou a preservação de paisagens de exceção compulsoriamente borradas das mentes de pessoas alienadas em operações de tráfico e guerra.
A prerrogativa autoritária de traduzir o que e como pode ser visto* é um gesto que se atualiza enquanto seguem hipercontroladas as condições de acesso e, por extensão, de visibilidade das fotografias realizadas. Isto é, neste momento, parte dessas primeiras experiências foto(etno)gráficas das décadas iniciais de 1900, tendo em vista a trilha de desdobramentos do mencionado Trocadéro, estão contidas no acervo do Museu do Quai Branly – Jacques Chirac (2006-) e parcialmente disponíveis em sua base de dados digital, mantendo-se reservados todos os direitos de imagem, já que não estão, por quaisquer razões, sob nenhum tipo de licença creative commons.
A esse respeito, da acessibilidade de coleções – museológicas, arquivísticas etc. – e da viabilidade do uso de tecnologias da informação livres de patentes, a professora, pesquisadora e curadora Jamile Borges, em seu texto Museus, memórias e narrativas, nos deixa algumas lições imprescindíveis a partir da experiência do Museu AfroDigital da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Seja como for, na coleção do Museu do Quai Branly, totalizada em mais de um milhão de aquisições, somam-se daguerreotipias, negativos, esculturas, utensílios domésticos, instrumentos musicais, adornos e armas a outras miríades de materiais que fazem parte, localizadamente, da herança cultural de onde foram retiradas – muito além da furtiva humanidade que o museu pretende mediar.
*Uma fotografia, de fato, atesta o que “estava lá”, apesar de essa evidência ser parcial e, apenas nesse sentido, falsa. O que estava lá nunca é apenas o que está visível na fotografia, mas também o que está contido na situação fotográfica, na qual fotógrafo e fotografado interagem ao redor de uma câmera. Isto é, a fotografia é evidência das relações sociais que a tornaram possível, e essas não podem ser removidas do visível “conteúdo” revelado aos espectadores, que podem concordar ou discordar do conteúdo literal
(AZOULAY, Ariella. The civil contract of photography. Nova York: Zone Books, 2008, p. 119, tradução nossa).
Diásporas africanas e reprogramação da lembrança
Se pensarmos, expressamente, nas diásporas africanas pelas terras da América, em maior ou menor grau oriundas do escravagismo racial, há uma urgência quanto às políticas de acesso às lembranças ancestrais que vêm sendo dispersadas ao longo do tempo e do mundo, independentemente do suporte no qual foram inscritas. Na dimensão material, essas lembranças correspondem também ao que está depositado no Museu do Quai Branly.
Em outras palavras, paradoxalmente, as fotografias feitas para testemunhar o contexto capturado dão notícias de rios, florestas, arquiteturas, cidades, reinos, monarcas e suas famílias, mercados, danças, roupas e oficinas, entre tantas outras manifestações de vida que continua(ra)m re-existindo, apesar das propagandas justificadoras da dominação insistirem em divulgá-las com esforços narrativos empenhados na desvalorização genérica. Por isso, tendo em mente a cronologia brasileira, as fotos viabilizam vistas emancipadoras a quem tem sido acostumado a pouco ver quaisquer dessas paisagens, sejam de aproximadamente cem anos atrás ou de agora.
E quais poderiam ser os impactos e as convocações resultantes do encontro com essas ressonâncias de modos de vida vilipendiados, embora incontornavelmente transmitidos, na direção de imaginar futuros? Quais repercussões seriam possíveis nos imaginários e nos entendimentos sociais sobre nação e cidadania? E nos processos criativos, nas pedagogias do olhar/sentir, que se distanciariam das referências euro-orientadas?
São essas algumas das questões que me ocorrem e pelas quais considero que as exposições etnográficas podem nos ajudar a pensar um pouco mais sobre as relações de poder envolvidas na usura da fotografia, a megalomania de subjugar a pluriversalidade do mundo e as apropriações no domínio da herança cultural. Ademais, isso esteve também na cúspide da produção das mais recentes tecnologias do ver – participando, simbioticamente, da captura de contextos violentados e da produção de imagens que faltam na memória coletiva de populações afrodiaspóricas.
A coluna Revelação convida curadores, pesquisadores e outras pessoas interessadas nos debates que a produção de imagens pode suscitar para escrever sobre fotografia. Ao final de cada texto, uma recomendação de perfil do Instagram que tenha chamado a atenção do autor.