Ramon Vitral conversa com o quadrinista Tom Scioli sobre sua obra Jack Kirby – a Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos
Publicado em 28/02/2021
Atualizado às 22:28 de 27/02/2021
Foram muitas as injustiças vivenciadas pelo quadrinista Jack Kirby (1917-1994) trabalhando para as editoras Marvel e DC Comics. Responsável pela criação de alguns dos personagens mais célebres e dos conceitos mais originais publicados pelas duas empresas, ele nunca fez fortuna por seus trabalhos e jamais teve a fama de alguns de seus pares. No entanto, mesmo em seus momentos de maior desilusão com a indústria de super-heróis e de maior insatisfação com seus empregadores, o quadrinista seguiu criando conceitos originais.
“As piores ideias de Kirby são melhores do que as melhores da maioria das pessoas", me diz o quadrinista norte-americano Tom Scioli, autor de Jack Kirby – a Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos, recém-lançada em português pela Conrad Editora, com tradução de Érico Assis. "Ele era verdadeiramente original. Você nunca vai confundir o trabalho dele com o de outra pessoa.”
A obra de Scioli é o principal registro biográfico da vida e da obra de Kirby, conhecido pelo apelido de Rei dos Quadrinhos. Produzido sem o aval dos herdeiros do artista e dos executivos da Marvel e da DC, as 208 páginas coloridas desse trabalho partem do Império Austro-Húngaro, no fim do século XIX. Narram desde a fuga dos pais do quadrinista da perseguição aos judeus na Europa até os dias atuais, com as criações de Kirby servindo de inspiração para as franquias audiovisuais de rendimentos bilionários para os ex-empregadores do autor.
Scioli coloca Kirby como o narrador de sua própria história, costurando os principais eventos da vida do quadrinista a partir de farta bibliografia e das várias entrevistas concedidas pelo autor ao longo de seus 76 anos, mais de 60 deles dedicados aos quadrinhos.
“Era algo que sempre quis ler, mas não existia, então tive que fazer”, me responde Scioli quando pergunto sobre o ponto de partida de seu livro. “O Jack Kirby fez uma pequena história em quadrinhos autobiográfica chamada Street Code, sobre uma briga de gangues que travou quando criança. Eu queria ler uma série inteira como essa, mas cobrindo toda a sua vida. Se existem centenas de edições de Capitão América e Quarteto Fantástico, por que não centenas de edições da vida da pessoa que as criou?”
O questionamento do autor é válido. E o legado de Kirby para os quadrinhos vai muito além de seus personagens, não se limitando à indústria de super-heróis. Seu impacto abrange desde a estética kirbyana, presente ainda hoje nos quadrinhos e nos filmes inspirados em HQs, até a luta pelos direitos dos autores de gibis por suas criações.
Hoje aos 43 anos, Scioli é obcecado pela arte e pelas criações de Kirby. Ele chegou inclusive a ser acusado de copiar o estilo do autor em seus primeiros trabalhos. A biografia do ídolo, no entanto, é quase antagônica à estética dinâmica, às vezes psicodélica e habitualmente extravagante de Kirby. O álbum tem ares documentais, com design de páginas blocado, composto de grids predominantemente de seis quadros e muito texto.
Scioli chega a redesenhar alguns personagens e algumas artes de Kirby, mas o estilo adotado por ele na biografia é sóbrio. Com exceção do protagonista, desenhado com jeitão de caricatura, os demais personagens reproduzem fielmente as feições de suas versões em carne e osso. “Senti o peso e a responsabilidade todos os dias em que trabalhei nisso”, afirma o autor sobre a pressão de narrar a vida de seu grande ídolo.
A paixão vem da infância. Scioli ainda lembra de seu primeiro contato com o trabalho de Kirby: no desenho animado Thundar, o Bárbaro, exibido no início dos anos 1980 e para o qual o quadrinista concebeu o design da produção. Já a primeira HQ de Kirby lida por Scioli foi uma coletânea de histórias antigas de Thor, e o trabalho favorito do biógrafo é a saga O Quarto Mundo, produzida por Kirby para a DC Comics e protagonizada por Novos Deuses, Povo da Eternidade e Senhor Milagre.
Mas Scioli vai além de sua paixão ao narrar a vida de Kirby. Ele mostra o impacto da criação do artista nas ruas de Nova York, a influência de sua formação religiosa em suas HQs, as primeiras investidas profissionais como cartunista de jornal, o sonho de virar ator, o emprego no estúdio de Will Eisner e a ida à Feira Mundial de 1939, que impactou a estética de seus trabalhos até o fim da vida. Isso tudo nas primeiras 20 e poucas páginas da HQ.
O livro engrena a partir da criação de Capitão América em parceria com Joe Simon, dos primeiros trabalhos para a Marvel (ainda Timely na época) e de sua ida para o front da Segunda Guerra Mundial. Encerrado o confronto, Kirby passa a ter de conciliar seus ímpetos criativos com as demandas dos fãs por mais super-heróis, a necessidade de bancar a família crescente e as espertezas de seus chefes, que o afastaram de suas criações e de seus direitos como criador.
Para a Marvel ele cocriou Quarteto Fantástico, Thor, Hulk, X-Men, Surfista Prateado, Homem de Ferro, Pantera Negra, Inumanos, Vingadores e Eternos, e sugeriu o conceito de Homem-Aranha. Kirby foi para a DC criar algumas das tramas mais inventivas impressas na revista da editora. Seu impacto e seu legado foram celebrados por autores que vão do escritor Michael Chabon ao diretor James Cameron, do quadrinista Alan Moore ao cineasta George Lucas. Isso tudo está retratado no livro de Scioli.
A obra ainda presta um serviço público ao reparar a versão habitualmente difundida por fontes oficialistas creditando Stan Lee (1922-2018) como o grande criador do Universo Marvel e relegando Kirby a segundo plano. A verdade é que Kirby foi a principal mente por trás do Universo Marvel, enquanto Lee dava a versão final aos textos. Em determinado trecho da HQ de Scioli é apresentada a seguinte fala de Kirby: “Eu bolava as histórias e Stan as solapava com alterações arbitrárias, quem sabe só para justificar o crédito que ele levava. Os diálogos sabotavam todo o sentido da trama”.
Hoje creditado oficialmente pela Disney, dona da Marvel, como coautor das histórias e dos personagens de suas publicações, suas séries e seus filmes, Kirby é recompensado retroativamente com pagamentos de royalties para seus herdeiros. Ainda assim, ele está longe de ter o reconhecimento público de seu parceiro mais famoso.
Scioli me diz: “Não sei se será possível obter o tipo de reconhecimento que Stan tem. A fama de Stan e a fama de Walt Disney foram conceitos cuidadosamente cultivados. Eles não aconteceram simplesmente. Foram o resultado de muito esforço e do peso de uma estrutura corporativa global que sustentou essa narrativa durante suas vidas”.
Mesmo sem o devido reconhecimento, Kirby mudou em definitivo seu meio. Scioli acredita que o próprio foco atual da indústria de super-heróis segue muitas das práticas e crenças do artista. “Há mais ênfase na narrativa mais ampla, ao invés das edições individuais dos quadrinhos. Kirby iniciou essa tendência, que está se tornando cada vez mais evidente”, reflete o autor. “Todo o estilo narrativo dos quadrinhos de super-heróis, por mais que tenha mudado de maneira superficial, ainda segue o modelo de Kirby. A ênfase na figura humana em movimento, a ficção científica e os temas míticos, o foco na ação e na colisão, a novela sem fim, tudo isso tem o trabalho dele como base.”
Scioli ainda cita o impacto imenso do quadrinista nas dinâmicas profissionais da indústria: “Todos os criadores que conheço pensam em Kirby quando estão fechando negócios e contratos. Ele falava muito sobre seus direitos como criador e sobre sua situação nos últimos dias de vida, e os pioneiros dos direitos dos criadores de quadrinhos eram fãs e conhecidos de Kirby e o citam como inspiração”.
Três perguntas para… Xavier Ramos, autor de Urinoir e O Busão
O convidado da seção de entrevistas que fecha a 17a edição da Sarjeta é o quadrinista Xavier Ramos. Autor de uma série de publicações em parceria com a irmã quadrinista Frida Ramos, ele lançou recentemente a obra Urinoir (Ugra Press) e publicou a série O Busão no blog Balbúrdia.
O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?
O que mais curto da cena brasileira de quadrinhos é a forma totalmente desgovernada com que ela surgiu – sem uma editora/revista/coletivo ditando o caminho. Autores publicam como querem e trazem referências de todos os cantos e períodos do planeta. Sem nenhum tipo de unidade visual ou temática. Não acho que isso já tenha acontecido em outro "movimento" de quadrinhos alternativos antes.
O que mais lhe interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?
Ultimamente gosto muito de quadrinhos em que o leitor consegue ver como ele foi feito. Você olha a página e vê que é nanquim (ou grafite, tinta) no papel. Não acho que seja nem de longe o mais importante para ter um bom quadrinho, mas gosto de ver quadrinhos que não tentam se fazer como que feitos por aliens ou robôs. Gosto de ver que quadrinistas são gente. Acho que isso aproxima o leitor.
Qual é a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?
Meu primeiro contato com quadrinhos foi com a Turma da Mônica, com certeza, mas a minha memória mais antiga é com tirinhas de jornal que eu lia no recreio da escola quando estava no Fundamental I. Eu ia para a biblioteca ler as tirinhas do dia enquanto esperava os meus amigos comprarem o lanche deles na cantina (eu trazia o meu de casa). Lembro de ver tirinhas da Laerte e do Angeli na Folha e do Snoopy no Estadão. Nessa mesma época, meus avós assinavam a Folha, e todo o dia eles guardavam a página de tirinhas para mim e me davam as tirinhas da semana quando eu os visitava aos domingos. Aí eu podia reler tudo.