Há polifonia, dissonâncias, silêncios e rasuras na produção de abigail Campos Leal. Estamos diante de uma escrita em desobediência
Publicado em 10/11/2022
Atualizado às 08:37 de 10/05/2023
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.
Com que palavras tocar e tecer sobre as ficções especulativas produzidas por abigail Campos Leal? Como adentrar na prosa-floresta-abundante que sua arte constitui? Tomada por certo curto-circuito que a recepção de seus textos provoca, apenas parece ser possível uma enunciação que seja já performance. Um movimento outro que desdobra e dá continuidade à sinuosa coreografia de sua palavra-tempo e que cardiografa uma digital própria no percurso de imaginar mundos alternativos, que ela delineia, sobretudo, para o povo preto. Aqui, compartilhamos “~tudo escuro~” e “meu estudo é reza braba”, produções que nos convidam a “(des)simplificar” as formas de apreensão da existência, antagonizando, assim, com a lógica de achatamento hetero-cis-colonial, modus operandi em vigor. abigail Campos Leal escreve-fala-dança desde e contra a clausura e investe o radical exercício de sua imaginação do poder de consubstanciar uma subjetividade reiteradamente negada. Vislumbramos nos textos sujeitos em transicionamento que são capazes de sentenciar: “por toda a parte eu sinto vidas”. Em “~tudo escuro~”, assentando-se nesse fundamento – o da vida que se expressa para além do Humano, tal qual definido pela hegemonia e pela necropolítica –, uma voz narrativa dissidente de gênero inscreve na “lâmina da palavra”[1] memórias fugitivas e desejantes, bem como ações de insubalternidade de um grupo encarcerado no Reformatório Nacional da Juventude. Em “meu estudo é reza braba”, acompanhamos genealogias teórico-encantadas às quais a autora se vincula. As produções de Denise Ferreira da Silva, Leda Maria Martins, Ana Maria Gonçalves, Musa Michelle Mattiuzzi e Octavia Butler[2], entre outras, são invocadas, ou ainda, "invocalizadas", de modo a dar a ver uma poética que compreende a teorização como recurso (co)criativo, afinal, como diz a autora, ecoando Fred Moten e Stefano Harney[3]: “[...] penso que estamos comprometidos com a ideia de que estudo é aquilo que você faz com outras pessoas”. Há polifonia, dissonâncias, silêncios e rasuras na produção de abigail Campos Leal. Um jeito muito singular, altivo e autônomo de lidar com a linguagem. Estamos diante de uma escrita em desobediência, tal como o corpo-ser da autora, que desafia as coerções de gênero e sexualidade, e dança uma reza, e reza uma dança, como nossas ancestrais fizeram e farão quando retornarem. Um corpo de pessoa a (co)mover.
[1] Expressão que Leda Maria Martins usa em um dos seus artigos.
[2] Denise Ferreira da Silva é artista e filósofa. Leda Maria Martins é poeta, ensaísta e dramaturga. Ana Maria Gonçalves e Octavia Butler são escritoras. Musa Michelle Mattiuzzi é performer e artista visual.
[3] Fred Moten é pesquisador e poeta. Stefano Harney é pesquisador e ativista. A definição de estudo como algo feito em conjunto com outros aparece em The undercommons: fugitive planning & black study, coautorado por ambos e ainda sem tradução para o português.
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~ tudo escuro ~
tudo escuro. Gira ainda podia sentir o impacto da bomba fotossônica no seu peito. arfava de joelhos no matagal. olhou para os lados, nem sinal de Noemí y Caú. elu ficou se perguntando por quanto tempo havia ficado desacordado. tentou abrir os olhos, mas a dor era muito forte. colocou a mão esquerda sobre os dois olhos, com a cabeça para baixo, ficou de joelhos, depois de pé, y começou a correr, cambaleando muito, sem conseguir enxergar y com uma dor lacerante por todo o corpo.
elu para, de repente. aquele barulho inconfundível. um zumbido insistente, cada vez mais alto. Gira sabia até mesmo a sua frequência y os bpm’s. era um Enxame. Gira conseguia calcular a distância dos Drones pela frequência do zumbido.
– eles devem tá a uns 3 minutos daqui.
pensou Gira, enquanto tentava abrir os olhos outra vez.
– merda, vou ter que correr assim mesmo.
resmungou em voz alta enquanto começava a correr, com os braços esticados a sua frente, como se estivesse prestes a bater em alguma árvore a qualquer momento. com o rosto muito franzido, conseguiu abrir levemente o olho esquerdo, que permanecia ainda semisserrado, coberto pelos cílios y lágrimas que bloqueavam a visão. o zumbido fica cada vez mais alto.
– merda. eu não sei onde fica Quilombo das Araras, não consigo enxergar y mal consigo respirar. merda, eu não vou conseguir fugir de novo. se eu rodar, dessa vez, vão me jogar na ala psiquiátrica do Reformatório, ou pior...
elu pensa enquanto corre, já quase parando de cansaço. elu cai de joelhos, com a mão esquerda em volta da barriga, a direita apoiando no chão. elu levanta cabeça, procurando de onde vinha aquele zumbido ensurdecedor. olha para trás, y vê um Drone Cruzador. o compartimento no seu centro abre.
– mer...
antes mesmo delu terminar de xingar, a bomba sônica cai no chão. quando elu sente a pressão no seu peito já é tarde demais.
– tá tudo estranho. eu não vejo nada, mas sinto tudo molhado. a escuridão parece absoluta. não vejo nada. sei que não morri porque estou aqui, ainda que isso não se pareça nada com a vida. eu movo os meus braços. eles parecem serpentes sinuosas. de repente, uns pontos luminosos, piscando diante de mim. começam a piscar muito, em cores diferentes, fazendo padrões geométricos y meândricos, mas não, acho que isso é só a minha impressão porque é algo muito mais caótico do que isso. os pontos coloridos piscando formam duas faixas que dançam, ora se cruzando ora se afastando. os pontos tornam-se luzes intermitentes. são meus braços. na verdade, meus braços são tentáculos. brancos acinzentados. sinto que as cores mudam a partir dos meus movimentos y sentimentos, mas não sei como controlá-los. Giiiii é tudo muito bonito. existe uma espécie de música ao fundo. tenho a impressão de que são cantos de baleia, mas é como se esse canto saísse de uma gaita gigante tocando no fundo do mar. Giiiii a canção é em tom menor. um pouco melancólica. sinto que ela também muda o padrão das luzes. Giiiii não sei mais quem eu sou, na verdade, não sei mais quem eu era. eu olho meus tentáculos, admirando a beleza, como se estivessem prestes a ir embora, mas com alguma esperança de descobrir quem eu sou. Giiiii
– Giiiiiraaaa. Gira, acorda. acorda Giraaaa
– ã, o que? Onde que? que que...?
– Gira, sou eu, Lucas. lembra? você tá dormindo já faz mais de um dia. y agora tava sonhando, quer dizer, tendo um pesadelo. você tava com muita dificuldade de respirar, ficava balbuciando umas coisas que não dava pra entender. você parecia estar se afogando. eu fiquei com medo.
– Lucas? mas você não...
– chhhhhhhh.
elu faz um sinal de silêncio com o dedo indicador, y aponta para o Guarda fazendo um sinal com a cabeça. assim que o Guarda sai, elu continua, sussurrando.
– sou eu, Meteora, mas não me chama assim na frente dos G.
– claro que sei quem é você. então quer dizer que eu tô na ala psiquiátrica?! merda, eu sabia!
– não. não tá, não. eu sai da ala depois que enganei os psiquiatras, burlando os testes de readequação sexual. agora eu voltei. não é tudo?
– é... não sei. acho que sim.
– nossa, credo, Gira! que uó.
– Meteora, me faz um favor?! não me chama mais de Gira.
– como assim? porque? você amava esse nome. além disso, sua ultima transição não completou nem um ano. não vai me dizer que você ta transicionando de novo?
– não! quer dizer, sim! na verdade, é mais complexo que isso. eu to transicionando, mas dessa vez eu não sei no que tô me transformando. y ainda mais estranho, eu não sei mais quem eu sou.
não tem mais raios de sol. pelo menos não como antigamente. então acordar é uma outra experiência. as luzes dos Dormitórios acendem todos os dias às cinco y cinquenta, pontualmente. os Dormitórios, como quase tudo no Reformatório Nacional da Juventude, são divididos por gênero, ou por sexo, como eles gostam de dizer. as crianças quase sempre acordam mais cedo, antes das luzes. não sei se é por terem um outro metabolismo, ou para dar tempo de trocar de camas antes da primeira inspeção.
– ei, ei. acorda, olha quem veio te ver.
elu abre os olhos. mal dá pra entender, mas pelo menos um quarto de todo o Reformatório parecia estar ali, em volta daquela velha cama de metal, a mesma que elu passou os últimos 10 anos da sua vida. as crianças mais novas estavam mais próximas da sua cama, espremendo-se y acotovelando-se disputando um abraço. Pingo, Zunga, Goiaba, Gigante, Membrana, Onírica. era difícil acreditar que toda aquela erezada tava ali, na sua frente. elu também ficou pensando o quanto era amado por aquelas pestinhas, pensando nas intimidades radicais, nos parentescos ancestrais, que eram construídos todos os dias dentro daqueles muros, criados justamente para devastar todos laços y vínculos sociais. seus olhos se enchiam de água. ao fundo, num arco atrás da erezada, estavam as crianças mais velhas, adolescentes y jovens. Bhaal, Origem, Meia-Noite, Fofim, Ventania, Uraal, Oceânica, Al´ark, Capela. todes olhando com um olhar de admiração. todes que tentavam fugir do Reformatório eram vistos como verdadeiros heróis. quem conseguia, então, tornava-se praticamente um Ancestral. todes se abraçavam rindo y chorando. era momento muito de catarse.
pá, pá, pá... cacetadas distribuídas aleatoriamente em todes. elus se dispersam.
– vamo pará com essa pegação toda aí, ooo, cambada de lixo desocupado.
diz um Guarda enquanto distribui as cacetadas.
elu coça seu pulso direito, sentindo a protuberância retangular debaixo da pele. seu nanochip de identificação ainda estava lá. elu pensou nos dias da fuga. na treta que rolou já na Guarita, durante a troca de turno dos Guardas, quando tiveram que deixar Orbe para trás. pensou nos chacoalhões dentro daquele caminhão velho pela autoestrada. pensou naquelas horas que pareceram dias na barraca no meio da floresta. pensou no sexo com Noemí y Caú, nas trocas de carinho, no silêncio compartilhado, nas conversas com suas carcaças nuas entrelaçadas. na chegada do Enxame, nas explosões, no apagão.
– você tá sangrando. vem, vou te levar até a Enfermaria.
– Meteora, cadê Noemi y Caú?
– olha... sinceramente, a gente tava esperando que você nos dissesse. ninguém nunca mais viu elus depois da fuga. você chegou sozinhe no RNJ trazido pelo Enxame.
– não, eu também não sei nada delus. quando a gente tava há alguns quilômetros de Quilombo das Araras, fomos encontrades por um Enxame. fomos atingides por uma bomba fotossônica. quando acordei tava sozinhe, não tinha ninguém. tentei fugir de novo, mas fui atingide por outra bomba. não me lembro de mais nada, só de acordar aqui já.
Meteora enrolou seu braço direito em volta da sua cintura, pegando seu braço esquerdo y passando por cima de seu ombro y foi andando com elu até a Enfermaria.
– as coisas tão estranhas, sabe?! tô achando que as camas não tão mais tão duras. Pingo y Gigante parecem maiores, mais velhos. Baal y Ocêanica, pra mim, são pessoas novas. quem eu conhecia antes da transição não existe mais. como pode ter acontecido tanta coisa em alguns dias, Meteora? tá tudo tão estr...
Meteora interrompe antes delu terminar a frase, com um tom chocado.
– alguns dias? cara, já tem mais de dois meses desde que vocês fugiram! como assim?! cê tá de sacanagem?! não é possível?!
– dois meses?! isso é impossível?! nós fugimos por dois, no máximo, três dias.
– cara, o Enxame deve ter te levado para algum lugar antes de voltar com você pra cá! não é atoa que você voltou pra cá. você sabe o que acontece com desertores. todo mundo sabe. acho que é por isso que os G tão pegando leve com você. tem alguma coisa muito estranha aí.
– eu sabia que eu era queride y que quem abre fugas entra no caminho da Ancestralidade y por isso é muito respeitade, mas tava tudo muito estranho, mesmo.
– sim. todo mundo achou que você tava morto. que vocês três, na real, tinham morrido. claro, muita gente rezava y imaginava que vocês tavam bem. que tinham encontrado Quilombo das Araras, que tavam vivendo nas florestas y comendo frutas frescas, ou que tinham seguido pra dentro do deserto, y começaram a viver entre as dunas, fundando um novo povo da areia. mas no geral, todo mundo achava que vocês tinham morrido.
elu olhava a Enfermaria de todos os ângulos, observando cada mínimo detalhe. sentaram no banco da triagem. lembrou das vezes que ficou por horas alí, esperando enquanto sangrava para tomar pontos. lembrou das humilhações y dores vividas ali.
– podem entrar, meus amores! meu nome é Maria. o que aconteceu?! como que eu posso ajudar vocês?
elu não conseguia acreditar naquelas palavras doces. imaginou que devia ser um truque, alguma nova tática de tortura do RNJ. aquilo parecia muito surreal.
– tá tudo bem. a Maria é aliada. você vai se acostumar. dotôra, o merda do 7721-S, abriu a cabeça delu.
– meu Deus. eu ainda não consigo acreditar como esses Guardas podem ser tão cruéis.
– ah, dotôra, eles fazem coisa muito pior, você sabe! se não sabe, deveria se perguntar por que não sabe. eu entendo que você é aliada, que se sensibiliza com a gente y tá aqui pra fazer alguma diferença, mas você precisa ser menos ingênua y mais prática.
com a sua mão direita, ela pega a mão direita delu, y com a esquerda envolve seu ombro direito, levando para dentro da sala de sutura. Meteora dá uma risadinha quando vê elu voltando com a cabeça toda enfaixada.
– agora sim, você tá parecendo herói.
todes dão risada.
elu ainda estranhava toda aquela situação. não parava de pensar em Noemí y Caú. ficava imaginando onde estavam, se ainda estavam fugindo, se tinham sido capturades, se ainda estavam com vida. pensava naquele sonho estranho que teve no dia que despertou no Dormitório. elu ficava imaginando se aqueles tentáculos luminosos no meio de toda aquela escuridão era uma memória de uma vida passada, ou a profecia de uma existência futura, ou se era algo ainda mais complexo, que elu nem ao menos entendia. ficava imaginando o que tava por trás daquelas mudanças no RNJ: camas confortáveis, menos inspeções, a contratação de uma enfermeira que não é capacho de m1l1c14n0. desconfiava de tudo. os três pontos na sua cabeça y o fato de estar encarcerado naquela lata de lixo não deixava elu criar nenhuma ilusão. ficava tentando imaginar o que aconteceu durante os dois meses que ficou fora entre a fuga y o retorno ao Reformatório. será que fizeram experiências comigo? será que fui torturade? será que mudaram a composição bioquímica da minha carcaça? o que será que eu sou? no que tô me transformando? qual é o meu nome?
– vem, vamos alí. quero te mostrar uma coisa.
elus saem da enfermaria. atravessam corredores, descendo as escadas. as paredes foram pintadas recentemente, não tem mais goteiras nem manchas de fungo nas paredes, elu pensava no caminho. passam pelos últimos Guardas, ao lado do portão que dava para o térreo. o pátio estava diferente. tinha até um jardim agora, algumas árvores.
– vem, por aqui.
diz Meteora, apontando para o canto, ao lado da Oficina de Marcenaria. era possível ver uma aglomeração. adolescentes y jovens formavam uma roda. a erezada brincavam em volta, gritando y correndo. elus ouvem algumas melodias, umas palavras cantadas, depois uma salva de palmas, assobios, todes vibravam muito.
– a gente chamou de Sarau Sem Fim. essa é a quinta edição. toda segunda, ao lado da Oficina, antes do almoço. depois que vocês fugiram, nós fizemos uma edição escondida. depois, os Tutores vieram falar com a gente. a gente pensou que ia rodar. mas eles só autorizaram. tem sido muito bom. é uma forma de extravasar todo ódio, tristeza y o luto que sentimos. também é um espaço que tem alimentado nossos sonhos. y também – agora ele falou sussurrando – aproveitamos para compartilhar mensagens cifradas, planos de fuga, revoltas y tudo mais.
– vamo, manda uma pra gente, aí. por favor – gritou Meia-Noite.
– aquelas poesias não são mais minhas porque eu não sou mais eu
– então inventa uma aí. – retrucou Bhaal, acompanhado de muitos “é” y “boa”.
elu para, em silêncio, com a mão no queixo y de olhos fechados, então começa:
– minha pele sorri quando o vento dos nossos sonhos me lambe a alma. eu nunca tinha dormido sobre o manto das estrelas. as suas coxas foram rochedos que acolheram a minha ancoragem, lá onde, por alguns instantes, nenhum Enxame poderia nos encontrar, lá onde eu não sei quem eu sou, lá onde não preciso de um nome. qual a idade de um cometa que sorri? fecho os olhos y ainda sinto sua neca dura roçando nas minhas costas enquanto você me tirava suco de garoto. o tempo curvou diante de nós na escuridão mais profunda, depois que nos esfregamos os 3 até jorrar sonhos molhados. corre! eles tão vindo. tudo escuro. meus braços viraram rios caudalosos, iluminados por estrelas teimosas, que brilhavam as minhas dores, os meus medos y os meus amores mais vastos. esse Mundo já acabou dentro de mim. nas suas ruínas, eu sorri quando ganhei esses tentáculos y agradeci por não precisar mais de um nome. a Terra vai sorrir quando lembrar que os Humanos já caminharam por aqui. y nós, bestas obscuras, das estrelas, do fundo do oceano, de dentro das rochas vulcânicas y das matas, iremos dançar essa risada sagrada. nos sonhos, as palavras não são mais necessárias y é assim que os planos mais radicais são traçados. hoje a noite, nós vamos planejar
[1] Esse texto foi preparado e lido para a mesa “Escrevivências em Transe”, que contou com Bixarte y Alessandra Makkeda, no dia 14/2/2022, no contexto da Festa Literária das Periferias (Flup), no Rio de Janeiro.
meu estudo é reza braba
acendo um incenso
tudo começou com a água
com a falta dela
é por isso que leio
não sabia o porquê mas sentia um desejo incontrolável, de forma que não podia fazer outra coisa senão me perder na deriva de mim mesma que cada vez mais me levava rumo a outras praias, ilhas, florestas, y quando dava por mim eu tava numa cachoeira com Kehinde y Ana Maria Gonçalves, saboreando liamba y bananas, tava conectada nos sonhos molhados de Lilith y Nikanji y Butler, gemendo silenciosamente, tava na Kalunga infinita, voando ao lado de uma tartaruga y de Leda Maria Martins
mmmmmmmmmmfhhhhhnnnnnnn às vezes sinto que tem mais alguém aqui. é você, Canabis? você sabe quem ou o que é? eu me transformei, não sou mais aquelas pequenas humilhações dos 90, 2000. sou outra coisa, uma tempestade, uma promessa, mas ainda carrego em mim pedaços de tudo aquilo que... já foi
vocês também sentem o tesão do prensado?
eu tô brotando de novo
a cada dia racho um pouco mais
tô abarrotada
durmo de lado como uma Lua grávida
com vocês ao meu lado
como amuletos
os estudos sempre foram um sopro de vida, mas agora é diferente, caminhar rumo à escuridão infinita, lá, bem lá, rumo às forças cósmicas pretas indígenas y não humanas que compõem y que possibilitaram a minha carcaça navegar nesta encarnação, virou uma necessidade imperiosa y um desejo ardente. respirar se tornou outra coisa. o ar aqui é mais rarefeito, mas o fogo também respira! vocês me tornaram mais forte y sou grata a vocês y ao Destino. quando me junto a vocês, quando maquino vocês nas minhas estrelas, manuseio uma mandinga. é uma energização, uma janta. vocês devem achar tão fofo, tão foda! foi pra isso também que vocês trabalharam, oras! pra fazer tremer a minha carcaça preta Goytacaz cabocla, pra me fazer buscar os caminhos obscuros da vida em meio aos tempos da aniquilação
faço uma concha com a mão esquerda y giro os braços trazendo a fumaça pra dentro
aí eu fui parar na Antologia Trans (2016). isso tinha que acontecer, porque eu tinha que te encontrar. você já era esse bichinho peludo, esse viado, cachorro safado. eu fico me perguntando se você tem mesmo essa língua de cobra ou se isso é loucura minha. Preto Téo, ali me encontrei com o poeta, o preto irmão velho, meu vozinho que tenho a honra de ser mãe. esse texto é já o que excede essa palavra gasta y o que invoca essas inscrições misteriosas que vem. mas é, um pouco, uma forma de honrar a sua presença, as suas presenças. você faz mandinga y sua poesia é estudo preto. deeeeu meia noite a luua se escondeeeu lá na encruzilhaaaada... laroyê! você faz mandinga com as palavras, por isso ando buscando o nosso encontro pra te ouvir, pra te ler. eu fui atrás, você sabe, and if you don’t know now you know nigga
por isso estudo o tempo todo. porque minha carne tá com sede das tempestades de florestas que descansam no fundo das suas páginas para estremecer cada uma das minhas planícies, das mais safadas às mais ingênuas. meu estudo preto goytacaz caboclo é uma noite de bebedeira y larika. vocês criaram alimentos y os deixaram pra trás. de bucho cheio mas sempre ainda com sede de quero mais, eu fujo pelos caminhos que vocês abriram y agradeço. y tudo isso é um feitiço que faz brotar vida em m/im. eu ando muito cansada, é verdade, mais cansada do que nunca, mas já tenho energias pra cavar aquele movimento: tá, y agora, como é que eu saio daqui?!
coloco Pontos de Oxum
y são as suas mãos pretas que fazem a mandinga comigo. quando pego suas crias y manuseio página por página, de alguma forma a fumaça dos seus desejos também empurra aquelas mãos. isso é um feitiço. isso se lê.
as minhas anotações são pequenos mudras? porque minhas marcas de sinalização y mapeamento sempre foram setas para todos os lados cercadas de espirais? y aí, de repente, eu estava girando junto com Dana y Butler na espiral, estava...
vocês são incontornáveis! pra quem tem bom faro é evidente. nos tempos da aniquilação branca, as suas mandingas de vida preta são muito valiosas. se, por um lado, o cerco da destruição y morte branca aumenta incessantemente seu poder de alcance y atualiza infinitamente os seus fechamentos, por outro, aqui y ali, cada vez mais, brotam nas diversas terras desse mundo, carcaças escuras com sede de negridão, com fome de memória ancestral, daquelas que enchem o bucho de imaginações radicais, fugas impossíveis y prosperidades improváveis. “Mandinga de travesti só bicha sabe desfazer. E mandinga de bixa só travesti consegue desmontar. É feitiço que traz aqué e coragem pra dançar e roubar heranças.” (Castiel Vitorino Brasileiro, 2019, p. 8).
encho minha garrafa de água no filtro de barro
meu estudo preto goytacaz caboclo é uma reza sagaz, uma gargalhada molhada que brota dos meus joelhos ralados. rezar, portanto, é uma ação, um movimento qualquer, um sopro, uma ginga, um canto de boiadeiro, uma queda na praia, uma roda de taba com frutas numa cachoeira, uma vela acesa iluminando uma leitura obsessiva, é aquela fração de A gente combinamos de não morrer de Jota Mombaça na parede da minha biblioteca, é aquele olho com raízes sedentas de Carú de Paula na minha cama, é o Vermelho em Dilúvio de Musa Michelle Mattiuzzi na minha estante de estudos pretos, é o altar que eu fiz pra Oxum do lado esquerdo da minha Cordilheira
Octavia Butler não é só uma autora Lauren Oya Olamina não é só uma personagem A Semente da Terra não é só um Livro. são feitiços maquinados por mãos pretas. i put a black spell on you. y foi Jota Mombaça quem soprou o caminho rumo à Butler y à imaginação preta radical. ela, a monstrona dos feitiços, sim, Não vão nos matar agora (2021) não é um livro, mas uma barricada, uma fuga. y foi também no Grupo de Estudos Sobre o Fim que ela, Jota Mombaça, também soprou as inscrições sônicas y grafias misteriosas de Leda Maria Martins
abro as janelas
eu tô rachando. tô trocando de pele! por isso tenho fome, por isso tenho bebido os caldos escuros das suas mãos, y babando pude sentir que o apodrecimento não é o fim, mas uma transição. você consegue ouvir? me armo y me curo estudando; me armo y me curo estudando; me armo y me curo estudando. numa outra parte; numa outra parte; numa outra parte. uma noite de veludo preto para as minhas memórias fugitivas; uma noite de veludo preto para as minhas memórias fugitivas; uma noite de veludo preto para as minhas memórias fugitivas. o q será da minha carcaça no fim do mundo? o q será da minha carcaça no fim do mundo? o q será da minha carcaça no fim do mundo? você consegue farejar a invocação ancestral? você consegue sentir as presenças misteriosas se aproximando?
“[...] penso que estamos comprometidos com a ideia de que estudo é aquilo que você faz com outras pessoas” (Stefano Harney y Fred Moten, 2013, p. 110). só por isso pude abrir a reza braba, porque aprendi a me encontrar com vocês. não apenas livros, mas praias y quintais, não somente pessoas, mas forças, gatinhas y estrelas. você consegue ouvir? “o conhecer e o estudar conduzidos pela Negridade anunciam o Fim do Mundo como o conhecemos”; “o conhecer e o estudar conduzidos pela Negridade anunciam o Fim do Mundo como o conhecemos”; “o conhecer e o estudar conduzidos pela Negridade anunciam o Fim do Mundo como o conhecemos” – Denise Ferreira da Silva (2019, p. 91). “Eu não vou morrer! Eu não vou morrer! Vivas! Eu não vou morrer! Viva em pleno Mar Morto” (Ventura Profana, 2020). “10 de maio [de 1956] É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela”; “10 de maio [de 1956] É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela”; “10 de maio [de 1956] É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela” Carolina Maria de Jesus (2014, p. 27). “A fuga era a linguagem da liberdade”; “A fuga era a linguagem da liberdade”; “A fuga era a linguagem da liberdade” Saidiya Hartman (2007, p. 222).
passo barbatimão nas minhas feridas
zum, zum, zum, bem no meio do meu mar
y ela continua bombando direto no meu coração
ela continua bombando direto no meu coração
direto no meu coração
estudo preto é performance. você consegue sentir? você fareja o perfume da sua presença nessas trilhas desvairadas? como não, né?! você também tá vendo essa encruzilhada? esses rios profundos de águas turvas de gerações diferentes se cruzando? você também sonhou com esses vendavais de negruras selvagens y alegres, né?! seus escritos molhados também embalam o movimento dessas águas que, cada vez mais, por toda a parte, têm erodido as encostas desse Mundo. eu nem me lembro mais qual foi a última vez que apresentei um texto sem chorar. “Performar, nesse sentido, significa inscrever [...] o corpo é um portal” (Leda Maria Martins, 2002, p. 89). você também inscreve rezas, né?! a água, dizem, é um condutor universal, então quando choro estudando seus mistérios ou compartilhando misteriosamente meus estudos, eu também me transporto? acho que, talvez, foi nessa segunda-feira – nem o esquecimento é total, isso também aprendi com você. são raros os encontros com minhas ancestrais em carne, por isso agradeço y me alegro, sabendo que foram os nossos estudos que possibilitaram esse encontro, aqui. então vamos, vamos que já tenho sede, minha velha! vem, vem que agora minha reza é silêncio y a minha performance é escuta)))))))~~~
[1] Esse texto foi apresentado, de forma virtual, como abertura do 1° Festival da voz e poesia falada, de Belo Horizonte (MG), na mesa "Literatura pela boca", juntamente com Leda Maria Martins y com mediação de Pedro Bomba, no dia 19/9/2021. Agradeço profundamente o convite, feito pela Roda BH de Poesia, y o acolhimento que só as Negras Gerais podem oferecer; em especial, agradeço a Nívea Sabino y Pedro Bomba."
abigail Campos Leal é graduada em geografia, mestre em ética aplicada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutoranda em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), tendo como pesquisa "a transição é uma fuga: as poéticas trans racializadas y o fim da ontologia". É professora do curso de especialização em ciências humanas e pensamento decolonial da PUC-SP e uma das organizadoras do Slam Marginália, "uma competição de poesias feita por y para pessoas trans y dissidentes de gênero". Publicou a coletânea de poesias escuiresendo: ontografias poéticas (2020) e o livro de ensaios poéticos ex/orbitâncias: os caminhos da deserção de gênero (2021). Integra a exposição Um século de agora, em cartaz no Itaú Cultural até abril de 2023.
Fabiana Carneiro da Silva, neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani e Yeté, tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (DLCV/UFPB).