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Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea: Ezequiel Vitor Tuxá

Um capítulo do inquietante romance de estreia do autor, que narra o processo de (de)formação de um jovem garoto em busca de si mesmo

Publicado em 12/01/2023

Atualizado às 08:37 de 10/05/2023

Por Fabiana Carneiro da Silva

A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

Joaquim, o protagonista do romance O que falam as águas?, ao questionar o pai, branco, acerca da origem étnica de sua mãe, indígena, ouve como resposta: “Hum… Ana não sabia – a boca cheia de comida – nada sobre sua história, era civilizada. Foi pega no laço, filho”. O enunciado “foi pega no laço” surge na narrativa em meio ao gesto prosaico e dissimulado de Pedro, pai do garoto indagador. O enunciado “foi pega no laço”, proferido com naturalidade e amortecimento num dos capítulos nucleares do livro, sintetiza o argumento principal do inquietante romance de estreia de Ezequiel Vitor Tuxá. Um romance que narra o processo de (de)formação de um jovem garoto em busca de si mesmo. Joaquim é fruto de uma relação inter-racial, e a micronarrativa “foi pega no laço” na economia interna da obra ecoa e ressoa uma estratégia com que ela foi acionada historicamente para além dos limites da ficção. Em face da ausência da mãe e de sua história, “foi pega no laço” opera como pseudoexplicação que oblitera a possibilidade de outras narrativas acerca da violação e do estupro das mulheres indígenas na constituição deste território como nação. Joaquim, contudo, não se convence de que seja essa uma resposta plausível a uma pergunta que é dele, mas também é minha, é nossa. Desse modo, o romance se desdobra e encena outra possibilidade de diálogo, o diálogo com as águas do Rio São Francisco, ou melhor, do Rio Opará, nome que lhe foi atribuído pelos indígenas. É desse diálogo mágico e ancestral que virão as pistas condutoras e desveladoras do percurso do personagem protagonista da trama, a qual fisga a nós leitores(as) adulto(as), mas me parece conter ainda maior apelo de seduzir o público juvenil (considerando, inclusive, as ricas ilustrações que a integram). Iniciar a edição de 2023 da série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea com esse autor e com essa obra é esperançar a possibilidade de atribuição de novos sentidos aos desterros vivenciados geográfica e subjetivamente pelos povos originários do Brasil e seus descendentes. É sentir respigar em nós o vigor da coleção Livro lugar, vinculada ao projeto homônimo coordenado pela professora Laura Castro na Universidade Federal da Bahia (UFBA), que convida e encoraja estudantes indígenas a percorrer seu território poeticamente, por entre memórias, histórias e situações de troca, tomando seu Lugar como um Livro aberto, território de possibilidades poéticas e estéticas, alfabéticas ou não. É matar um pouco da sede de saber mais sobre o Rio Opará, sobre a aldeia Tuxá Kiniopará, sobre o escritor, artista, pesquisador e estudante Ezequiel Vitor Tuxá, sobre as configurações presentes das literaturas de autoria indígena. É também (re)aprender a ouvir o que as águas estão a nos contar e poder enterrar as perversas e dolorosas ficções coloniais.

 

Capítulo V de O que falam as águas?

Caros moradores de Porto dos Enxutos,

O problema ainda não foi solucionado…

Pedro, zangado, interrompeu a leitura do jornal bruscamente.

— Droga de empresa! – resmungou dobrando o jornal. – Joaquim, como foi a aula hoje? – perguntou com uma voz arrependida.

Joaquim não respondeu e fingiu comer batatas assadas.

— Filho, eu... – Pedro estreitou os olhos enquanto tamborilava a taça de vinho – eu queria me desculpar por minha atitude na noite passada. Eu sei que trabalho com o rio e você se sente curioso para conhecê-lo e estar nele. Até compreendo que essa vontade seja maior em você do que em outras crianças. Mas já conversamos que é um rio perigoso e traiçoeiro. Já te contei essa história, mas repito. A sua mãe amava nadar nesse rio e eu sempre a alertava sobre os perigos, mas ela, teimosa como só ela podia ser, não deu ouvidos e se afogou em uma dessas suas aventuras. Filho, sua mãe era uma excelente nadadora, conhecia o rio como ninguém, mas isso não o impediu de afogá-la.

Essa era a história. A triste história da morte de sua mãe. De forma enregelante, como se fosse uma história de ninar, seu pai apenas a contou duas vezes, somando com essa. A primeira vez que a ouviu, tinha dez anos de idade. Só restou uma foto de sua mãe, mas Pedro havia escondido. Sempre quando Joaquim perguntava sobre retratos dela, seu pai dizia: “Ela não gostava de… não tenho nenhuma foto dela, infelizmente”. Mas Joaquim sabia que era mentira, pois, bisbilhotando o escritório do pai, em uma das vezes que conseguiu entrar sem que Maria, a cuidadora, percebesse, pegou o livro O rio São Francisco nasceu das lágrimas de Irati e encontrou uma foto de sua mãe entre as páginas: era como se estivesse olhando para si mesmo. Uma mulher marrom e de cabelos pretos. Aquela foto era um acalanto, um socorro. Ele olhava a foto toda noite antes de dormir. Decorara todos os traços de sua mãe. As marcas no lado direito e esquerdo do pescoço, os olhos verdes cintilantes, os mínimos detalhes ali, naquela única foto. Ao olhar, conseguia imaginar sua mãe viva. Ela tinha partido e ele nem a conheceu. Que cheiro tinha? Como andava? Como sorria? Como era a sua voz? Aquela foto era uma lembrança, um sussurro do passado, mas também uma certeza da sua morte.

O pai bebeu o vinho e depois girou a taça, pensativo.

— Beber, filho, é um dos melhores remédios para os fracos que sofrem com lembranças. Quer um gole?

Joaquim, que brincava com a comida, olhou para seu pai que sorria sem mostrar os dentes e depois mirou a taça de vinho que ele lhe oferecia.

— Não…

— Vamos, só um gole, filho.

Joaquim, atribulado, bebeu.

— Joaquim, você tinha um ano de idade e nem pôde conhecer sua mãe Ana intensamente. Não quero que o mesmo aconteça com você – apertou o ombro de seu filho. – Você poderá ir sempre à piscina do clube fazer suas aulas. Lá é seguro.

Joaquim agitou-se. O medo do pai refletia-se nele, uma criança que já não ansiava muita coisa da vida. Perigos existem em qualquer lugar. Nas piscinas, na rua, no colégio, ali… Ele mastigou depressa um pouco de comida para não ouvir mais as palavras do pai, tão amargas quanto o gosto de vinho em sua boca. Cada passo seu foi milimetricamente pensado pelo pai. O pai, que trabalhava com barragens hídricas, construía barragens nele, desviando cursos, impedindo a fluidez, secando e matando sonhos. As regras de seu pai o rodeavam e se multiplicavam a cada passo seu. Faltava-lhe ar e, às vezes, o seu coração palpitava como se quisesse rasgar o peito, como se os céus fossem cair. Ele se lembrou dos nãos do pai desde que se conhece por gente. O garoto era um peixinho de água doce no aquário à espera de qualquer punhado de liberdade que fosse.

Ele se levantou da mesa, calado, até que uma pergunta saiu de sua boca ousadamente antes que ele pudesse refrear, da mesma forma firme e ríspida de quando tinha dez anos:

— Qual o povo de minha mãe?

Mas a resposta de seu pai, que voltou a comer como se nada tivesse acontecido, também saiu da mesma forma de quando tinha dez anos

— Hum… Ana não sabia – a boca cheia de comida – nada sobre sua história, era civilizada. Foi pega no laço, filho – cortou mais um pedaço de carne e levou à boca.

Pega no laço, amarrada como um animal, presa, sem ter como se defender. Era assim que a frase soava nos ouvidos de Joaquim, sórdida e violenta. As histórias do seu pai eram tão requentadas e temperadas que ele não podia mais sentir o sabor da verdade.

Joaquim foi para seu quarto. Os olhos do seu pai seguiram-no à espreita.

No quarto, a criança pegou a concha escondida em sua mochila e foi para debaixo da cama de jacarandá. No lugar mais escuro do quarto, mas ainda cortado por um fio de luz vindo da sola da porta, pressionou a concha no ouvido… Shhhh… um chiado gradativo e pacífico dissipou seus pensamentos atordoados, acalmando-o como uma onda suave e lenta. Dormiu…

Uma mulher ergueu as mãos para pegar seu bebê das mãos de um homem com o rosto difuso pela escuridão. Estava fraca, pálida e amedrontada.

— Rio da minha vida. Não era para você estar aqui – disse a mulher para o bebê com a voz embargada.

Lágrimas caíam dos olhos da mulher de silhueta esguia e pingavam no rosto do bebê em seu colo.

Joaquim acordou procurando ar num só fôlego. A luz fria e fraca que antecede ao nascer do sol penetrava lentamente no quarto. Ainda debaixo da cama sentiu seu rosto molhado. Da concha em suas mãos pingava suor. Sua boca seca clamava por água.


***

Na metade da manhã do dia seguinte, Joaquim foi para o banheiro do colégio e se deparou com a faxineira colocando alguns baldes de água no chão em frente à pia.

— Ei, seu menino, não use essa água, ela é do rio. Estamos fazendo a limpeza do colégio com ela para economizar a água tratada. Agora deixa eu ir ali pegar mais alguns baldes no carro-pipa – ela olhou o Joaquim de cima a baixo e saiu.

Sozinho, Joaquim abriu sua mochila e pegou a concha, observando detalhe por detalhe. Não encontrou nada de extraordinário. Entretanto, aquele pesadelo, aquela mulher parecia sua mãe Ana, pálida e magra. Mas e aquele homem, era seu pai? O bebê era ele? Só podia ser ele. Nauseado, ele colocou a concha em cima da louça e abriu a torneira para molhar o rosto, numa tentativa falha de expulsar tamanhas e assombrosas questões. Pegou sua mochila jogada no chão e quando tentou pegar a concha, ela caiu dentro de um dos baldes que a faxineira trouxe…

Alguém entrou no banheiro.

— O que está fazendo aqui, bicho do mato? ­– pestanejou Ulisses. – Achei que pessoas como você fizessem suas necessidades no mato.

Joaquim permaneceu em silêncio.

— Você não tem voz? Sempre sozinho, falando baixinho, olhando para o chão. Um animal dialoga melhor que você, selvagem excomungado – tripudiou Ulisses.

Ulisses aproximou-se de Joaquim, ficando frente a frente com ele, há poucos centímetros de distância. Os dois se encararam por um tempo. Ulisses continua:

— Já se passaram uns quatro minutos! Não vai desligar a torneira? Não te civilizaram o suficiente para aprender essa parte? Sabia que estamos enfrentando um racionamento de água, selvagenzinho?

Joaquim tentou desligar a torneira atrás dele sem se virar, as mãos tateando à procura do volante metálico, torcendo para Ulisses não ver a concha dentro do balde ao seu lado.

Ulisses se aproximou e de surpresa dá um soco no estômago de Joaquim, que no reflexo se agachou de dor.

— Aqui não é o seu lugar e eu vou fazer você lembrar disso todos os dias, menino estranho.

Ulisses saiu do banheiro.

Joaquim ergueu-se cerrando os dentes, empertigado, suprimindo a raiva que queria pular para fora como um animal feroz. Conteve as emoções. Foi então que…

 — AAAARRR!

Um barulho gorgolejante e agourento saiu de dentro da concha ainda banhada pela água do balde, incompreensível, como se alguém estivesse gritando debaixo d’água, da mesma forma que ele fazia na piscina do clube.

— A água fez isso acontecer! – disse impressionado.

***

Nas aulas pós-recreio, Joaquim não tirou seus olhos de Ulisses, eles faiscavam. Murmurava imprecações contra o menino branco.

Depois do colégio, ele correu para o clube.

— Olá, pequeno peixe! – Pirá lia um livro da Clarice Lispector, intitulado A Paixão Segundo G.H.  – Adiantado, como sempre. Começamos em 20 minutos a aula de mergulho.

— Professor, eu posso entrar agora? – a pressa estava estampada em sua cara.

— Tudo bem! Sempre o primeiro a chegar e o último a sair, pequeno. Estou lhe vigiando aqui de fora — apontou para o relógio pendurado na corrente em seu pescoço. – Aqui ninguém se afoga, sei o tempo de todos os pirralhos.

Joaquim foi para o vestiário, colocou a roupa de banho rapidamente e tirou mais uma vez a concha da mochila para testá-la.

Ele tomou fôlego e se jogou na piscina… Tchiboom… escorregando pela água até chegar ao fundo azulejado. Sentou-se e colocou a concha no ouvido. Nenhum chiado. Passaram-se longos cinco minutos e nada, seus pulmões doíam, mas insistiu. Até que não aguentou mais tempo em submersão e saiu.

— 6 minutos e 9 segundos – afirmou Pirá – Ah, você levou a concha para o fundo da piscina! E então, o que o rio te contou? Acredito que não muita coisa nessa água presa da piscina.

Joaquim riu com o canto da boca, porém com o pensamento longe…

— É isso! Precisa ser água do rio – sussurrou.

 

Ezequiel Vitor Tuxá nasceu em Ibotirama, Aldeia Tuxá Kiniopará, na Bahia, em 1997. É artista, estudante de psicologia, escritor e pesquisador. Lecionou as matérias Cultura Indígena e História, no ano de 2015, no colégio indígena de sua comunidade (ensino fundamental II). Em 2016 mudou-se para Salvador para estudar psicologia na Universidade Federal da Bahia, e desde então vive em trânsito entre as duas localidades. Além de O que falam as águas?, é o autor do áudio-livro Tuxá Kiniopará: um presente do passado para o futuro e do álbum sonoro Tuxá Kiniopará.

Fabiana Carneiro da Silva, neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani e Yeté, tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (DLCV/UFPB).

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