Na coluna "A caminho" de novembro, Marcus Carvalho Lopes fala como as telenovelas reforçam ou ocultam traumas sociais e valores morais
Publicado em 08/11/2024
Atualizado às 11:30 de 08/11/2024
"Esquecer e – ouso dizer – errar na história são fatores essenciais na formação de uma nação!"
Ernest Renan
O historiador queniano Ali Mazrui (1933-2014) no artigo “Amnésia cultural, nostalgia cultural e falsa memória: revisitando a crise da identidade africana” (2013) procura avaliar como a história da África e do nacionalismo pan-africanista segue a avaliação (feita por Ernest Renan) de que esquecer e errar a própria história são passos essenciais para criar uma nação. Para Mazrui, a memória coletiva dos povos africanos é marcada pelos eventos traumáticos da escravidão e do imperialismo, que provocam um tipo de reação defensiva que gera esquecimentos e falsas memórias. Diante da violência do imperialismo e da arrogância do europeu, os movimentos nacionalistas africanos teriam caminhado para uma posição que se contrapõe: de um lado, a negritude, que abrange um primitivismo romântico, negando a existência de qualquer contribuição tecnológica/científica negra no passado e anunciando a promessa de uma incorporação futura de sua sabedoria civilizacional emocional-espiritual-comunitarista; e por outro lado, as posições de glorificação romântica, que celebram as conquistas tecnológicas e arquitetônicas do passado africano e suas diversas civilizações complexas e anteriores às europeias. Nesse processo de seleção, a própria situação traumática da violência imperialista causa uma reação, mas permanece impensada: o trauma gera falsas memórias coletivas.
O filósofo nigeriano Adeshina Afolayan considera o alerta de Mazrui não em sua dimensão de crítica epistemológica, mas como uma necessidade política, já que as “falsas memórias”, nostalgia e amnésia são necessárias para as identidades coletivas, e avalia que o cinema nigeriano desenvolvido por Nollywood (termo utilizado para se referir à indústria cinematográfica da Nigéria) tem dado uma grande contribuição para a construção do pan-africanismo. Podemos partir das afirmações de Ali Mazrui e Afolayan para pensar o lugar das telenovelas brasileiras na construção da memória coletiva do país.
Não por acaso, foi o filósofo Ronie Silveira, especialista em falsas memórias e estudos brasileiros, que organizou o pioneiro livro A novela brasileira e a Filosofia (2016). A ideia de que de alguma forma pudéssemos ir para uma posição totalmente além dos mecanismos de ilusão é uma arrogância epistemológica, até mesmo porque, no caso das falsas memórias e nobres mentiras que constroem uma nação, os efeitos políticos e sociais são efetivos. Para Ronie, as narrativas das novelas brasileiras moldam a nossa realidade.
Na minha contribuição para o livro de Ronie, defendi que as novelas brasileiras criaram o cotidiano do país, assim como os filmes do cinema clássico de Hollywood fizeram com os Estados Unidos. Tentei avaliar a especificidade do gênero e se as novelas podem ser vistas como narrativas que contribuem ou não para o perfeccionismo moral. Aqui o que nos interessa é tentar pensar o que as telenovelas querem encobrir, ou seja, qual é o trauma (ou quais são os traumas) para o qual elas funcionam como falsa memória consoladora/conciliadora?
De modo geral, a naturalização da desigualdade extrema, fruto de uma sociedade moldada pela escravidão e colonização, é uma das características da sociedade brasileira que constantemente precisa ser ocultada. Normalmente, assim como a literatura romanesca clássica, a telenovela brasileira parte de um corte de classes que não tem lugar para dramatizar a desigualdade e aqueles que lutam para sobreviver. No romance do britânico Edward M. Foster (1879-1970), Howards End (1910), a rica heroína Margaret Schlegel afirma que ela e seus pares estão “em cima de dinheiro como pessoas ficam em ilhas. O chão é tão firme sob nossos pés que esquecemos sua própria existência. Só quando vemos alguém cambaleando perto de nós é que compreendemos o que significa ter uma renda independente. Comecei a pensar que a própria alma do mundo é econômica, mas que o mais fundo abismo não é a falta de amor, mas a falta de dinheiro” (Foster, 1993, p. 66). O romance de Foster e as telenovelas, geralmente, não têm lugar para aqueles que não são “pessoas de bem” (gentlefolk) ou dos que tentam se comportar como pessoas de bem. Seu narrador deixa claro: “Não estamos interessados nos muito pobres. Eles são inimagináveis e devem ser objeto de consideração apenas do estatístico e do poeta” (Foster, 1993, p. 50). Por isso mesmo, o personagem Leonard Bast, que é o pobre da trama, somente é objeto de atenção na medida em que tem dinheiro para desenvolver possibilidades de conversação e conexão e não cai no abismo daqueles que passam todos os seus dias obcecados pela luta por sobrevivência. Do mesmo modo, a telenovela está interessada no telespectador que pode consumir e em moldar o seu desejo para o consumo.
Essa característica de relação com o consumo que marca a telenovela brasileira ganha uma relevância maior porque as narrativas respondem aos interesses da audiência, modificando suas tramas, aumentando ou diminuindo a participação de personagens, o foco narrativo etc. Dessa maneira, diferenciam-se das séries e minisséries que têm uma narrativa fechada e que não têm essa capacidade de interação e de conciliação com as expectativas da audiência.
Ainda que diversas formas de opressão e exclusão sejam retratadas e reforçadas pelas telenovelas, como a estrutura patriarcal e os estereótipos de gênero e raça, em alguns casos existe espaço para crítica e algum merchandising social acerca de problemas específicos. Mas toda a narrativa cai na lógica melodramática e maniqueísta, reduzindo a possibilidade de representação da dor e dos conflitos em formas estereotipadas e de soluções simplistas. Esse maniqueísmo narrativo permite que, em diversos casos, a narrativa dos telejornais siga o esquema de reducionismo e a insinuação de saídas/soluções simplistas.
Como ponto central, minha hipótese é a de que a telenovela brasileira se desenvolveu e teve seu auge no contexto da ditadura militar, mantendo esse período como algo impensado/irrepresentável. Pode-se pensar em contraexemplos como as minisséries Anos Rebeldes (Globo,1992), Queridos Amigos (Globo, 2008) e Os dias eram assim (Globo, 2017) que tratavam da ditadura militar. As três minisséries da Globo não se adequavam ao formato tradicional da telenovela e mantinham uma lógica de antiquário, desconectando aquele passado opressivo e violento dos discursos antidemocráticos e autoritários que seguem fazendo parte do debate político com uma aura de nostalgia. Resgatar a rebeldia sem a contextualização crítica dessa mesma força de transformação e inconformidade contra a ditadura, a censura e a violência do regime totalitário, pode ser tomado como o estopim para uma nova irrupção reacionária.
Já as telenovelas Cidadão Brasileiro (Record, 2006) e Amor e Revolução (SBT, 2011/2012) são exceções que confirmam a regra da impossibilidade de tratar da ditadura no formato da telenovela brasileira, já que foram feitas em emissoras sem grande tradição no gênero e que, por isso, apostaram em sua renovação temática. Cidadão Brasileiro contou a trajetória de ascensão social do personagem Antônio Maciel, da década de 1950 até o início do século XXI, retratando o período da ditadura militar em uma das suas fases (assim como o envolvimento de personagens com a luta de libertação dos países africanos contra o colonialismo português). Já Amor e Revolução, escrita por Tiago Santiago, foi a primeira novela a tomar o período da ditadura como seu mote central. A novela se passava em São Paulo e no Rio de Janeiro nos anos 1960, durante o golpe de 1964 e os anos de ditadura militar. A trama narra a história de amor impossível entre José Guerra (Cláudio Lins), um militar da inteligência, filho de um general linha dura, porém democrata e contra o regime, e Maria Paixão (Graziella Schmitt), líder de um movimento estudantil que entra para a luta armada.
A produção foi cercada de muitos cuidados em sua preparação para retratar aquele período histórico de uma forma mais densa e cuidadosa, procurando dar voz a pessoas que foram torturadas e perseguidas pela violência estatal promovida pela ditadura militar. Mas justamente por seguir a lógica de ser gravada ao mesmo tempo em que era exibida, as reações acabaram afetando a dramaturgia e modificando sua direção crítica. Depoimentos de pessoas torturadas pela ditadura deixaram de ser exibidos e a trama buscou enfatizar aspectos românticos, cortando representações de violência. Essa transformação da narrativa não pode ser desconectada da reação forte por parte dos militares, que não gostaram da forma como estavam sendo retratados e tomaram a produção do SBT como uma contraparte da proposta da Comissão Nacional da Verdade, que investigou as violações aos Direitos Humanos perpetradas pelo Estado no período da ditadura.
Se as telenovelas se instituíram como narrativas redentoras que encobriram o trauma da ditadura militar, a narrativa de Amor e Revolução quebrou com uma regra tácita que é um limite simbólico do gênero. Não só porque esse é um produto feito para que os espectadores tenham uma forma de entretenimento leve, naturalizando um cotidiano apolítico e de consumo de classe média, mas também porque, ao tematizar diretamente as formas de violência e opressão perpetradas pelo Estado no período da ditadura, rompeu com o pacto narrativo de dissimulação que também coloca fora da narrativa todos aqueles que são irrepresentáveis/impensáveis e para os quais essa postura dos órgãos de repressão nunca deixou de fazer parte do cotidiano. Essa abordagem não apenas confronta a história de frente, mas também desafia o público a refletir sobre as contínuas implicações dessas ações repressivas, dos discursos e práticas autoritárias hoje. A tensão entre entretenimento e crítica social nas telenovelas brasileiras revela muito sobre as dinâmicas de poder e a luta por memórias coletivas.
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