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Vida ridícula ou a doença da fotografia

Artista visual, Rodrigo Masina Pinheiro estreia na coluna “Revelação”

Publicado em 11/05/2022

Atualizado às 11:41 de 19/01/2023

Por Rodrigo Masina Pinheiro

Fotografia de uma maça mordida presa em um fio transparente. O fundo da imagem é preto.
Isca, da série GH, Gal e Hiroshima, 2020. (imagem: Rodrigo Masina Pinheiro e Gal Cipreste Marinelli)

Ou foi Hélène Cixous ou foi Clarice Lispector quem escreveu isto: As palavras produzem coisas. As palavras são coisas.

Um soldado nazista coloca no papel essa palavra. Catherine Opie escarifica essa palavra na pele do peito. As Fierce Pussy dizem se orgulhar dessa palavra. Essa palavra estampa o convite de uma festa fechada de sexo criada pelo fotógrafo Ajamu X, a Black pervert’s network. Perversão, a palavra, é um evento degenerado, um orgulho em processo, uma festa com regras inflexíveis, um convite, um fetiche concedido, um lema, uma bifurcação que leva ao sentimento dos mundos possíveis.

O soldado nazista, por exemplo, não pode entrar. Na festa não são permitidos homens cis brancos. Foi feita por/para homens cis negros e asiáticos. Se você não é, não tem convite, não entra. Não é bem um mundo possível, mas é um mundo imaginado por quem se via como intruso. No convite está escrito exatamente isto: “Código de vestimenta: couro, borracha, roupas íntimas ou menos”. Pode parecer estranho, mas é possível estar em um mundo perverso (e lindo). A perversão nos protege. A perversão aflige quem não suporta. Quem não conhece. Ela não admite você.

Na fotografia de Catherine Opie, ela, marcada com a palavra pervert cicatrizada no peito, segura um bebê, seu filho Oliver, e o amamenta. Esse é o retrato da sua maternidade lésbica, do amor inteligível e puro, com um tecido ao fundo que informa os padrões de uma pintura vitoriana. “As palavras que expressam o mal estão destinadas a vir a ter uma significação de utilidade. Apaga uma ideia falsa, substitui-a por uma ideia justa.” É justa a coisa que a palavra perversão é para mim, hoje.

Fotografia em preto e branco que mostra as pernas de um homem. Ele está prendendo algumas tesouras com as pernas, que estão quase cruzadas.
Cerca, da série GH, Gal e Hiroshima, 2021 (imagem: Rodrigo Masina Pinheiro e Gal Cipreste Marinelli)

Este foi o bilhete nazista escrito em 1945 para justificar a prisão e a condenação de morte das artistas Claude Cahun e Marcel Moore, nunca executadas, ainda bem:

“As duas mulheres judias que acabaram de ser presas pertencem a uma categoria desagradável. Elas foram finalmente encontradas. [...] Uma busca na casa, cheia de pinturas cubistas feias, trouxe à luz uma quantidade de material pornográfico de uma natureza particularmente revoltante. Uma mulher teve a cabeça raspada e foi, assim, fotografada nua de todos os ângulos. Além disso, ela usava roupas masculinas. Mais fotos nuas mostravam as duas mulheres praticando perversão sexual, exibicionismo e flagelação”.

Ele, o nazista, escreve perversão sexual e categoria desagradável quando se refere a fotografia de Claude e Marcel. Há uma coisa que ele imagina ter o direito de fazer contra elas. Não é somente prendê-las e condená-las. O sexo é a arma favorita do mundo contra os corpos desobedientes de gênero. Mesmo na infância. O sexo é a correção e a punição. O que isso quer dizer sobre a fotografia?

Fotografia em preto e branco de um casal. Eles estão sentados lado a lado, em cadeiras, com as pernas cruzadas entre si. A foto corta o rosto das duas pessoas, não sendo possível identificá-las.
GH, da série GH, Gal e Hiroshima, 2020 (imagem: Rodrigo Masina Pinheiro e Gal Cipreste Marinelli)

Meus pais saíam de casa à tarde, não era frequente, mas quando isso acontecia eu usava o computador da sala sem ser vigiade. Acho que eu não era tão nova. Entrava em um chat e pensava em ligar a webcam. Era ainda aquela redondinha, branca, presa em cima do monitor. Conversei por alguns meses com um menino hétero que pensava que eu era uma mulher cis. Não lembro dos nossos usernames. Às vezes ligávamos a câmera. Eu vestia as roupas da minha mãe, meu cabelo longo caía na frente do peito e desenhava um decote. O enquadramento não revelava meu rosto e a câmera me via apenas da boca para baixo. Ele não se importava com isso, nem podia reclamar de mim, já que só ligava uma luz muito baixa. Eram alguns segundos.

Mas eu esperava muito para existir nesses segundos. Sabia que só podia existir ali, alguns minutos por semana, algumas horas por ano. Na câmera. Onde não era nem a sala da minha casa nem a casa do menino, era a câmera. Um dia marcamos no cinema do Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Ele me viu de longe e foi embora. Não era eu, apesar de ele ter me reconhecido. Não lembro qual teria sido o filme. A fotografia entrou na minha vida como uma patologia (perdão por essa palavra arma). Sempre me odiei nas fotografias. Talvez não tenha sido sempre. A partir de certa idade.

Mas eu a esqueci. Aprendi a amar e a odiar a fotografia na mesma medida em que amava e odiava a mim mesme. Existi enquanto a fotografia existiu. E desapareci toda vez que meus pais chegaram em casa. A autobiografia dissidente não é linear. Somos ainda menos lineares que o fluxo de pensamento que estrutura as histórias na literatura. Somos um fluxo de fatos. Claude Cahun e Marcel Moore não nasceram com esses nomes. A cabeça raspada de Claude pode ter sido seu início. Suas roupas de infância podem representar um fragmento na sua imagem de reconhecimento. Minha vida começou há pouco tempo, está prestes a começar, porque toda a minha vida foi ridícula. Vivo um legado de constrangimento. Tenho medo de fotografar minha história porque sei que ela vai parecer estranha, risível ou, pior, não vai parecer crível. Talvez sejamos circulares. Aos 34 anos não tenho muitas provas de estar viva, não faço muitos retratos. Ainda não tenho corpo. O legado da fotografia dissidente é, em parte, de silêncio e desmembramento.

Fotografia de uma vela personalizada em um fundo vazio. A vela tem o formato de uma boca aberta, com a chama no centro.
ARCA, da série GH, Gal e Hiroshima, 2020. (imagem: Rodrigo Masina Pinheiro e Gal Cipreste Marinelli)

Tarrah Krajnak é artista, fotógrafa interdisciplinar e escritora. É, em suas palavras, este amálgama: “Indígena do Peru e órfã quando criança, fui adotada por uma família transracial da classe trabalhadora da região carbonífera americana e criada como gêmea do meu irmão afro-americano. Essa experiência inicial da diferença racial estabeleceu minha preocupação contínua com pertencimento, orfandade, exílio ancestral, origens e a maneira como essas construções são escritas no corpo e no arquivo”. Sou apaixonade por seu trabalho. Para mim, Tarrah é uma artista decisiva. Ela nomeia uma história psíquica: “imaginar linhagens, inventar mães”.

Não sei por que essa palavra que ela insere muda tudo. Psíquica. Li essa palavra em pelo menos três biografias dissidentes: em Tarrah Krajnak, Darrel Ellis e Bowei Yang. Perguntei (para mim) o que seria a história psíquica de qualquer coisa. Como se pretende fotografar isso. Porque tem de ser a psíquica e não a outra. A outra é a factual? Perguntei se essas três biografias tinham poucos fatos. Se havia poucos registros, poucas formas de mostrar o que aconteceu. Mostrar o que é. Acho que foi isso. A vida de Krajnak teve de ser ecoada, irradiada de algo. E, se não fosse irradiada, teria sido encoberta por um silêncio (um nada) vertiginoso. Há fotografias de mulheres que não são a sua mãe, mas que foram mães na mesma época. Em Lima, Peru. Fotografias vernaculares e psíquicas. O que temos de fazer é transpassar o vernacular com a telecinese. Ela faz tudo. Quem sou eu para tentar explicar? Quero falar mesmo é de uma imagem:

As mãos da fotógrafa abrem um livro pressionado contra o vidro de um scanner. A foto é preta e branca e muito ruída. Na página do livro há um texto com o título, “Capítulo Cinco: Alguém já viu a fotografia de um estupro?”. A autora enumera as violências sempre ostensivamente fotografadas. Bombardeios, epidemias, fome, torturas, escombros de cidades, doenças, ataques terroristas, corpos dilacerados, uma profusão de horror. Mesmo a fome, que é abstrata, tem rosto. A guerra. Tudo. E, no entanto, segundo a autora, a imagem do estupro estava ausente. A fotografia do que é verdadeiramente atroz, e aqui tudo está incluído, é paga para ser vista. Você precisa marcar consentimento, dizer, eu aceito, em sites de pornografia, em bilheterias. O estupro é parte dos roteiros. Na aula mestra, Círculos de memória e perversão, coloco a música “Submissa do sétimo dia” (2017), de Linn da Quebrada, ao lado da primeira página do livro A paixão segundo G.H. (1964), de Clarice Lispector. “Estou procurando, estou procurando…”, elas dizem, e o que não encontram é o indizível.

Do início ao fim da música não sabemos o que as pessoas veem quando olham para a Linn, quer dizer, nós sabemos, mas não se diz, porque há a palavra, mas não se explica. No livro, não sabemos até o fim o que a personagem viveu e não pôde dar a ninguém. O fato de não haver fotografias de estupro não é só por decência, não há, não é por dinheiro, há, não é por uma forma de remodelar a história, é também porque sabemos o que é indizível e mostrar não dirá. Há muitas autobiografias de corpos dissidentes, de mulheres e pessoas LGBTIA+, que são escritas mas não podem ser publicadas. Talvez em 20, 50 anos após a morte. Esperar a própria morte é um passo a ser dado de proteção. Algo pode ser dito, pode ser mostrado, mas não agora.

Ninguém pode saber. Ao mesmo tempo, a fotógrafa espanhola Laia Abril, em sua série On rape, fotografa uniformes que representam algumas instituições historicamente coniventes com a violência sexual. A igreja, a militar, a família, a escola. Ela coloca esses uniformes na parede da galeria, impressos e emoldurados em tamanho real, para que, na nossa frente, sejam roupas que caibam em nós (vazias e vestíveis). Em cima dos quadros, escrito à mão, direto na parede, está o testemunho de pessoas que não têm rosto porque não precisam ter, e que não falam do ato, falam das consequências e da impunidade. As biografias dissidentes têm de ser, precisam ser, autobiografias. Enquanto ainda estamos vivas.

Fotografia em preto e branco de um homem jovem e sem camisa. Ele está com o rosto levemente inclinado para cima, olhando nesta direção. É possível ver uma tatuagem no ombro esquerdo do rapaz. Ele usa brincos e está com as mãos juntas na altura do peito.
Gal, da série GH, Gal e Hiroshima, 2019 (imagem: Rodrigo Masina Pinheiro e Gal Cipreste Marinelli)

Nas minhas aulas sempre peço aos alunos que leiam o livro Escrever, de Marguerite Duras, e troquem o verbo escrever por fotografar. Fica assim.

“Fotografar
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer:
não podemos.
E
fotografamos.
É o desconhecido que carregamos dentro de nós: fotografar, é isso que se alcança. É isso ou nada.
Podemos falar de uma doença da fotografia.”

É preciso saber: você não tem autorização para fotografar nossa história. Seus olhos já não veem nada se o que eles querem ver é o outro. A palavra outro é sua forma de embaçar a realidade. Seus olhos já estão mortos, sua fotografia já está morta, como diz M. Duras em A doença da morte, “essa função mortal da falta de amar”. Você acha que sua fotografia está viva.

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