Litrento remixa histórias e samplea índices da realidade que circunscreve sua experiência como jovem negro no Brasil
Publicado em 13/10/2022
Atualizado às 17:43 de 26/10/2022
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.
Na última conversa que tive com meu amigo Acauam Oliveira, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), indaguei-lhe quais fenômenos literários contemporâneos poderiam se alinhar, por analogia, ao feito estético do que foi para a década de 1990 a produção dos Racionais MC’s. Acauam desenvolveu uma brilhante tese em que lê o rap dos Racionais como um acontecimento histórico-estético que reconfigura a subjetividade dos sujeitos da periferia, bem como o cenário cultural do país, tendo em vista “as coordenadas nas quais a música brasileira se reconhece”. Parte da tese virou o prefácio de Sobrevivendo no inferno, disco que virou livro, escancarando o signo “poesia” da sigla RAP.
Pois bem, essa prosa inconclusa com esse amigo crítico voltou a cintilar em meu pensamento quando do meu encontro com a literatura de Lucas Litrento. Jovem escritor do bairro do Biu, em Maceió, Litrento tem dois livros publicados e premiados: o de poemas os meninos iam pretos porque iam (2019) e o de contos Txow (2020). Somando ao que parece ser uma tônica do fazer arte hoje, Litrento também transita por outras linguagens, especialmente pelo cinema, como roteirista e diretor. Sua produção, em conjunto, dá a ver movimentos primeiros de um projeto estético em construção, mas já fundamentado e bem arquitetado pelo autor. São precisas as referências que Lucas convoca como genealogia de seu fazer, colocando lado a lado nomes de uma tradição das margens, como João Antônio, e nomes constituintes do cânone nacional, como Lygia Fagundes Telles. Também integra essa genealogia um robusto arquivo de poéticas negras, com destaque, neste caso, para o cinema de Djibril Diop Mambety e a música do grupo aqui mencionado Racionais MC’s.
O olhar observador de Litrento, desperto pelo vozerio que povoa o seu cotidiano, se transfigura na dicção polifônica de seus textos. O autor produz, assim, instigantes imagens a partir do que ouve e do que houve. Como um DJ da palavra, ele remixa histórias e sampleia índices da realidade que circunscreve sua experiência como jovem negro no Brasil. Um dos efeitos dessas engenharias de criação é a reconfiguração dos lugares estabelecidos pelas hegemonias. Nos textos que aqui publicamos – a saber, o poema “Mano Brown também ama”, o conto “Maião” e o conto inédito “na areia branca” –, acompanhamos o mover-se de sujeitos que, subalternizados pelo ordinário do sistema capitalista-racista-branco-ocidental (um combo pleonástico), se esquivam das investidas de captura essencialista desse sistema e nos devolvem atos singulares, autorreflexivos, transgressores e irônicos – o sorrir de Mano Brown, o pular a catraca do jovem de “Maião” ou o sentar na areia, respirar e se ver em encruzilhada do professor de “na areia branca”. Esses sujeitos-personagens nos encaram e escancaram contradições como quem sabe que o artifício do literário é também um jeito que encontramos de aquilombar e proferir o revide.
Nessa tocada, não deixa de figurar a preocupação com a beleza, e são as descrições pormenorizadas que muitas vezes dão o tom e o ritmo capazes de nos sensibilizar em face do lirismo da vida que se pode e se deseja viver. Em muitas de suas entrevistas, Lucas Litrento alinhava o ano de seu nascimento, 1997, ao lançamento do disco Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC’s. Depois de ler os textos do novo autor da literatura contemporânea brasileira e sentir a potência e o alcance dessa produção, diria eu que não se resume a essa coincidência de datas a relação entre tais projetos. Meu amigo Acauam, talvez tenhamos aqui uma resposta às nossas indagações.
Mano Brown também ama
(do livro Os meninos iam pretos porque iam)
canalizar a raiva
escrever punchlines
enquanto tocam jazz
escrever como jazz
não parar até que a meia volta do acorde tore no meio do solo
soar como jazz no pífano
mostrar que a cor da raiva não é escura
porque fazem amor no escuro
e assistem filmes
que não é apenas raiva
se é apenas raiva
fizeram assim
sem mexer um músculo
fizeram assim
criando monstros
compor sambas
porque sabe dançar
virar poeta pra mostrar
que não é feito apenas de raiva
sorrir como Brown
vestido de ouro
cantando soul
Maião
(do livro TXOW)
Subo no busão, pulo a catraca: tudinho com medo. Vou pro fundão bem devagarinho, fico ligado em todo mundo, olho demorado. O cobrão bufa, engole seco mas não fala nada, já sabe. O arrumadinho abraça a mochila como se fosse um bebê, a véia aperta o crucifixo de madeira, o gordo vira a cara quase colocando a cabeça todinha no espacinho da janela, o otário nem disfarça. Tá olhando o quê, véi? Os viadinho que tão em pé abrem caminho preu passar, tudo se encolhendo. É lôitxa, fico puto mas me sinto rei. O fundão só fede a mijo. Cadeira vazia e gente em pé, já tô ligado. Vi esse peste antes e foi do mermo jeito. A merma camisa do CSA, manchada de sangue e terra. Do mermo jeito: deitado, segurando uma lata de Pitu e cachaça escorrendo no chão. Ninguém senta do lado dele, tem duas cadeiras sobrando. Se antes deu chegar eles tavam com medo, imagina agora. Sento, jogo os pés sujos pra longe, tiro o celular do bolso. Puta merda, só quinze por cento de bateria. Que nada, dá pra ouvir umas pedra. Esse bicho tá desconsiderado o nêgo, esse bicho tá desconsiderado o nêgo, lembro da Dessinha dançando, aquela safada, nêgo é cabeça de gelo, nêgo é cabeça de gelo. Tô na música mas também tô no ônibus. Sempre ando ligado, não dou vacilo não. Um olho dentro e o outro fora, de vez em quando passa uma amarelinha, a RP, o Bope, os pau no cu tudinho. Espero que eles não parem, sempre vêm logo pra mim. Nem pedem a identidade mais, vão logo abrindo minhas perna, apertando meu saco. E eu não tenho nada não, véi. Tô de boa dentro do busão, nessa boba desse ônibus esculhambado. Mas não adianta, pros arrombado eu sou pior que esse bebo aqui do lado, ele é até clarinho. Eles nem falam nada, só basta olhar. Que nem esses medroso aqui. Nem me conhecem mas acham que sabem tudo só de me olhar. Só de ver minha camisa de 23 anos da Mancha, as tatuagens: o nome da minha princesa Vitória num braço e do meu pai, que Deus o tenha, no outro. E daí? marco meu corpo mermo, com nome de gente que eu amo, é bonito. E o corpo é meu, faço o que eu quiser nessa merda. Só porque maiei? Porra! Apois eu maio, não tem pra quê tá pagando passagem toda hora não, uma peste cara dessa, quatro conto. E ainda pra ir em pé? Pelo menos tô sentado, nem aí. Eu não vim pra me curvar, eu vim para conquistar. Eu não vim pra me curvar, não, eu vim para conquistar. Fogo na Babilônia! Topo o volume, só um txow. Um doido olha pra mim, tá puto com a música. Não tenho medo de cara feia não, mobral. Eu boto mermo. Um otário desse corre quando me vê na rua, pega na mão da coroa apertando já e atravessa sem prestar atenção, só pra ficar longe. Conheço o tipinho. E agora ele vai ouvir o meu som, a minha curtição, vai ouvir o Cleiton Rasta. Deve tá indo pro trabalho, passar o dia levando grito, otário... Apois o meu reggae vai ficar na cabeça dele o dia todo, quando ele tiver falando mansinho com o chefe, ou quando tiver em casa fazendo trabalho da faculdade. Otário. Continua me olhando assim, vai. Acha que eu tenho medo? Chuva. Que dia merda pra sair do Biu só pra pegar a porra do selim da bicicleta do Messias. Só tô indo porque devo uma a ele. Se não fosse por ele eu tava sem mulher agora. Sozinho. Quer dizer, sozinho não que sempre tem os esquema mas tava sem a mãe da minha princesa. Sempre fico viajando quando tô dentro de busão. Sei lá, sempre lembro de coisa antiga. Acho que são as coisas passando rápido, letreiro, carro, tipo num filme. Semana passada quando fui na casa do Tio Meira lembrei da primeira vez que subi num ônibus pra vender jujuba. Subi pela traseira sem avisar, vi que tinha espaço e fui logo pra frente, eu era pivetão. Já tinha ensaiado aquele jeito educado, tudo certinho, eu prestava atenção nos caras. Saudar a todos com um valioso e educado bom dia, bom dia, pessoal? Nem cheguei a falar, uma dona arregalou o olho e gritou pro motô abrir a porta, um escândalo da peste. Depois que ela desceu ninguém falou nada. Fiquei parado, sem perceber que tava chorando. Esse dia foi foda mas eu gosto de lembrar, me faz repetir pra não confiar em ninguém, não ligar pro que acham de mim, da minha imagem, é tudo um agá. Que se foda, faço o meu e o resto que se arrombe. Essa é a lei. A véia do crucifixo puxa a cordinha, levanta devagarinho até me ver. Sai pedindo licença toda adoidada até chegar na traseira. Ainda falou alguma merda baixinho, não entendi direito mas foi reclamando de mim, é foda mermo. Pelo menos estiou. Os zomi passa de fininho, todo mundo vira a cabeça querendo gritar por ajuda. Aí dá vontade de ter um ferro escondido na cintura e roubar tudinho só de raiva. E só tem bandido que nem eu é? Não, preciso de porra de ferro não. Não vou ser o que eles querem. Eu que sei quem eu sou e pronto. Vou descer no outro. O bebo acorda. O pivete do meu lado ri da cara dele mas quando olha pra mim fecha a cara. Sou pior que esse véio mermo. Sou um pretinho desempregado, um maião. Um alma sebosa. Alma. Devem falar assim porque a gente pode levar um tiro a qualquer hora, na ladeira lá da rua ou aqui dentro do busão, se algum doido sacar a ponto-quarenta. Que seja, sou alma mermo. Tipo fantasma, é só chegar que o povo se assusta, sem falar nada. Vai descer, piloto! Ele me olha com raiva, vejo pelo espelhinho. Tenho medo de cara feia não, quanto mais de um véio paia desse. Porra, fico puto. Bora, motô, adiante! Dou um murro nessa merda véia. Todo mundo se assusta.
Na areia branca
(inédito)
que não seja branco demais.
A porta do elevador se abre, ele segura o passo. Somente um corredorzinho estreito que leva a um único apartamento. Esse tapete deve valer muito. A luz de sempre, amarelada e meio opaca. Ao lado, uma mesinha com uma estátua pequena. Os cabelos, os ombros e as pernas negras, vestes roxas coladas no corpo. Percebe o número errado. Volta pro elevador. Um único nove. Aperta: a porta fecha e abre na mesma hora; só existe um nono andar, vai ver trocaram o número do apê. Na sua frente, a porta brilha e não guarda nenhuma marca do tempo, é daquelas que são feitas com um único corte. A campainha é um detalhe ao redor de um papel de parede sóbrio. É o jeito. Aperta o botão, seu dedo desliza. Com a porta aberta, a visão se repete: sempre vê a sua mãe. Boa tarde! Eu peguei o elevador pro nono andar, apertei o nove, mas tô procurando o novecentos e dois. Ela sorri.
— É que tem que pegar o outro — até a voz é parecida. — Você tem que descer e pegar o elevador do lado.
— O de serviço? eu nem olhei. Vou ter que descer? Ninguém me disse que era assim, senão-
— Você é professor de quê?
— Português. Como sabe que sou professor?
— Olhe, não desça não — sussurrando do mesmo jeito que mainha fala quando conta uma fofoca, meio assim inclinando o busto e abrindo mais os olhos, cheia de drama. — A minha patroa não tá, então vou deixar você passar.
Abre caminho, a casa se mostra, mas ele não tem tempo de estudar o lar alheio como sempre faz. Venha logo, a mulher puxando pelo braço. Não se conhecem, mas nesse instante é como se fossem vizinhos de décadas ou parceiros de crime. O apartamento é enorme. As paredes todas brancas, passam vultos coloridos em molduras de vidro, relevos de origem africana. Professores de história, políticos de esquerda? A cozinha cheia de pratos empilhados, cheiro de cachorro molhado, eles sempre têm uns cães fedorentos.
— É que ninguém lhe avisou. Bichinho... É assim mesmo. Olhe:
Nos fundos da cozinha, ao lado da geladeira cromada, uma porta quase escondida, da mesma cor da parede. Nota o próprio cabelo refletido na superfície fria, cachos distorcidos em ondulações que poderiam muito bem fazer parte da decoração artística; era um pouco solto demais, meio desordenado, mas serviria.
— é só bater na porta do lado, viu? Vai dar na cozinha de lá, do 902.
Parece um corredor de hospital, não tem quase nada: um extintor pequeno no chão, uma planta de plástico e a tela de proteção na janela que corta a parede: a única ligação entre os dois apartamentos. A ausência de ar-condicionado denuncia o mundo real. Da janela também vaza o barulho dos carros e, bem ao fundo, das ondas do mar.
— Oxe, vai ficar aí parado, é? Bora, eu vou com você.
O molho de chaves balança numa mão, ela puxa o professor até a outra ponta do corredorzinho. Bate duas, três vezes. A mulher que abre a porta tem a mesma estatura, os mesmos fios de cabelos brancos que escapam da amarração para trás e o mesmo cansaço na pele.
— Tava dormindo, Marilene?
— Vendo a novela, mulher. Que foi, quem é esse?
— É o novo professor do Otávio.
— Ah! Oi, professor.
— Oi, boa tarde.
— Agora que tá tudo certo, vou voltar pra minha faxina. Tchau, professor. Na próxima já sabe, pega o outro elevador.
— Tchau, brigado, viu?
— Que faxina o quê? Vai é dormir.
— Cala a boca, Marilene...
A mulher voltando ao seu local de trabalho, à casa dos outros. Veste branco e uma parte do seu corpo parece fazer parte de todo o resto. Continua balançando o molho de chaves. Marilene puxa o professor, ele hesita.
— Pera, só me diz uma coisa: como a senhora sabia?
— Meu filho, com essa sua cara de inteligente? Dá pra saber da esquina.
E desaparece no branco.
Os dois entram no 902. A geladeira, o fogão, as cadeiras e as paredes numa mistura de palidez com frieza. O exaustor no centro do cômodo é daqueles usados em restaurantes de grande porte, mas aqui, na certa, só devem viver quatro pessoas e um cachorro. Bom: se tem dinheiro, gasta.
E de novo o cheiro de ração cara e de brinquedo babado, depois o latido. Cadê o pivete?
— Cadê o Otávio?
— Deve tá no quarto, vou chamar. O senhor pode sentar na mesa. Ali, ó. Isso.
Nas paredes, espaços ocos com miniaturas de santos, de carros antigos e da Torre Eiffel. No centro da mesa, cilindros de vidro dividiam espaço com frutas de plástico dentro de uma cesta velha. O garoto chega exatamente como os outros. Cara de sono porque são preguiçosos, acordam às 6h30 e ainda vão pra escola de carro... Deitado desde o fim do almoço, eles têm sesta; e a preguiça já vem antecipada, o dengo. Não é dengo, olha esse moleque:
— Oi, tio. — Toda a pose de jovem adulto vai embora. Tio?
— E aí, cara. — Tio?
Ele vem com o caderno e os módulos resumidos adotados pelas escolas mais caras de Maceió. O professor revira os olhos discretamente. Teve aquele dia: uma charge no meio do capítulo sobre conotação. Um homem de colete do IBGE pergunta “Quantos dependentes?” Ao fundo, uma favela qualquer, o vira lata magrinho e o barraco de madeirite. A mulher velha, suja, feia, numa mistura de avental, pano de prato e pijama surrado, responde “Três! Meu marido, de cocaína; meu menino, de crack; eu, do bolsa-família.” Primeira Questão: Explique a construção do humor na charge, mínimo de cinco linhas.
O moleque mexe muito as pernas. Evita olhares diretos, não quer se rebaixar? Diga logo que não sabe... me diga que você não sabe, vá!
— Então, nesse assunto dos ditongos, quais são as suas principais dúvidas?
— Ééééééééééé... tudo?
Novidade. No rosto dele não apenas a insegurança, mas o total desconhecimento e “a prova é semana que vem, tio”. Os alunos avulsos são sempre assim. O professor suspira, volta pro início do capítulo. Ditongos, tritongos e hiatos. Encontros consonantais. E os vocálicos, que ele sempre confunde. A empregada abre a porta da cozinha. Entra uma voz grave e Marilene chama a sinhazinha. A menina é mais nova que o irmão, tem o mesmo rosto enjoado e pálido; vai até a cozinha com um violão de cordas de nylon. O instrutor de violão diz alguma coisa e vai até a menina. A voz dele é grave e firme, tem cor. O professor vê os dois na mesa de jantar, os homens trocam olhares. Boa tarde? Boa tarde. É um irmão muito bem vestido, bem mais que ele. O cabelo simétrico, a camisa passada e abotoada até o final. Definitivamente ele tem classe, mas ainda é um serviçal como todos os outros: ré menor com sétima.
O apartamento é um luxo. A sala de estar com um sofá espaçoso e uma televisão de 50 polegadas, mas o engraçado é a varanda. Sim, cinco palavras com hiatos. Não é uma varanda qualquer, além de ser maior que todas as outras é um espelho da sala. Tem um sofá do mesmo tipo, outra televisão do mesmo tamanho. Duas televisões de led, uma ao lado da outra, praticamente na mesma parede. A diferença é que a segunda recebe o ar que vem da rua ao invés do que sai do split, além de dividir espaço com plantas de vários tons de verde. Duas tevês gigantes. Bom...
O latido bem fininho. Corre até os pés do professor, morde a borracha do tênis.
— Sai daí, Estela... — diz o pivete, no mesmo tom preguiçoso. — Sai.
A cachorra volta a latir, mostrando os dentes minúsculos. O professor dá um risinho sem graça.
— Oi, Estela!
A voz da empregada ecoa de algum cômodo:
— Estela, vem comer!
Chegam ao fim do capítulo, com um amontoado de questões de universidades famosas, um pequeno simulado. Questões da Ufal, da USP e de Harvard, mas o pivete não sabe nem o que é um enunciado.
— É a questão, leia aí a questão.
— Ah...
A ratinha escapa das mãos da empregada e corre em direção aos pés do professor. Dessa vez só cheira. O som do acorde é lento, corda por corda, mas a menina é impaciente, quer logo aprender as notas de um rap acústico.
— Iti, fofinha. Tá gostando de mim, ó.
Ela já não late mais, lambe os tracinhos de areia no tênis surrado. O último acorde é lento, ao contrário da batida da porta dos fundos sendo fechada. O professor percebe que já se passaram as duas horas de aula. Às vezes, ele se esforça pra fazer o tempo correr, mas depende muito dos alunos. Há alguns minutos, ele sentia o suor frio caindo dos seus cabelos.
— Tô cansado, tio.
— Você entendeu tudo?
— Sim. — Claro que não.
— Vai se dar bem na prova, né? — De recuperação.
— Dá pra desenrolar... — Agora seja.
Passos lentos de um salto alto e provavelmente caro. A mãe é uma loira chegando nos quarenta. O perfume forte se mistura com o cheiro do batom, o sorriso é mínimo como o aceno com a cabeça. A ratinha dá voltas ao redor da madame, pula nas suas pernas e recebe uma bronca. A mulher demora o olhar no rosto do professor, no seu cabelo e na guia em duas voltas no seu pescoço.
— Como estamos aqui? O meu menino se comportou?
— Sim, Otávio aprende rápido... só precisa prestar mais atenção. Vai se dar bem na prova.
— Tem que se dar bem na prova.
Otávio responde com um riso frouxo, como se fingisse demência. A mulher se aproxima e mexe no cabelo do filho, suspirando.
— Esse anjinho me dá tanto trabalho...
Imagino.
Agora os dois com meio sorrisos, o professor devolve com outro. A loira segura um molho de chaves eletrônicas numa mão e uma bolsa dourada na outra. Diz que está de saída, a porta principal já aberta. O professor aproveita a deixa e arruma suas coisas, joga as canetas coloridas no bolso maior da mochila de pano. Também tô de saída. A mãe arregala os olhos e confere as horas no relógio de prata.
— Nossa, é mesmo... Filho, tô saindo. Vê se continua estudando. — E vai até a porta aberta.
O professor se despede com a mesma cortesia contida, põe a mochila nas costas e vai até o corredor. Agora sim, o elevador certo. A mãe hesita, desiste de descer, gira o molho de chaves entre os dedos, confere o relógio novamente, segura a porta e diz boa tarde. O professor aperta o único botão, entra no elevador vazio. Olha o apartamento na fração de segundos que a porta vai fechando: a mãe permanece rígida, dá um tchauzinho robótico, o sorriso já não é mais frouxo.
As memórias se atropelam enquanto desce o elevador sem a companhia da mãe do seu aluno. O sorriso no canto da boca sendo engolido pela porta metálica. Mais uma vez vê o próprio reflexo numa superfície fria. Imagina o seu corpo estirado no elevador, rodeado de páginas rabiscadas, tentativas de resoluções de questões e canetas coloridas. Quando chegasse no térreo, teria a sorte de ser recolhido pela moça da limpeza. Se bem que se fosse encontrado por um morador, esse chamaria a moça da limpeza, o que daria no mesmo. A sorte é que a chegada dela pouparia tempo. Então, com o auxílio da sua vassoura de mil fios, ela embrulharia o professor no saco preto disposto no carrinho de lixo, ligaria pro IML e deixaria o corpo aos cuidados do porteiro, que deixaria aos cuidados do próximo, na troca de turno, já que o camburão só chegaria depois de oito horas, no mínimo. Daria tempo das assinaturas, garranchos e desenhos dos alunos colarem no cadáver feito tatuagem de fichado. Ao recolherem o corpo, os homens do IML ficariam surpresos com a imagem de um rabisco humano, de um rascunho que não chegou aos 23 anos de idade, contrariando as estatísticas de alfabetização para jovens e adultos. Agora imagina o enterro, não, algo mais específico: o túmulo. Levando em consideração o estado final do cadáver, o túmulo deveria ser parecido, como uma espécie de homenagem. Austero, de pedra escura e lisa, mármore ou algo do tipo (só não pensa como os seus pais pagariam esse luxo), repleto de inscrições inacabadas, de equações mal resolvidas e inícios de corações tortos. A cada aniversário de morte, mais pixos e garranchos, rolas tortas, mancha azul 28 anos, cv greai e números de celular sexo selvagem no sigilo se somariam. O mais visitado do cemitério do seu bairro. Afinal, o consórcio do terreno no Campo Santo Bosque das Orquídeas dividido pra todos os seus tios serviria pra alguma coisa. Morreria antes da vó, a pessoa que motivou o investimento. E depois, os garranchos tomariam conta de todo o cemitério, a fachada teria o seu nome em letras garrafais e coloridas, poemas em todas as lápides. Adolescentes aspirantes a rappers gravariam clipes lá, aproveitando o cenário rabiscado. Nunca mais o verde fajuto da grama sintética. Sobe o mormaço quando a porta se abre. Na sua frente, a moça da limpeza com uma vassoura bem mais modesta. O professor se mexe porque ela não vai precisar embalar um cadáver. Sente o próprio corpo frio, os espasmos não param; aleatórios, cada vez mais fortes. Desceria de escadas se soubesse encontrá-las. Na certa ela tem nojo, ou uma regra: nunca dividir elevador com empregados, assalariados ou serviços prestados, não duvido dessa gente. E não se trata de esperar o pior, o professor tá numa fase até otimista, é que essas madames são todas iguais, banquinho de pedestal, salto quinze e os caralho. Filha da puta o coração tão rápido porra para um pouco. A visão turva não o impede de sair do prédio rapidamente. Passa a vista no porteiro, falou véi... Os sons da rua passam ao mesmo tempo, parecem que giram ao seu redor. Não consegue caminhar mais que uns dez passos. Senta no meio-fio, bem na esquina. Tira a mochila das costas e abre o bolso maior em busca da garrafa, pouca água, mas serve. Toma em dois goles, pinga um pouco no seu queixo. “Respire fundo quando a raiva bater, sempre respire fundo.” Sempre. Respire. Fun- Uma moto cruza a pista sem ligar pros carros que chegam do lado. Está sentado num paralelepípedo áspero, cheio de areia. Ao seu redor, muita areia branca, da praia; o tênis todo sujo. Passa uma buzina e mais outra, o que devem imaginar? Ele prende o olhar na areia branca. De aspecto tão delicado, é tão fininha, essa sim dá pra transformar em vidro, se já não for vidro farelado, destruído. Uns grãos são mais brancos que outros, tem os amarelados, que deixam vazar a crosta cinza do asfalto. Ao seu lado um poste, a lâmpada acende e todos os grãos são um só. Ergue a cabeça e olha a rua, a visão ainda turva. O professor percebe que está numa encruzilhada. Vê um caminho.
Lucas Litrento é escritor, realizador cinematográfico e produtor cultural. Lançou os livros Os meninos iam pretos porque iam (Iogram, 2019) e TXOW (Edipucrs, 2020), este último semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura em 2021. Realizou o curta-metragem círculos (1TXW, 2020). É editor do selo multiplataforma Loitxa Lab. Seu próximo livro de poemas, PRETOVÍRGULA, está no prelo.
Fabiana Carneiro da Silva, neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani e Yeté, tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (DLCV/UFPB).