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30 anos sem Tom Jobim: a falta que o maestro faz

Livro, álbum, show, musical e exposição revisitam a vida e a obra de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim

Publicado em 08/12/2024

Atualizado às 14:03 de 07/12/2024

por André Bernardo

Ruy Castro não esquece da primeira vez que entrevistou Tom Jobim. Foi no dia 28 de março de 1968. O futuro autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues tinha 20 anos e trabalhava na revista Manchete. A entrevista aconteceu na rua Codajás, 108, no Leblon, numa casa que nem existe mais. Foi naquele endereço que, entre outras proezas musicais, Tom compôs “Wave”, finalizou “Águas de março” e viajou para gravar com Frank Sinatra, em Los Angeles. A entrevista começou lá, mas terminou, algumas horas e muitos chopes depois, no antigo bar Veloso, atual Garota de Ipanema. Ruy e Tom só voltaram a se encontrar, por obra do acaso, na churrascaria Plataforma, exatos 20 anos depois. No dia 28 de março de 1988, Ruy, então na Playboy, tinha ido até a Gávea entrevistar o jogador Renato Gaúcho. “Por artimanhas do sobrenatural, em que não acredito, vivo protagonizando coincidências. Mas aquela foi de arrepiar”, admite o autor do recém-lançado O ouvidor do Brasil – 99 vezes Tom Jobim (2024).

De 2007 a 2023, Ruy Castro calcula ter escrito cerca de 3,5 mil crônicas para o jornal Folha de S.Paulo. Dessas, 120, direta ou indiretamente, falavam de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. A pedido da Companhia das Letras, Ruy selecionou 90 e escreveu mais nove. Entre outras curiosidades, o livro revela que Tom não gostava de aeroporto e tinha pavor de avião (hoje, por incrível que pareça, dá nome ao Galeão, no Rio), brigou com João Gilberto (que não perdoava Tom por não ter sido convidado para gravar com Sinatra!), gostava de colecionar dicionários (em várias línguas e de todos os gêneros), quase foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (retirou sua candidatura em favor de Antônio Callado), declinou do convite para assinar a trilha sonora do filme A pantera cor de rosa (Henry Mancini foi convidado a substituí-lo) e, ufa!, compôs “Wave” sozinho por absoluta falta de parceiros (Chico escreveu o primeiro verso, “Vou te contar...”, e não deu mais notícias). “Sempre que Tom abria o piano, o mundo melhorava”, resume Ruy Castro.

Hoje, a morte de Tom Jobim completa 30 anos. Três décadas depois, aquele 8 de dezembro de 1994 ainda não sai da cabeça de Danilo Caymmi. “Estava em Brasília no dia em que Tom morreu. Foi um dia difícil, porque tive que dar a notícia para o neto dele, Daniel”, recorda o flautista e cantor. Caçula dos três filhos de Dorival, Danilo fez parte da Banda Nova, que acompanhou Tom em shows e discos, de 1983 a 1994, data de sua morte, aos 67 anos. “Foi uma época muito feliz da minha vida. Ensaiávamos muito na casa do Tom. Apesar do seu tamanho e de sua grandiosidade, não tinha qualquer deslumbre ou vaidade”. Em homenagem a Tom, Danilo e Stacey Kent, a diva americana do jazz, estão fazendo uma turnê pelo Brasil. Depois de Brasília e São Paulo, o espetáculo Um Tom sobre Jobim chega ao Rio. A ideia é seguir com o projeto até 2027, ano do centenário do maestro. “Mais do que dois grandes músicos, Tom e Dorival foram dois grandes mestres. Ensinaram tudo o que sei sobre amor ao próximo e respeito à natureza”, emociona-se.

Quem também fez parte da Banda Nova e, hoje, presta tributo a Tom Jobim é a cantora Paula Morelenbaum. Ao lado do violonista Arthur Nestrovski, ela gravou Jobim canção (2024), com dez músicas do repertório do maestro: de “Cala, meu amor” e “Caminhos cruzados”, de 1958, a “Piano na Mangueira”, de 1991. “Meu foco foi gravar músicas que eu ainda não tinha gravado. As exceções são “Passarim” e “Piano na Mangueira”. Mas estão bem diferentes”, garante. Paula integrou a Banda Nova por dez anos, de 1984 a 1994. “Conviver quase que cotidianamente com Tom e ouvi-lo tocar piano era como estar nas nuvens”, suspira. “Tinha um humor incrível. Estava sempre contando piadas e nos fazendo rir”. Das lembranças de que não se esquece mais, cita o dia em que atendeu uma ligação de João Gilberto na casa de Tom (“Como não tinha viva voz, tive que segurar o telefone para os dois ensaiarem…”) e das duas vezes em que gravou um especial de TV ao lado de Tom e Chico. Numa delas, cantou “Eu te amo”. Noutra, “Imagina”. “Imagina uma coisa dessas?”, brinca.

Não é toda hora que aparece um Pelé ou um Tom Jobim

Para matar a saudade de Tom, pode-se ler o livro do Ruy, curtir o show do Danilo ou ouvir o CD da Paula. Ou, ainda, assistir ao musical de Nelson ou visitar a exposição de Aluísio. O espetáculo Tom Jobim musical, escrito por Nelson Motta e Pedro Brício, está em cartaz no Teatro Casa Grande, no Leblon. Já a mostra Tom Jobim: discos solos, organizada por Aluísio Didier, está no Instituto Antônio Carlos Jobim (IACJ), no Jardim Botânico. No espetáculo, Tom é interpretado por Elton Towersey, que nasceu no ano em que o cantor morreu, e Vinicius (parceiro em “Chega de saudade”, “Ela é carioca” e “Garota de Ipanema”, só para citar três das 66 canções da dupla) por Otávio Müller. “A parte mais difícil de transformar a vida e obra de Tom em um musical é a qualidade de suas músicas. Como escolher apenas 30?”, indaga Nelson Motta, autor de musicais em homenagem a Wilson Simonal e Elis Regina. “Nenhum musical da Broadway teve, tem ou terá um score musical à altura de Tom”. Ao todo, Tom compôs, sozinho ou em parceria, 498 canções. Dessas, a mais tocada e regravada é “Garota de Ipanema”. Os dados são do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD).

Vinicius é, sem dúvida, o parceiro mais famoso de Tom. Mas, houve outros. Como Newton Mendonça, coautor de “Desafinado”, e Chico Buarque, de “Sabiá” (faixa que, por sinal, ganhou o III Festival Internacional da Canção, de 1968). Sozinho, Tom deu vida a clássicos como “Corcovado”, “Samba do avião” e “Águas de março”, entre outros. Sobre o personagem-título do espetáculo, Nelson Motta já escreveu: “Todo mundo gostava de Tom Jobim. Da elegância econômica de seus acordes, da sofisticada leveza de suas melodias”, em Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais (2000). Ou: “Não é toda hora que aparece um Pelé ou um Tom Jobim. Os grandes craques são sempre exceções, em qualquer tempo, na música ou no futebol”, em As sete vidas de Nelson Motta (2014). “Além da seleção das músicas, tive outro problema para resolver. A vida de Tom não tem drama, conflito ou suspense. Para compensar, juntei a vida dele à de Vinicius. Deu match! É a dupla perfeita”, brinca o jornalista, escritor e letrista Nelson Motta.

Se Tom Jobim musical segue em cartaz até o dia 23 de fevereiro, Tom Jobim: discos solos é permanente. A ideia surgiu em 2020, durante a pandemia de covid-19, quando Aluísio Didier, diretor do IACJ, e Paulo Jobim, o filho mais velho de Tom, fizeram uma série de lives sobre os álbuns lançados entre 1963 e 1994. O período abrange 12 obras – de The composer of Desafinado plays a Antônio Brasileiro – e inclui “pérolas”, como Wave, de 1967, Matita Perê, de 1973, e Passarim, de 1987. “Não há um melhor, todos são especiais”, afirma Didier, curador da exposição. “Poderia citar The composer of Desafinado plays pelas canções mais conhecidas ou Matita Perê por sua guinada em direção ao interior”.

Tom se casou duas vezes. Com Thereza Hermanny, teve dois filhos: Paulo e Elizabeth. Com Ana Lontra, João Francisco e Maria Luiza. João Francisco morreu em 1998, aos 18 anos, em um acidente de carro, e Paulo, em 2022, aos 72 anos, de câncer na bexiga. “Pela manhã, ia para o piano trabalhar e ficava lá por um bom tempo. Depois, gostava de mostrar as músicas que estava fazendo”, recorda a artista plástica Beth Jobim. “Era um pai muito amoroso e próximo, apesar das muitas viagens que fazia”.

A foto em preto e branco traz Tom Jobim com a filha Beth, então uma criança, no colo. Ele usa uma camisa.
Tom com a filha Beth no colo | imagem: Acervo Beth Jobim


Sobre as muitas histórias de bastidor dos 12 LPs da exposição, Didier conta duas. A primeira é sobre o pesquisador que, certa ocasião, agendou uma entrevista com Tom para conversar sobre algumas de suas musas inspiradoras, como Luiza, Gabriela, Carla... “Carla, que Carla?”, quis saber o maestro. “Ora, da música ‘Carla, meu amor’”, respondeu o rapaz. “Acontece que a música se chama ‘Cala, meu amor’”, Didier solta uma risada. A outra é do álbum Tide, de 1970. Na faixa “Takatanga”, Tom, sempre fiel ao piano acústico, se aventurou por um elétrico. A imprensa estranhou: “O que houve, Tom? Cedeu a um som mais pop?”, perguntaram. “Um copo de uísque derramado dentro do piano acústico do estúdio impossibilitou o uso do instrumento”, esclarece Didier. “Sem opção, se arriscou no Fender Rhodes. Ao que parece, gostou. Tanto que, no LP seguinte, o Stone Flower, repetiu a experiência”. “Não gosto de pensar que Tom e Paulinho nos deixaram. Para mim, eles continuam vivíssimos. Penso e ‘converso’ com eles diariamente”, admite Didier.

Ai! Que saudade me dá da vida que nunca tive! 

Didier tem razão quando diz que Tom está mais vivo do que nunca. Só este ano, foi lembrado em dois livros: O lado B de Boni (Best-Seller) e Clarice Lispector entrevista (Rocco). No primeiro, o empresário José Bonifácio de Oliveira Sobrinho conta a história por trás do tema de abertura da novela Brilhante, que Tom compôs por encomenda. “Está linda demais. Mas me ajuda. Preciso da abertura pronta amanhã”, reclamou. “Boni, música eu domino, mas, em matéria de letra, eu sou apenas um amador”, desculpou-se. “Põe isso na letra!”, sugeriu. E assim foi. “Eu sou apenas um pobre amador / Apaixonado, um aprendiz do teu amor…”, diz um trecho da canção. No segundo livro, a escritora Clarice Lispector, quase no fim da entrevista, feita em seu apartamento no Leme, pede a Tom que improvise a letra de uma música. Depois de uma pequena pausa, ele recita: “Teus olhos verdes são maiores que o mar / Se um dia eu fosse tão forte quanto você / eu te desprezaria e viveria no espaço / Ou talvez então eu te amasse / Ai! Que saudade me dá da vida que nunca tive!”. 

A musa de “Luiza”, o tema de Brilhante, tem nome e sobrenome: Vera Fischer. A mais famosa, porém, é Helô Pinheiro, a eterna garota de Ipanema. Mas, há outras, igualmente inspiradoras, como Lygia Marina de Moraes, da canção “Ligia”. “Era professora de Beth, a filha caçula do Tom”, relata a jornalista Rosane Queiroz, autora do livro Musas e músicas (2014) e cantora do show A mulher por trás da canção. “Um dia, sem saber que Fernando Sabino estava namorando Lygia, Tom ligou para ele e pediu o telefone dela. Ciumento e brincalhão, o escritor deu o número errado”. No caso de “Águas de março”, a inspiração não veio de uma mulher, mas de um lugar: Poço Fundo, o sítio de Tom Jobim no município de São José do Vale do Rio Preto, na região serrana do Rio. Quem conta é o jornalista João Ricardo Gonçalves, autor do livro Histórias que você sempre ouviu, mas nunca escutou (2023). “Foi lá que, certa ocasião, João Gilberto atolou o carro na lama”, revela. O episódio, para variar, virou letra de música: “É o carro enguiçado / é a lama, é a lama”. 

Imagina se eu vou cobrar para tocar com você!

Ruy Castro, autor de O ouvidor do Brasil, e Nelson Motta, coautor de Tom Jobim Musical, costumam dizer que a vida de Tom Jobim não daria uma biografia. Afinal, não teve baixos, só altos. O cantor e compositor Roberto Menescal, coautor de “O barquinho”, entre outros clássicos da bossa nova, discorda: “Não daria uma biografia, não. Daria várias”, graceja. Duas, aliás, já foram escritas: Antônio Carlos Jobim – Um homem iluminado (1996), de Helena Jobim, irmã do biografado, e Antônio Carlos Jobim – Uma biografia (1997), do jornalista Sérgio Cabral.

Menescal conheceu Tom em Copacabana. Nos anos 1950, ensinava violão, ao lado do amigo Carlos Lyra, em uma quitinete da rua Dias da Rocha. Certa noite, interrompeu uma aula ao ouvir o tilintar da campainha. Ao atender a porta, quase caiu para trás. Era Tom Jobim. Por indicação de João Gilberto, de cama por causa de uma febre alta, queria convidar Menescal para gravar a trilha de Orfeu negro, adaptação cinematográfica da peça Orfeu da Conceição, outra parceria com Vinicius.

Convite aceito, a gravação durou mais de três horas. Já de madrugada, Tom quis falar de cachê. Menescal, porém, não deixou: “Imagina se eu vou cobrar para tocar com você!”, protestou. Sem graça, Tom chamou Menescal para jantar. Entre uma garfada e outra, perguntou: “O que você faz da vida?”. “Vou fazer vestibular para arquitetura”, respondeu Menescal. “Ou prestar concurso para o Banco do Brasil”. “Ué, mas você não quer ser músico?”, insistiu. “Quero!”, garantiu. “Então, deixa de bobagem e seja músico!”, foi o conselho que Roberto Menescal ouviu de Tom Jobim naquela noite. Um dia depois, ele chamou o pai para conversar. Seu Francisco – coitado! – quase teve um infarto ao ouvir a notícia. “Se não fosse o conselho do Tom, eu teria sido arquiteto ou bancário. Já imaginou?”, brinca Menescal que, em 1962, quase recusou um convite do Ministério das Relações Exteriores (MRE) para tocar no Carnegie Hall, em Nova York. Motivo? Tinha uma pescaria em Cabo Frio. Só mudou de ideia por insistência de... Tom Jobim! “É o meu guru”, define, brincalhão.

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