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Acervo da Laje: educação para a beleza e memória para o futuro

Em entrevista ao site do Itaú Cultural, José Eduardo Ferreira Santos, um dos criadores do projeto, fala da história dessa casa-museu-escola e da participação no Transversalidade da Memória

Publicado em 29/12/2021

Atualizado às 17:33 de 14/02/2022

por Heloísa Iaconis

Aos 13 anos, José Eduardo Ferreira Santos tomava conta de uma casa onde havia diversos discos – entre eles, álbuns de Clementina de Jesus e Caetano Veloso. De Caetano, por exemplo, ouviu “Sampa” e pensou: “Estou vivo”. O mesmo se deu ao escutar, tempos atrás, “Quando você olha pra ela” na voz de Gal Costa. E é essa potência, essa certeza inspiradora de existir, que José Eduardo, junto com Vilma Santos, busca por meio do Acervo da Laje. O casal de pedagogos criou, em 2010, essa casa-museu-escola no bairro de São João do Cabrito (região situada no Subúrbio Ferroviário), em Salvador (BA). Trata-se de um espaço museal que olha para a poética da periferia soteropolitana a partir de uma curadoria afetiva e voltada para todos os públicos, reunindo obras de artistas invisibilizados.

José Eduardo e Vilma em 2015 | foto: acervo pessoal

Tendo como norte tanto o direito de todos à beleza quanto a ideia de que as recordações são formas de construção do amanhã, os educadores participam do Transversalidade da Memória (fórum on-line, criado pelo Itaú Cultural (IC), para conectar pessoas que realizam projetos no campo da memória), oportunidade de romperem com certa solidão que, muitas vezes, trabalhadores da cultura sentem – ainda mais na pandemia. Dessa experiência, das histórias (sua e do Acervo da Laje) e da sensibilidade de mundo é feita a entrevista que José Eduardo concedeu ao site do IC. Confira abaixo a conversa, cujo ritmo vem todo de um samba de Cartola: “Continuam nossas lutas / Podam-se os galhos / Colhem-se as frutas / E outra vez se semeia”.


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Conheça e participe do Transversalidade da Memória
Assista ao vídeo do lançamento do Transversalidade da Memória (2020)
Acesse o site do Acervo da Laje


Quem é José Eduardo Ferreira Santos?

Filho de José Silva Santos e Maria Helena Ferreira Santos, nasci no Subúrbio Ferroviário de Salvador, no bairro de São João do Cabrito, há 47 anos. Desde menino, sou bastante integrado ao território, já que os mais velhos sempre cuidaram de mim e me atribuíam tarefas (cuidava de plantas, mariscos, peixes). Na década de 1990, completei o magistério, momento em que conheci Vilma. Depois, cursei pedagogia e percebi que os meus alunos estavam sendo assassinados. Quis, então, entender o que estava acontecendo. Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), no mestrado em psicologia, analisei travessias de adolescentes. No doutorado, pesquisei saúde pública para entender os homicídios entre os jovens. Na banca, ao término da tese, o professor Gey Espinheira me disse: “Está na hora de você parar de estudar violência e estudar beleza”. E foi o que fiz.

Como surgiu e cresceu o Acervo da Laje?

Vilma e eu gostamos de pensar o território: sempre guardamos recortes de jornais, livros, negativos, dissertações e teses que abordam essa terra. Em 2010, compramos as primeiras obras de artistas como Almiro Borges, Otávio Bahia e Dona Coleta de Omolú. A essa altura, uma jornalista me perguntou: “O que isso está se tornando?”. Respondi: “Está se tornando o Acervo da Laje”. Pronto: daí em diante, tudo aconteceu. Há vários talentos aqui no Subúrbio que não têm visibilidade. Mais de 22 bairros, mais de 500 mil habitantes, e muita coisa foi apagada. Começamos a comprar obras, encontrar material em descartes (tijolos antigos, quadros, conchas) e receber doações.

No ano seguinte, fizemos a primeira exposição, ao lado da Casa 1 (um local de duas lideranças da comunidade). Em 2014, estivemos presentes nas bienais da Bahia e de São Paulo e erguemos a Casa 2, onde ocorrem oficinas, bate-papos e mostras temporárias. É também onde moramos. Em 2016, passamos a nos envolver com editais, o que nos possibilitou fazer duas edições do Ocupa lajes, série de encontros com artistas da região. Já na pandemia, nós nos concentramos no cuidado interno: ganhamos um edital do Instituto Goethe para a reestruturação das duas casas. Fora isso, desenvolvemos o Acervo da Laje Digital, o nosso site, com a digitalização de mais de 300 obras. E fomos convidados para uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio): A memória é uma invenção, em cartaz até 6 de fevereiro de 2022.

Rua dos Ferroviários | foto: Acervo da Laje

O que é a arte para você?

Eu venho da violência. Quando se estuda a violência, você sabe que existe o estado dado das coisas. No entanto, como direcionar a imaginação para além da crise violenta? Como pensar novas possibilidades de futuro? Com a arte. A arte, para mim, corresponde a um fator de elaboração muito importante. Ela nos desloca, nos emociona e quebra o vínculo cíclico com a violência e a opressão. Nesse sentido, o trabalho do Acervo da Laje é preventivo: se crianças e jovens tiverem experiências estéticas em seus territórios, eles irão se abrir para o mundo, para a beleza (que tem a ver com o movimento de criação) e para a memória (que não é algo passadista, mas sim um mosaico que nos permite construir o futuro).

Obra de Otávio Bahia (coleção Máscaras) | foto: Acervo da Laje 

Falando em futuro: o que você e Vilma desejam para o Acervo da Laje?

Queremos fazer um roteiro afetivo do Subúrbio Ferroviário pautado pela arte, um conteúdo que seja voltado para as crianças, para as escolas, a fim de que as novas gerações possam ter outras referências da periferia (não as que a grande mídia de Salvador traz). O Acervo da Laje olha para a poética da periferia, porque pisamos esse chão e entendemos que isso não é banal. É criação, arte, a flor no asfalto. Propomos outros modos de ver essa terra e de compreender o espaço de um museu (uma ideia distinta do encastelamento). Desejamos também firmar parcerias para que consigamos prestar mais atenção em questões de arquivologia e tratamento de obras. E que, no futuro, outras pessoas cuidem do projeto quando não estivermos mais aqui e percebam que, como canta Paulinho da Viola, “a vida não é só isso que se vê / É um pouco mais”.

Subúrbio Ferroviário de Salvador | foto: Acervo de Laje

Como tem sido participar do Transversalidade da Memória?

O Transversalidade da Memória é uma provocação imensa para que a gente se pense como fazedores de memórias e reflita acerca da multiplicidade de acervos e iniciativas existentes no Brasil. Para que essas discussões sejam descentralizadas. Representa um luzeiro, uma chance de sairmos de certa solidão da pesquisa e da criação artística e conversarmos e nos enchermos de ânimo.

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