Sua obra já deu origem a peças, filmes e canções. Estudiosos tentam explicar a razão de tanto sucesso
Publicado em 05/08/2020
Atualizado às 19:38 de 09/12/2022
[Este texto integra uma série de conteúdos pensados pelo Itaú Cultural (IC) para celebrar a Semana da Cultura Nordestina.]
por André Bernardo
Em 1965, quando resolveu montar o espetáculo Perto do coração selvagem, o ator, diretor e dramaturgo Fauzi Arap (1938-2013) talvez não fizesse ideia de que estava prestes a inaugurar um novo segmento: o das transposições cênicas da obra de Clarice Lispector (1920-1977). Pela primeira vez, um texto da autora era encenado no teatro. E, embora o título fizesse alusão ao seu romance de estreia (1943), a peça reunia trechos de outras obras, como A paixão segundo G.H. e A legião estrangeira, ambas de 1964. A temporada no teatro Maison de France, no Rio, durou pouco: apenas dez apresentações. No entanto, contou com uma espectadora para lá de especial: a própria Clarice, que assistiu ao espetáculo e, após a sessão, conversou com o elenco. Em 2002, Arap voltou a adaptar um texto de sua autora favorita: A paixão segundo G.H., dirigido por Enrique Diaz e interpretado por Mariana Lima.
“São muitos os sentimentos que uma boa montagem clariceana desperta no espectador: reflexão, estranheza, perplexidade”, afirma André Luís Gomes, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Clarice em cena: as relações entre Clarice Lispector e o teatro (2007). “E a única peça teatral escrita por Clarice, A pecadora queimada e os anjos harmoniosos (1948), também reúne essas provocações. A personagem principal não tem nenhuma fala, mas diz muito o tempo todo.”
Quando concluiu seu doutorado, em 2004, Gomes contabilizou 18 adaptações para o teatro, quatro para o cinema e três para a televisão. Hoje, admite não ter um número exato. “Clarice é encenada continuamente”, explica. Clarisse Fukelman, uma das maiores especialistas na escritora do país, que o diga. Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), já assinou três transposições para os palcos: A hora de Clarice, dirigido por André Paes Leme e Ana Kfouri; A vida íntima de Laura, voltado para o público infanto-juvenil, e Ao redor da mesa, suspensa após seis apresentações no SESC Copacabana, no Rio, por causa da pandemia.
“Não se deixar intimidar pela obra de Clarice é apenas um dos desafios. Outros são ter clareza do que se pretende apresentar ao público e mostrar a atualidade de sua obra”, acrescenta a professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). “Embora insistam em colar uma etiqueta de difícil e impenetrável em Clarice, ela dialoga com o Brasil do ano 2020. Temas como fome, violência e discriminação estão presentes em sua literatura.”
Clarice Lispector é tão atual, mas, tão atual que, adverte o ator e diretor teatral Eduardo Wotzkik, já foi vítima até de fake news. Criador do espetáculo Missa para Clarice – Um espetáculo sobre o homem e seu Deus, que já completou 300 apresentações e foi visto por mais de 70 mil espectadores, Wotzik pondera que é preciso cuidado para não banalizar sua literatura e cita o exemplo das redes sociais, que “tentam minimizar a profundidade de sua obra”.
“Em seu nome, postam centenas de frases de autoajuda que ela jamais escreveu”, alerta. Nos últimos quatro anos, Wotzik já se acostumou a ouvir do público frases do tipo: “Nossa, como ela pode expressar de maneira tão perfeita o que nem eu mesma sabia que sentia?”. “Clarice nos eleva a um patamar diferenciado de sensibilidade, nos obriga a ser mais humanos e nos mostra que, quando chegamos perto do que achávamos ser o infinito, um novo infinito se revela”, filosofa.
No teatro, a autora já inspirou de musicais a espetáculos de dança
A exemplo de Wotzik, a atriz Ester Jablonski também já teve a chance de encenar o espetáculo Silêncios claros nos mais diferentes lugares: de teatros de arena a salas de aula, de palcos italianos a sessões ao ar livre. No monólogo que estreou em 2012, Jablonski dá vida a quatro contos de Clarice: “O grande passeio”, “Uma tarde plena”, “A fuga” e “Uma galinha”. “O espetáculo é um organismo vivo, pulsante. Da luz à cenografia, tudo se modifica. É um autêntico ‘work in progress’. A escrita de Clarice atinge públicos de todas as idades e classes sociais”, garante.
Além de inspirar espetáculos solos como os de Wotzik e Jablonski, a obra clariceana deu origem a outros formatos, como o musical A hora da estrela ou o canto de Macabéa, dirigido por André Paes Leme e protagonizado pela atriz Laila Garin, ou o espetáculo de dança Horas perigosas, encenado pela Mosaico Companhia de Dança Contemporânea, de Viçosa (MG). “Clarice é uma escritora inquieta e inquietante, que convida o espectador a embarcar numa jornada rumo ao desconhecido”, afirma a bailarina e diretora artística Alba Vieira. “Certa vez, no teatro Cacilda Becker, no Rio, uma espectadora, sentada na primeira fileira, chorou do início ao fim do espetáculo. Terminada a sessão, ela veio conversar comigo e, ainda emocionada, disse: ‘Sempre quis ser escritora, mas meu marido não deixou’. Clarice é assim: capaz de provocar um turbilhão de emoções”, relata Alba.
E não só em quem assiste, mas também em que faz o espetáculo. É o que garante a atriz Rita Elmôr que, por duas vezes, já levou a vida e obra de Clarice para os palcos: em 1998, quando montou Que mistérios tem Clarice e, em 2015, quando encenou Clarice & eu – O mundo não é chato. “A Clarice consegue tocar fundo nas pessoas. Eu mesma me transformo a cada apresentação. Nunca saio da mesma maneira que entrei. Saio do teatro entusiasmada com a vida. E achando que vale a pena viver intensamente”, explica a atriz.
Sua semelhança física com Clarice é tanta que, por ocasião do primeiro espetáculo, ela chegou a ter fotos suas, caracterizada como a personagem, confundidas com fotos da escritora e, pior, publicadas em jornais e revistas. Por outro lado, rendeu um convite do carnavalesco Leandro Valente para interpretar Clarice no desfile da Tradição no Carnaval de 2021. “Clarice é sinônimo de coragem e ousadia. Passou a vida se buscando. Essa busca é universal e atemporal. É a busca de todos nós. O que torna a autora tão popular é a sua coragem de não querer ser popular”, diz Rita.
Macabéa deu o Urso de Prata de melhor atriz para Marcélia Cartaxo
Não demorou muito para a obra de Clarice Lispector migrar das páginas dos livros para as telas de cinema. Em 1984, o cineasta José Antônio Garcia (1955-2005) filmou A estrela nua e, no ano seguinte, Suzana Amaral (1928-2020) adaptou A hora da estrela. Para interpretar Macabéa, a diretora escalou uma jovem atriz paraibana de 19 anos, que conheceu na peça Beiço de estrada. Em seu primeiro papel no cinema, Marcélia Cartaxo ganhou o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim, em 1986. Quando ligou para Cajazeiras, distante 470 quilômetros de João Pessoa, e contou a boa nova para sua mãe, levou uma bronca: “Traga o urso para cá, que te dou uma surra”, bradou, do outro lado da linha. “Tá uma seca danada aqui. Não tem grama nem para cabra, quanto mais para urso”. “A hora da estrela é o retrato do Brasil. O livro fala de uma ferida difícil de cicatrizar: a desigualdade social. É um livro muito atual. Parece que Clarice escreveu ontem”, diz Marcélia.
Dos livros escritos por Clarice Lispector, A hora da estrela (1977) é o favorito do ator Antônio Fagundes. “Até por ser o último, é o que apresenta sua melhor técnica. Um livro cheio de amor e compaixão pela humanidade”, analisa. Em 1991, Fagundes foi convidado pelo cineasta José Antônio Garcia, o mesmo de A estrela nua (1984), para atuar em O corpo, uma livre adaptação de A via-crúcis do corpo (1974). Até hoje, quase 30 anos depois, o ator não se esquece de uma cena em particular: a do enterro de Xavier, seu personagem. “O diretor queria que filmássemos a cena à noite. Tive que ficar deitado lá, a noite inteira, no chão frio, tomando chuva. Fazia um frio desgraçado. Por pouco, não peguei uma pneumonia”, graceja o ator que, anos depois, foi convidado a fazer a narração do áudio-book do mesmo livro.
Qual será o mais ‘infilmável’ dos livros de Clarice?
No centenário da escritora, mais dois longas-metragens estavam previstos para estrear: O livro dos prazeres, escrito e dirigido por Marcela Lordy e protagonizado por Simone Spoladore, e A paixão segundo G.H., roteirizado por Melina Dalboni e dirigido por Luiz Fernando Carvalho. “Até hoje, personagens femininas ocupam um lugar secundário nas tramas narrativas. Na obra de Clarice, não. As mulheres têm vez e voz”, afirma a diretora e roteirista Marcela Lordy.
Da concepção do projeto à finalização do filme, ela levou dez anos. Neste período, o roteiro passou por incontáveis tratamentos e contou com diversos profissionais, como a argentina Josefina Trotta. “Não sei se Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) é o mais ‘infilmável’ dos livros de Clarice. Há piores, como Água viva (1973). Meu filme não é ipsis litteris, mas uma livre adaptação para os dias de hoje”. No posfácio que escreveu para a nova edição de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, que será relançado em breve pela editora Rocco, Lordy observa: “Nesse livro otimista, Clarice abre uma exceção em sua obra e torna o amor possível. Estamos diante de um final feliz, ou melhor, de sua primeira história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e de chuva caindo”, redigiu.
No caso de A paixão segundo G.H., Dalboni prefere chamar seu trabalho de “reescrita cinematográfica”. “O romance tem poucas cenas de ação e um mergulho vertical no fluxo de consciência da protagonista. Essa característica, que seria a maior dificuldade de transpor o livro para o cinema, é também o que o torna fascinante”, explica. Para dar vida à protagonista, Luiz Fernando escalou a atriz Maria Fernanda Cândido, com quem tinha trabalhado na microssérie Correio feminino, baseada no livro homônimo (2006) de Clarice e exibida no Fantástico, em 2013. Maria Fernanda “conheceu” Clarice em 1993 quando, aos 19 anos, leu A hora da estrela.
Dez anos depois, foi o próprio Luiz quem lhe presenteou com um exemplar de A paixão segundo G.H. “Foi um acontecimento desorganizador”, resume. Mais alguns anos se passaram até que, em 2017, o diretor telefonou para a atriz e a convidou para dar vida a G.H. “Hoje, me pergunto se a minha preparação para esse filme não começou lá atrás, quando eu tinha 19 anos”, especula a atriz. O “laboratório” incluiu, ainda, a leitura compartilhada do livro e um ciclo de palestras com Nádia Battella Gotlib, José Miguel Wisnik e Yudith Rosenbaum. Terminada as filmagens, o que fica de G.H.? “Um pouco mais de coragem para estar presente em cada instante a ser vivido”, responde Maria Fernanda.
A primeira estátua feminina do Rio de Janeiro é a de Clarice
Se depender de Ricardo Hofstetter, as comemorações pelo centenário de Clarice não devem terminar tão cedo. Depois de assistir ao espetáculo Clarice & eu – O mundo não é chato, escrita e encenada por Rita Elmôr, o roteirista teve a ideia de escrever uma comédia sobre um fã ardoroso da escritora que acaba se apaixonando pela “falsa” Clarice. “Quando ela começou a escrever, a literatura era dominada por homens. Mesmo assim, conseguiu se estabelecer como uma autora respeitada. Ela revolucionou a literatura brasileira, escrevendo romances sobre o ‘nada’. Seus livros praticamente não tinham trama. Tudo muito psicológico. O interessante é que, no meio deste ‘nada’, emergem frases incríveis que levam você a voos altíssimos”, afirma o roteirista.
Além de peças e filmes, a obra de Clarice Lispector já inspirou canções (Clarice, de Caetano Veloso), telenovelas (Laços de Família, de Manoel Carlos) e até uma estátua. A obra é assinada pelo escultor Edgar Duvivier e fica no Leme, na Zona Sul do Rio, onde Clarice viveu seus últimos anos de vida. Em 2016, Duvivier foi chamado pela prefeitura do Rio para esculpir uma estátua em homenagem à moradora mais ilustre do bairro. Faltou só um detalhe: acertar o pagamento. Sobrou para Edgar que, na falta de patrocínio, esculpiu 40 maquetes e as colocou à venda por R$ 2.500,00 cada. “Para minha surpresa, consegui vender todas as 40 maquetes em 15 dias”, espanta-se. As surpresas não pararam aí. Além de esculpir a escritora, Edgar esculpiu também Ulisses, seu cão de estimação. “Quando os cachorros passam pela estátua, começam a latir. Tem uns que ameaçam até morder o Ulisses. Minha obra é apreciada até por cachorros”, diverte-se.
Contudo, e a obra de Clarice Lispector, qual é a razão de tanto sucesso? “A razão do sucesso de alguém é sempre algo misterioso. Se soubéssemos dizer o que faz sucesso, ninguém cometeria um fracasso. O mais justo é dizer que Clarice faz sucesso porque escreve bem. E porque é uma pessoa querida. Clarice não é do tipo: ame ou odeie. Todos adoram Clarice. Ouso dizer que é uma unanimidade”, arrisca Duvivier.