Apoiado pelo “Rumos Itaú Cultural”, o livro conquistou o Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2022
Publicado em 21/01/2023
Atualizado às 08:37 de 10/05/2023
1320 páginas representam um volume considerável. No caso de siameses (2021), porém, não se trata apenas de papel em quantidade: o tamanho significativo mais se relaciona com a grandeza do entrelaçamento de personagens que carregam, em simultâneo, todos e ninguém. A potência de cada extremo, portanto, aviva a trama de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, texto capaz de aproximar opostos. Tudo por meio de uma conversa de amigos, Osmar e Procópio de papo e prosa. O projeto, ganhador do Prêmio Literário Biblioteca Nacional na categoria romance em 2022, contou com o apoio do Rumos Itaú Cultural (edição 2015-2016) e corresponde ao mote da entrevista a seguir. Antonio Geraldo, além de comentar a respeito da obra em foco, aborda assuntos como o ofício da escrita ‒ tarefa que, para ele, está mesmo no domínio do reescrever. E o artista ainda mostra que bem sabe o peso de cada letra ‒ do uso costumeiro das minúsculas ao emprego das maiúsculas necessárias (Cultura, Fortuna, Dignidade). Tudo em uma conversa de amigos, ele e você de papo e prosa. Confira.
Como surgiu a ideia do livro siameses?
Após publicar o romance as visitas que hoje estamos (2012), em que trabalhei um conjunto de vozes conformando um painel multifacetado da sociedade brasileira, imaginei o inverso, uma única voz que pudesse dar conta de nossa totalidade fraturada, como costumo dizer. Logo, o livro siameses é uma espécie de espelho do meu primeiro romance, revelador de um rosto que carrega, em seus traços, a inacreditável história das personagens e, ao mesmo tempo, as feridas e cicatrizes do nosso país.
Como se dá o seu processo de escrita?
Gosto de escrever pelas manhãs, na minha biblioteca, que fica do lado de fora da casa. A proximidade dos livros e o silêncio contribuem para a concentração. Costumo também fazer anotações de ideias nos mais diferentes momentos. Em uma fila qualquer, no supermercado, durante um filme ou uma leitura. Chego a parar o carro para anotar, quando dirijo. Depois, trabalho esses rabiscos. Releio e reescrevo muito, a ponto de parecer que as frases brotaram prontas. Escrever é reescrever.
Dia desses, por exemplo, sonhei com um poema. No sonho, gostei bastante das estrofes. Acho que acordei, porque pensei em me levantar e anotá-lo, como de praxe. Não o fiz, tão realizado estava. Tinha certeza de que, pela manhã, seria fácil transcrevê-lo. Ao acordar, porém, não me lembrava de nada. Nem um verso, nem o tema, o assunto, ao menos. Um vazio. E aquele arrependimento enorme. Por que não me levantei, poxa? Agora, suponho que, talvez, tudo não passasse de um pesadelo, isso sim, disfarçado de realização inalcançável, pavor ‒ e desejo? ‒ de todo artista...
Por que um romance? E por que de fôlego enciclopédico?
O romance é o gênero que me proporciona maior liberdade. Com algum exagero, é o gênero em que se pode tudo. Ou quase tudo, vá lá. O que significa, paradoxalmente, a maior das impossibilidades. Explico-me: o romance resguarda em potência aquilo que não se pode dizer. E que, por isso, deve estar presente de modo subterrâneo, em camadas insuspeitas, postas e sobrepostas.
O caráter enciclopédico da obra se liga ao que comumente se diz a respeito dessa classificação, claro, mas também ‒ e, quero crer, principalmente ‒, ao fato de que siameses esgarça e arrebenta o fio do tecido que prende um narrador que se vê, de jeito obsessivo, como um joão-ninguém, operário da indústria nacional, perdido numa pequena cidade do interior, no fiofó do mundo, como ele mesmo diz. Ou diria.
A partir da visita de Procópio, Osmar procura reconstruir sua vida, entender o caso amoroso de Tomás, um amigo muito, muito próximo, em um possível quadrilátero amoroso que termina de forma trágica, incompreensível, enquanto tudo e todos são sufocados por um pano de fundo que recobre as pessoas, a sociedade, e, até mesmo, a história do leitor, de repente também personagem do livro que lê, habitante daquela cidadezinha qualquer.
Nessa toada, para ir adiante, ao contrário do que se poderia supor, o caráter enciclopédico está disposto como miniatura inapreensível de vidas bem brasileiras. Os leitores com quem conversei me disseram que se divertiram. E que se assustaram ainda mais... Enfim, o difícil não é criar um romance enciclopédico, mas costurar, de maneira inusitada, fundo e profundo, as bugigangas ajuntadas. Quase usei aqui a expressão “com pontos falsos”. Mas vi que haveria nela um certo preciosismo descritivo, não acha?
Como você caracteriza Osmar, Rebeca, Tomás, Azelina e Procópio?
Sem querer dar spoiler, como a conjunção trágica de todos em um. E a diluição aos poucos de todos em ninguém. Isso vale para mim, evidentemente, mas também para você, viu?
Quais Brasis há em siameses?
Boa pergunta. Nos momentos de crise, revisitamos o passado. É um movimento de busca que revolve a matéria, da qual a arte se constitui, para expor as raízes de sua configuração problemática. Quem não vê a saída cava um buraco, não é assim? E todo buraco é fuga e cova...
O livro conduz essa procura de extremos de gritante paroxismo, quando expõe a barbárie histórica como fundamento e chegada, matriz e objetivo da condição humana, brasileira, individual. Em outras palavras, como se estivéssemos a ensaiar, a contrapelo, exaustivamente, o ponto-final da espécie, do país, do sujeito. Todos os Brasis num Brasil nenhum.
Por que o uso das letras minúsculas?
Sim, uso as minúsculas há muito. Tive a ideia antes dos anos 1980, com 13, 14 anos, um moleque... O meu primeiro livro, de 2003, peixe e míngua, já era todo escrito em minúsculas.
No lançamento, um fato pitoresco: ora ‒ disse para um parente, senhor inconformado com a palavra “deus” em letras miúdas ‒, vivemos um mundo minúsculo, um tempo menor, de seres diminutos, de mesquinhez, de cumuladas perdas... Tudo, tudo minúsculo. Até as conquistas e vitórias ‒ sempre minúsculas, definhadas ‒, são termos desprovidos de sentido e, em breve, desaparecerão da vida, da língua, e, por fim, dos dicionários, o senhor vai ver. Sobrou até para deus, entende?
Respondeu com um “ah, entendi”. Foi educado, acho. Maiúsculas... Que engano cometemos!
Fale um pouco sobre o Rumos Itaú Cultural: de que forma o edital colaborou para a realização da obra?
O Rumos é um programa importantíssimo para a Cultura brasileira. Tem de servir de exemplo para outras empresas, concorda? Apenas a Cultura, em todas as suas formas, do popular ao erudito, oferece as ferramentas para o constructo do que se entende por civilização. Do contrário…
Particularmente, sem o apoio do Rumos, tenho certeza, não teria mergulhado em siameses. Não teria o livro pronto até hoje. Talvez, nem mesmo o terminasse. Sou grato ao Itaú Cultural.
Em 2022, o livro ganhou o Prêmio Literário Biblioteca Nacional. Como você recebeu essa notícia?
Com alegria. Um prêmio importante. Machado de Assis, né? Já que comecei com um causo, lá atrás, aqui vai outro. Recentemente, a professora e crítica literária Flora Süssekind afirmou, em uma live, de maneira elogiosa, o que muito me envaideceu, que sou autor que não escreve para ganhar prêmios. Sim, existem fórmulas, trejeitos e ademanes que alguns artistas invocam ‒ e arremedam ‒ para alcançar o sucesso e responder, aos berros, de forma às vezes até inconsciente ‒ quero acreditar nisso ‒, às imposições do mercado. Comigo, não, Algoritmo. Xô, xô, Tinhoso!
Não posso negar que fiquei contente ao ouvi-la, confesso. O prêmio da Biblioteca Nacional, para a minha surpresa, veio pouco depois. Uma felicidade saber que há júris que enfrentam as obras sem pesquisar antes o nome dos autores no Google, sem olhar a casa editorial, os modismos, coisas assim... Tive também sorte, creio. Não sei quem foram os jurados do prêmio, mas agradeço-lhes aqui, publicamente, o fato ‒ em teoria, lógico ‒ de lerem o meu livro. Tenho para mim que um dos sobrenomes da Fortuna deva ser este: Dignidade.
Por que continuar escrevendo?
A pergunta me lembra do famoso e sempre citado conto de Kafka, “Um artista da fome”. Deitado na jaula, pouco antes de morrer, ele confessa que jejuava até o fim, pois não encontrara alimento que lhe agradasse. E que, se o tivesse encontrado, teria se empanturrado dele, sem nenhum alarde.
O que você está lendo agora?
Gosto de ler mais de um título ao mesmo tempo. Penso que essa prática seja salutar para o escritor. Ao saltar de um livro para outro, os nexos, o afastamento, a diferenciação aguçam o olhar na direção de aspectos encobertos da vida que, de algum modo, farão parte da minha literatura, entende?
Estou lendo duas divertidas e belas coletâneas de quadrinhos, de Angeli e Laerte. E a Psicologia de massas do fascismo (1933), de Wilhelm Reich.