Uma das mulheres indígenas à frente da Cátedra Olavo Setubal em 2023-2024, Arissana fala ao Itaú Cultural sobre valorizar o saber indígena e construir um futuro
Publicado em 29/04/2024
Atualizado às 16:14 de 29/04/2024
por Duanne Ribeiro
Ensino que é pesquisa que é arte que é pesquisa que é ensino. Na trajetória de Arissana Pataxó – artista visual, doutoranda em artes visuais pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e professora –, essas áreas do conhecimento e da prática se mesclam, brotam da mesma fonte: a vivência e a valorização dos saberes indígenas. Nesta conversa, feita por ocasião da posse de Arissana como titular da Cátedra Olavo Setubal – ao lado de Francy Baniwa e Sandra Benites, também pesquisadoras –, ela fala sobre a sua trajetória, sobre os sentidos da pesquisa, sobre autonomia e educação e sobre como a universidade pode tanto fortalecer a ciência própria dos povos originários quanto ser transformada por ela.
O caminho ao Caminho da cutia
A proposta de que a cátedra, em 2023 e 2024, tivesse à frente três mulheres indígenas foi crucial para que Arissana aceitasse o posto: “Acho isso superimportante, principalmente para a gente pensar um trabalho dialogado, com mais pessoas, [em vez de] estar só num lugar desse”. Juntas, as catedráticas propuseram o projeto Caminho da cutia: territórios e saberes das mulheres indígenas: “Por sermos mulheres, resolvemos trazer a questão do saber e do conhecimento das mulheres como algo para ser compartilhado, dialogado, pesquisado”. São saberes – ressalta Arissana – muitas vezes apropriados pela academia e por empresas, mas “muitas dessas mulheres não são valorizadas como deveriam”.
Mesmo entre os indígenas haveria essa necessidade de valorização, indica a entrevistada. Isso porque são saberes que “as mulheres indígenas carregam no seu dia a dia, no seu trabalho, no seu caminhar, no lidar com o parto, no ensinamento dos mais jovens” e que “acabam ficando com as pessoas mais velhas”, a juventude os negligencia, “sempre acha que o novo é o que está no meio digital, ou é o que vai passar no jornal, ou é o que está dentro das academias”. Caminho da cutia propõe captar essa atividade em várias áreas: na academia, na roça, no auxílio ao parto, na educação, na política, nas artes etc.
O escopo do projeto não é multifacetado apenas pela variedade de áreas de atuação, pois a própria mulher indígena já é uma diversidade. Arissana pondera que “cada aldeia, cada povo tem sua particularidade em relação à mulher”, isso no sentido das redes de apoio a que têm acesso (se podem deixar os filhos com parentes ou em creches, por exemplo), das suas perspectivas de estudo e profissão e dos espaços que podem ocupar. De toda forma, parece haver, no geral, avanços: “A mulher vem ganhando força para poder sair para estudar e para liderar. No caso do povo Pataxó, elas têm ocupado espaços que antes eram ocupados, em sua maioria, por homens – a gente vê mulheres como cacicas, elas estão à frente de alguns movimentos, de associações, de cooperativas”.
O que é ser pesquisador?
Aproximar-se da ciência indígena indicada por Arissana pede uma abordagem delicada, na medida em que traz informações que “a gente não vai encontrar nos livros. Claro que há livros indígenas – no caso do povo Pataxó, isso está começando a ser feito –, mas isso é muito raro”. Ela dá exemplos: “’Vou falar sobre a profissão das artes Pataxó’ – isso não vai estar escrito em nenhum livro. ‘Vou falar como se faz o plantio da roça de mandioca’ – não vai estar escrito como o povo Pataxó faz. São conhecimentos que a gente precisa buscar, e claro que hoje já tem bastantes pesquisadores indígenas, professores, que têm trazido bastante conhecimento; e isso tem aumentado esse registro”.
Essa é uma perspectiva que Arissana carrega desde o início de sua trajetória profissional. Quando começou a ser professora, aos 19 anos, aderiu ao “lema, vamos dizer assim, de que ser professor indígena é ser professor pesquisador”. Isso porque ensinar nas aldeias implica, para além do material curricular oficial, conhecer a tradição do povo em que se coloca o educador. “Preciso ser pesquisadora do meu próprio povo”, afirma ela, “preciso ter conhecimento da minha própria comunidade, dos meus próprios princípios, para poder fortalecer isso com os meus alunos. Ser pesquisador é isso”.
Duas formas de pesquisa e a arte
Quanto à pesquisa, no sentido de uma prática realizada em contexto acadêmico, Arissana iniciou nessa seara após a graduação em artes visuais, feita entre 2005 e 2009, na Ufba, com o mestrado em estudos étnicos e africanos pela mesma instituição, concluído em 2012. A dissertação, intitulada “Arte e identidade: adornos corporais Pataxó”, segundo ela, “foi um trabalho de campo, uma pesquisa etnográfica, no campo da antropologia”. “Eu me foquei nos adereços do povo Pataxó, que são o que a gente usa para cobrir ou enfeitar o corpo, que trazem nossa identidade – cocar, brincos, pulseiras, tornozeleiras, bustiê, tanga.”
Agora no doutorado, continua ela, “me arrisco, vamos dizer assim, a me aprofundar mais na arte do povo Pataxó, não só focando nos adereços, mas na arte em geral”. A pesquisa investiga, segundo ela, o “movimento de transformação da arte Pataxó” sob o impacto tanto da luta pelo território e de questões de sobrevivência quanto das dificuldades de acesso a matéria-prima. Arissana quer identificar as influências positivas e/ou negativas dessa produção, conhecer quem faz e em que situações: “É um pouco falar dessa fluidez que essas artes têm, de como se comportam e de como o povo Pataxó vive com isso”.
E como é transitar entre essas práticas? “Acredito que uma alimenta a outra”, comenta Arissana, “ou se complementam. A pesquisa enquanto professora indígena é aquela em que você passa a se interessar mais pelas questões da própria comunidade. Então, você acompanha a fala de um mais velho com muito mais atenção, às vezes não para registrar em um livro ou artigo acadêmico, mas para guardar na memória, enquanto alguém que pertence àquele povo”. Por outro lado, segue ela, “a pesquisa acadêmica também bebe nessa fonte, porque esse saber que se observou – que não se registrou, mas se guardou na memória – vai conduzir você [quanto a] fontes, [quanto a] com quem conversar, quem tem mais conhecimento e pode querer conversar sobre determinado assunto”.
Ainda a criação artística de Arissana (veja obras dela no Instagram) “bebe nessa fonte”. Para produzir suas obras, diz ela, “preciso conhecer e entender bem o meu povo – a história, as memórias, os conflitos. Minhas obras surgem muito dessa pesquisa de vida”.
A escola como lugar de repressão
Em paralelo à arte e à pesquisa, Arissana manteve sua atividade no campo da educação. Quando era graduanda na Ufba, ela cursou o magistério indígena e participou do Permanecer, projeto voltado para o estudo da linguagem. Também compôs o Observatório da Educação Escolar indígena, que fez – no seu caso, com foco em escolas Pataxó – “um trabalho de investigação ou acompanhamento” que gerou “um relatório com a situação de cada escola em termos de estrutura, de pedagogia, de funcionários, de professores”. Depois, em 2021, ela concluiu outra graduação, em formação pedagógica em artes visuais, e uma especialização em educação indígena, para a qual fez o trabalho “Educação escolar para os povos indígenas: da repressão à valorização dos saberes e costumes indígenas”.
Com efeito, a repressão marca a história da escolarização da população originária, como conta a educadora: “A chegada das escolas em muitas aldeias teve a função de reprimir muitos costumes e, principalmente, a língua dos povos indígenas”. No que se refere aos Pataxó, a questão da língua teria tido um impacto menor pois, na chegada das escolas, esse povo falava português. Mesmo assim, e “apesar de a gente ter grande apreço e respeito pelas pessoas que chegaram aqui na década de 1970 por meio da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], não era uma educação que valorizava e trazia os saberes indígenas para dentro da escola. Tinha como foco principal a escola comum: ensinavam a ler e a escrever e traziam conhecimentos de fora, [sobrepondo-os] ao dos indígenas”.
Esse quadro se altera na década de 1990, com a integração de professores indígenas ao quadro das escolas, o oferecimento de cursos de magistério e o amparo legal às escolas indígenas. Hoje, além do conteúdo “de fora”, transmitem-se conhecimentos próprios do mundo Pataxó, possibilitando, por exemplo, que “os alunos compreendam a sua própria história – a história do povo Pataxó, a história da sua resistência, a história das vidas, a história de apagamento da história do povo Pataxó” – e, nesse sentido, permitindo “desconstruir a história do descobrimento, o que é um ponto focal do nosso território”.
“A escola, hoje, tem um papel superimportante na comunidade”, prossegue ela, “que é preparar os estudantes donos do seu próprio lugar, do próprio ser, do ser Pataxó”. Isso mesmo para saberes que se aprendem, de fato, com a família ou com o grupo: “Ninguém vai, por exemplo, se tornar uma parteira na escola”, mas o fato de essa prática profissional ter espaço institucional a fortalece, “pode fazer com que os estudantes valorizem mais esse saber, tenham até vontade de se aprofundar e, quem sabe, ser, no futuro, parteiras”, aprendendo, aí, “não com a escola, mas com as próprias parteiras”.
O caminho até uma nova geração
Esse movimento de incluir saberes marginalizados em espaços com poder de legitimação é também um dos papéis do Caminho da cutia. “A universidade”, afirma Arissana, “tem esse peso – não que a gente necessite do seu crédito para que os nossos saberes sejam valorizados, mas acredito [que é uma forma de as] pessoas enxergarem o quanto que os conhecimentos que estão circulando por aí – em indústrias farmacêuticas, indústrias de cosméticos, pesquisas acadêmicas – vêm de fontes indígenas. É mostrar que também temos ciência, temos saberes tão importantes quanto os aprendidos na academia”.
Questionada se, em sentido inverso, a introdução desse saber indígena na universidade pode gerar transformações, Arissana crê que isso pode se dar no modo “de se relacionar com os povos indígenas”, combatendo o racismo, o preconceito e discriminação criados pela ignorância do que são essas populações. “Há um rol de pessoas que acompanha, que conhece, que valoriza”, comenta ela, “mas a gente sabe que há uma parcela muito grande da sociedade que ainda nos vê como pessoas à margem, que não devem fazer parte da sociedade, que devem ser isoladas ou que não têm muito a contribuir”.
“Então estar nesse espaço mostra o quanto também fazemos parte dessa sociedade e o quanto somos presentes no Brasil”, continua ela, ressaltando que essa presença se põe apesar do extermínio sofrido por essa população desde 1500. E conclui: “Acredito que é um caminho para nascer uma geração ou se formar uma geração de jovens – e tenho percebido isso – que veem os povos indígenas como alguém com quem caminhar junto”.