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Cabra marcado para morrer: os 40 anos de um clássico nacional

Produzido ao longo de 22 anos, o documentário de Eduardo Coutinho é uma das obras fundamentais do cinema brasileiro

Publicado em 03/12/2024

Atualizado às 14:59 de 05/12/2024

por Luísa Pécora

Muito se falou e escreveu sobre o documentário Cabra marcado para morrer desde que foi lançado nas salas de cinema, há 40 anos, em 3 de dezembro de 1984. Mas tem especial força a declaração dada pelo diretor, Eduardo Coutinho (1933-2014), à pesquisadora Consuelo Lins: “Esse filme foi realmente a primeira vez na minha vida que eu quis fazer alguma coisa. O resto, o que fiz antes, é brincadeira, eu não levo a sério. Não porque não goste, mas porque foi feito com a metade do corpo, com a metade da pessoa. E Cabra, não. Fiz tudo o que podia e que era possível. Eu realmente quis fazer e reuni as condições para fazer”.

Veja também:
>> Ocupação Eduardo Coutinho
>> Entrevistas com Jordana Berg, montadora, e Carlos Alberto Mattos, autor de Sete faces de Eduardo Coutinho, livro apoiado pelo IC sobre o processo criativo e fatura de Coutinho

Esta dedicação de "corpo e pessoa inteira" foi o que possibilitou a realização de Cabra marcado para morrer, o primeiro grande filme de um dos maiores cineastas brasileiros, e que levou mais de duas décadas para ser concluído.

A história de Cabra não começa em 1984, mas em 1962, quando Coutinho viajou ao Nordeste com o Centro Popular de Cultura (CPC), organização ligada à União Nacional dos Estudantes (UNE). Durante a viagem, o diretor soube do assassinato de João Pedro Teixeira (1918-1962), um dos fundadores da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba. E, após filmar um ato público na cidade, ele teve a ideia de fazer um longa de ficção sobre Teixeira, que seria realizado pelo CPC em parceria com o Movimento de Cultura Popular (MCP) de Pernambuco.

Cena de Cabra marcado para morrer
Cena de Cabra marcado para morrer (1984) (imagem: frame do filme)

Foi Coutinho quem escreveu o roteiro do filme, no qual todos os personagens seriam interpretados por camponeses. As filmagens deveriam acontecer na própria região do crime, mas um conflito de terras forçou a transferência para Vitória de Santo Antão, em Pernambuco. A maior parte do elenco foi escolhida entre moradores do Engenho Galileia, e o protagonista, João Mariano, em uma localidade próxima. Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro (e que completará 100 anos em 2025), viajou da Paraíba a Pernambuco para interpretar a si mesma. 

A pequena equipe de Coutinho incluía o assistente de direção Vladimir Carvalho, que também se tornaria um grande nome do cinema brasileiro – e que morreu neste último mês de outubro, aos 89 anos. As filmagens começaram em 26 de fevereiro de 1964, mas foram interrompidas 35 dias depois, com a instauração da ditadura militar. O Engenho Galileia foi tomado pelo Exército, que prendeu líderes camponeses e alguns membros da equipe, além de apreender equipamentos, o roteiro e outros materiais. Coutinho e Carvalho fugiram com Elizabeth, que mais tarde entrou na clandestinidade. Do filme, restaram oito fotografias de cena e a maior parte do negativo filmado – cerca de 40% do roteiro –, que já havia sido enviado para um laboratório no Rio de Janeiro.

Seguir com o projeto durante a ditadura era impossível, mas Coutinho nunca abandonou a ideia de retomá-lo. Em 1979, com a Lei da Anistia, ele sentiu que a hora havia chegado, mas também entendeu que nem ele, nem o Brasil eram os mesmos, e que seria preciso repensar o Cabra de 1964. Sua ideia, agora, era voltar ao Nordeste sem roteiro, reencontrar os camponeses e contar a história – deles e do filme – em um documentário. 

Coutinho localizou as pessoas e realizou a maior parte das novas filmagens em 1981. Gravou primeiro com Elizabeth, que vivia com outro nome no município de São Rafael, no Rio Grande do Norte. De lá, foi para Galileia e filmou a projeção do copião do Cabra original com os camponeses que tinham integrado o elenco. "Naquela noite, já sabia que tinha o filme, tinha certeza, um filme fortíssimo, certeza absoluta”, contou Coutinho, em 1985, ao crítico Alex Viany (1918-1992).

Na entrevista, publicada em O processo do Cinema Novo (Aeroplano, 1999), o diretor disse ter tido uma sensação parecida nas primeiras projeções do longa inacabado: "O filme pegava, porque tinha uma coisa, uma força baseada no fato de que nenhum filme era igual a ele. […] Era uma coisa nova, um filme que se mostra como é e como era anos antes. Acho que isso é que é importante no filme. Não se trata de ser genial. De ser um bom ou mau filme. Sua importância se deve ao fato de o filme ter uma história única. Eu sempre tive confiança, isso era muito forte, entende?”.

De fato, o valor de Cabra marcado para morrer foi imediatamente reconhecido. Premiado no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, no Festival de Berlim, no Cinéma du Réel e no Festival de Havana, entre outros, o filme foi lançado comercialmente nos Estados Unidos e, com o tempo, se solidificou como um clássico do cinema nacional, um “divisor de águas”, nas palavras do crítico Jean-Claude Bernardet. Em 2015, Cabra ocupou a quarta posição na lista dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos divulgada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Em 2023, ficou entre as dez produções mais vistas da Itaú Cultural Play, a plataforma de streaming gratuita do Itaú Cultural. 

Novas possibilidades

Para Consuelo Lins, autora de O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo (Zahar, 2004), a importância de Cabra marcado para morrer é tanto temática quanto formal. De um lado, o diretor recuperou a história de resistência e luta dos trabalhadores de terra do Nordeste dos anos 1960. De outro, combinou diferentes tradições cinematográficas: a narração em off remete ao documentário clássico; as imagens que mostram Coutinho e a equipe em cena aproximam o filme do cinema-verdade francês; e as situações de improviso e a agilidade da câmera se ligam à televisão e aos “cinemas novos” da década de 1960.

Cena de Cabra marcado para morrer
Cena de Cabra marcado para morrer (1984) (imagem: frame do filme)

“Há vários tipos de documentário ali dentro”, afirmou Consuelo em entrevista a esta reportagem. “Coutinho era a única pessoa que podia contar aquela história daquela maneira, e estabeleceu, ali, um novo campo de possibilidade de se fazer documentário.”

As inovações, segundo a pesquisadora, começam logo na cena inicial, que mostra a preparação da projeção do Cabra original aos camponeses no Engenho Galileia. Com essa sequência, o documentário evidencia que não buscará reconstituir a realidade “como ela efetivamente se deu”, mas sim por meio de imagens que se misturam às memórias dos envolvidos. “Para o documentário, foi muito inovador começar com a exibição do filme, com essa coisa do cinema dentro do cinema, essa dimensão reflexiva”, disse Consuelo.

Curiosamente, a cena inicial foi filmada por iniciativa do diretor de fotografia Edgar Moura, quando Coutinho nem estava presente. Mais do que imagem de abertura, ela se tornou um mecanismo de estruturação narrativa, ao qual o filme recorre várias vezes para solucionar um dos grandes desafios da montagem: contar uma história com muitos personagens e que havia sido filmada em três momentos (1962, 1964 e 1981) e cinco estados diferentes (Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, São Paulo e Rio de Janeiro).

“O Edgar Moura teve uma intuição que eu diria que praticamente salvou [o filme], porque abriu uma perspectiva para ele”, afirmou Eduardo Escorel, montador de Cabra, em entrevista à reportagem. “A grande questão era conseguir tornar aquele filme claro: saber se aquilo [que se vê] é Paraíba, Pernambuco ou Maranhão, se é antes ou depois. Poder voltar àquela projeção – que, na verdade, são duas projeções misturadas, mas as pessoas nem percebem – diluiu essa questão. Era a maneira de poder ir e vir no tempo.”

Na ilha

Segundo Escorel, a princípio, Coutinho queria incluir no filme não apenas todos os filhos de João Pedro e Elizabeth Teixeira como também todos os filhos de João Mariano. “Ele queria fazer uma coisa exaustiva, no sentido de completa: falar das duas famílias, das pessoas envolvidas na filmagem e da economia da região”, relembrou. “Um dos aspectos mais trabalhosos da montagem foi conseguir chegar à duração de 2 horas, porque o material, de maneira geral, era todo muito interessante.”

Cena de Cabra marcado para morrer
Cena de Cabra marcado para morrer (1984) (imagem: frame do filme)

Considerando tudo o que foi filmado, inclusive após a montagem ter começado (o processo foi feito ao longo de três anos, com intervalos), o material bruto de Cabra tinha cerca de 13 horas de duração. A reportagem perguntou a Escorel se, ao começar a ver esse material, ele compartilhou da “certeza absoluta” de Coutinho quanto à força do filme. Após pensar um pouco, ele respondeu: “Minha impressão, passados esses anos todos, é a de que ficou claro que o material era muito forte, especialmente a gravação com a Elizabeth e as primeiras gravações com os filhos. Acho que ficou claro, para mim, que ali tinha um filme que era importante que fosse feito. Agora, eu não posso falar pelo Coutinho, mas acho que ninguém envolvido no filme, naquele momento, tinha ideia de que ele iria se transformar no que se transformou, nessa espécie de referência. E referência em vários sentidos – do documentário brasileiro, do período, da história da ditadura vista atrás do cinema. Quando você está fazendo o filme, dificilmente [pensa nisso], porque enfrenta problemas tão comezinhos! Eles não têm nada a ver com a recepção posterior, os aplausos, os festivais, as festas. Você está preocupado [em saber] se está bom ou não, se está comprido ou não, se as pessoas estão entendendo ou não”.

“Mas posso imaginar que o Coutinho tivesse muita confiança no filme”, acrescentou Escorel. "Porque, se não, não teria sido capaz de manter, como manteve ao longo daquele tempo todo, a confiança de que o filme um dia seria terminado.”

Coutinho costumava dizer que tinha convidado Escorel para montar Cabra por acreditar que ele saberia dosar sua presença em cena. Hoje corriqueira, a ideia de um diretor aparecer em seu próprio documentário era uma inovação para o cinema brasileiro da época. E, embora Coutinho entendesse que também era personagem da história, aparecer demais era uma de suas grandes preocupações.

“Ele não queria disputar espaço com as pessoas que estava filmando”, afirmou Escorel. “Mas, quando você via o material, não só a presença dele não era excessiva como, dentro do filme que ele estava fazendo, era absolutamente normal e lógica. Ele estava conduzindo aquele filme, que era sobre a feitura de um filme.”

Ao mostrar Coutinho interagindo com os camponeses e com a equipe, Cabra marcado para morrer também expõe momentos nos quais ele falha como diretor e entrevistador. É marcante, sobretudo, a cena em que ele interrompe o depoimento de João Mariano para se certificar de que não há barulho de vento no microfone. A interrupção faz com que Mariano se retraia, e o diretor fica tentando, a duras penas, recuperar o fluxo da conversa.

Segundo Escorel, a cena era vista como crucial e não se cogitou que ficasse de fora da montagem. “Ninguém queria tirar [do filme], mas havia um certo constrangimento da parte do Coutinho, porque a participação dele é um vexame completo: em poucos segundos, faz tudo de errado que poderia fazer”, disse o montador, sorrindo. “Acho que foi algo que ele aprendeu para a segunda grande etapa da carreira dele: estabelecer outro tipo de interação com os entrevistados, até procurando condições de gravação mais sob controle – interiores, apartamentos, estúdios. Acho que tudo isso vinha, em parte, do trauma da entrevista com o João Mariano. Não podia ter vento no microfone!”

Cinema de encontro

Outros elementos de Cabra marcado para morrer ecoariam no cinema posterior de Coutinho, entre eles a própria ideia de não esconder, e sim explicitar as condições da filmagem. Para Consuelo Lins, Cabra também estabelece uma ligação entre “memória pessoal e memória do Brasil” que se vê em outras obras do diretor. “Os filmes do Coutinho têm essa conexão entre vida particular e vida do país. As histórias estão sempre retomando um mundo anterior e informando o espectador de uma situação maior."

A pesquisadora acredita, sobretudo, que Cabra representa o momento em que Coutinho “se deu conta da força dos encontros”, algo que já vinha vislumbrando em sua experiência no programa Globo Repórter, no qual trabalhou de 1975 a 1984. “Acho que, com o Cabra, o cinema do Coutinho começou a caminhar para filmar os encontros e celebrar a arte do encontro”, disse a pesquisadora. "Tanto que, a partir daí, ele utilizou pouquíssima narração em off, por exemplo.”

Zelito e Eduardo Coutinho na III Semana do Cinema Brasileiro em Luanda, 1986
Zelito e Eduardo Coutinho na III Semana do Cinema Brasileiro em Luanda, 1986 (imagem: divulgação)

O diretor falava da passagem pelo Globo Repórter como essencial para a realização de Cabra, tanto por ter lhe dado condições financeiras para fazer o filme quanto pelos anos de aprendizado profissional e pessoal. Em entrevista ao crítico José Carlos Avellar (1936-2016), publicada em 2000 e reproduzida no livro Eduardo Coutinho (Edições Sesc, 2004), o cineasta lembrou que o programa lhe deu experiência no documentário e permitiu que voltasse várias vezes ao Nordeste.

"Na verdade, foi um vestibular inconsciente para fazer o Cabra”, definiu. "Não era o mesmo assunto, mas eu tinha que conversar com camponeses, sobre qualquer assunto, numa região próxima daquela em que filmei o Cabra, e para mim foi um exercício extraordinário. Eu via as coisas que não iam para o ar, via o que ia, aprendia com os outros, fazendo. Aprendia, sabia das limitações da televisão, mas era uma escola, e aquela agilidade de filmar na televisão me fascinava.

Tanto declarações como essa quanto o próprio longa-metragem mostram que o período entre um Cabra e outro foi de grande amadurecimento para Coutinho. Nas palavras da filósofa Marilena Chauí, publicadas na Folha de S.Paulo em 1984 e também reproduzidas em Eduardo Coutinho, “o filme de 1964 pretendia ser exemplar: épico e pedagógico, lição de política e construção de heróis, lutadores, clara partição entre o bem e o mal, personagens funcionando mais como arquétipos do que como seres humanos reais. Em contraponto, o documentário nos coloca na presença de criaturas de carne e osso, com dúvidas e indecisões, medos e esperanças, meditando sobre o passado e avaliando o presente".

Cena de Cabra marcado para morrer
Cena de Cabra marcado para morrer (1984) (imagem: frame do filme)

Quarenta anos depois, essa espécie de transformação interna do filme contrasta com a realidade de uma sociedade polarizada e pouco inclinada a admitir dúvidas, ambiguidades e contradições, ou a fazer o que Coutinho fazia: ouvir as razões do outro.

Como muita coisa mudou desde 2014, quando o cineasta lançou os últimos filmes que chegou a concluir, A família de Elizabeth Teixeira e Sobreviventes de Galileia, Consuelo Lins se pergunta como ele lidaria com o cenário atual. “É um momento difícil porque, hoje, explicitar nossas contradições ou relativizar questões relacionadas à verdade, tudo isso acaba vindo muito contra a gente. Você tem de ir mais para um lado do ‘pão, pão, queijo, queijo’, se não as pessoas vêm e falam: ‘Está vendo?’”, afirmou.

Ao mesmo tempo, a pesquisadora não tem dúvidas quanto à relevância e atualidade de Cabra marcado para morrer e de outras obras de Coutinho. “É impressionante como os documentários dele resistem, como carregam marcas do tempo em que foram feitos, mas estão sempre dialogando com o presente”, definiu. “A cada vez que você assiste, os filmes estão dizendo outra coisa ou estão dizendo mais. E acho que seria mais importante ainda – se é que isso é possível – exibir o Cabra hoje.”

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