Professor do Insper, o urbanista fala sobre o que significa urbanismo social e comenta o "caso excepcional" de Medellín e outros gestos por uma transformação incremental das cidades
Publicado em 22/12/2020
Atualizado às 15:50 de 19/05/2022
por Duanne Ribeiro
Responsável pela disciplina de casos práticos de urbanismo social da pós-graduação em urbanismo social feita pelo Insper, pelo Itaú Cultural (IC) e pelo Arq.Futuro, o pesquisador Carlos Leite comenta: "Em tese, qualquer urbanismo deveria ser social, porém o que temos visto dificilmente atua de maneira focada e consistente, incremental e transformadora nos territórios de maior vulnerabilidade social". Em oposição a isso, propõe-se uma prática urbanística com essa problemática em vista.
Nesta entrevista, Carlos explica o desenvolvimento da noção de urbanismo social – surgida das experiências em Medellín, na Colômbia – e como essa forma de pensar e produzir as cidades tem se desdobrado no Brasil. Com base nisso, defende: "Precisamos ter políticas públicas, ações coordenadas e integradas, que se territorializam. Sair dos planos grandiosos e meio abstratos e chegar aonde acontece a vida do cidadão, que é no bairro".
Para mais debates sobre urbanismo, vulnerabilidade social, a experiência de Medellín e outros temas – como os impactos da pandemia nas cidades –, veja este ciclo de webinars do Insper.
Como você define o urbanismo social? Neste sentido: na sua disciplina, o tema eram casos práticos de urbanismo social; como foram escolhidos esses exemplos, o que os faz bons modelos dessa prática?
Diria de maneira sintética que urbanismo social é um conjunto de políticas públicas e ações coordenadas de maneira integrada que visam promover cidades mais inclusivas, particularmente pela transformação e pela qualificação de territórios de maior vulnerabilidade, infelizmente tão presentes nas cidades brasileiras.
Estima-se que um em cada cinco brasileiros viva em favelas, comunidades – ou, como prefiro chamar, territórios de vulnerabilidade social. Nas cidades com mais de 1 milhão de habitantes, isso está presente em todas as nossas periferias. Faltam as questões básicas de uma vida urbana qualificada, a começar pelo saneamento básico – pauta que já foi resolvida nos países do Hemisfério Norte há mais de 100, 150 anos. O momento agora da pandemia escancarou para toda a sociedade do Brasil todos esses incríveis dilemas e essa agenda emergencial, ou seja, priorizar a inclusão nas cidades.
Por que se fala de um urbanismo social – haveria urbanismo que não fosse firmado na sociedade? Ou, posto de outro modo, por que foi necessário distinguir esse campo do urbanismo tomado de forma geral?
Excelente questão. Em tese, e falo isso sendo um urbanista – sou urbanista na academia, pesquisador, professor há mais de 20 anos –, todo urbanismo deveria ser social, é óbvio, porém o que a gente vê nas cidades do sul global no Brasil, na América Latina, são cidades cujos países tiveram um processo de urbanização tardio, que aconteceu no século XX, com a explosão dramática das cidades.
São Paulo, por exemplo, tinha 230 mil habitantes em 1900 e passou a ter 10 milhões no ano de 2000. Então, em um século – que não é muito na vida de uma cidade –, cresceu mais de 27.000% em população, mais de 40.000% em território.
Entramos no século XXI e herdamos muitos e muitos desafios, a começar por isso que disse, a questão do saneamento básico; o segundo item, urgente, é a falta de moradia digna. Temos, no Brasil, um déficit habitacional de 7 milhões de famílias que precisam de moradia digna – só na cidade de São Paulo, estimam-se 500 mil unidades ou 500 mil famílias, portanto mais de 2 milhões de pessoas.
Além das questões de saneamento e habitação, precisamos prover esses territórios de vulnerabilidade daquele pacote de elementos que fazem uma vida urbana minimamente qualificada, como acesso a transporte público, um sistema de mobilidade urbana eficiente aos equipamentos públicos, às áreas verdes de lazer – a tudo isso chamo de infraestrutura de suporte.
Em tese, qualquer urbanismo deveria ser social, porque pressupõe melhorar a vida da sociedade, porém na prática o que temos visto nessas cidades, nesses países da América Latina e do sul global, é um urbanismo um pouco utópico ou muito abstrato, que dificilmente e poucas vezes atua de maneira focada e consistente, incremental e transformadora nos territórios de maior vulnerabilidade social.
No Brasil tivemos um caso, único, muito robusto – foi premiado inclusive, teve financiamento do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento], foi replicado em outras cidades da América Latina – de urbanismo social, que foi o Programa Favela-Bairro, no final da década de 1990. Acabou no ano de 2000, no Rio de Janeiro. Foi interrompido, infelizmente – uma prática comum no Brasil –, com a mudança de gestão. Mudou o prefeito, houve a interrupção do programa.
De onde sai a expressão urbanismo social? Do caso mais exitoso de todos, que é o de Medellín. Medellín é um caso excepcional, de raríssima transformação com continuidade, de políticas públicas, ações concretas e integração das políticas públicas – que, de maneira geral, em nossas cidades, não se conversam, cada secretaria funcionando dentro de sua caixinha, com a sua própria agenda, com o seu próprio banco de dados territorializado, e é no território que as coisas se integram.
Medellín é um caso fantástico, porque tem conseguido desde 2003 uma contínua transformação da cidade, promovendo a inclusão social, principalmente nos territórios de vulnerabilidade, com integração e territorialização das políticas e ações públicas, através dos PUIs [Projetos Urbanos Integrais].
Gostaria que citasse alguns desses casos práticos e comentasse o que chama a sua atenção neles – o que podemos aprender com eles.
Vou falar de Medellín, que é a nossa grande inspiração e que tem parcerias conosco no Laboratório Arq. Futuro das Cidades do Insper, no núcleo de urbanismo social que coordeno e no curso de urbanismo social que ocorre em parceria com vocês do Itaú Cultural.
Medellín começa com a eleição quase sem querer de um não político, Sergio Fajardo, acadêmico, professor de matemática que entra para a política, acaba ganhando de maneira inesperada as eleições e monta um governo, em 2003, com técnicos e acadêmicos sem nenhum conchavo político.
Ele marca uma transformação de Medellín calcada no tripé educação – 40% do orçamento público –, cultura e urbanismo. Chama um urbanista muito bom, que era colega dele na Universidade Eafit, Alejandro Echeverri, e os dois cunham esse nome, esse nickname, urbanismo social, focado em projetos urbanos integrais que procuram, de maneira incremental, consistente e contínua, integrar políticas públicas transformadoras nesse território de vulnerabilidade social.
Eles fazem isso nas comunas, que são os territórios equivalentes às nossas favelas, e conseguem grande continuidade em três gestões – Medellín não tem reeleição, o mandato é de três anos apenas. Tiveram enorme sucesso e foram fazendo essas transformações. Agora, pela primeira vez, há um governo politicamente de oposição, mas o programa continua e as ações continuam.
Esse é o grande case no mundo inteiro, ganhou um monte de prêmios – por exemplo, o Prêmio de Cidade Mais Inovadora do Mundo, dado pelo Wall Street Journal, em 2012. Enfim, é o grande caso referencial para nós.
Outra iniciativa que vale a pena mencionar é o Pacto pelas Cidades Justas. O que é isso? Um movimento da sociedade civil que nasceu no início do segundo semestre de 2019 e que hoje tem quase 30 instituições do terceiro setor. Foi crescendo e se constituiu num grande modelo de governança e promoção de urbanismo social em São Paulo ao longo deste ano todo, e continuamos uma parceria com a prefeitura no sentido de construir uma metodologia e um modelo de governança para além dos governos. Ou, dizendo de outra maneira, em parceria com os governos, mas calcado nesse conjunto de entidades organizadas da sociedade civil.
O curso de urbanismo social nasceu, no início do ano, de algumas conversas no Pacto pelas Cidades Justas. Além disso, estamos trabalhando em três territórios específicos em São Paulo, procurando promover muito das práticas que estão em nosso manifesto, realmente inspiradas em Medellín. São dois Territórios CEUs [espaços no entorno de Centros Educacionais Unificados] – em Perus, na Zona Norte de São Paulo, e na Vila Maria, no comecinho da Zona Norte – e o território do Jardim Lapena, em São Miguel Paulista, na Zona Leste, onde está o Galpão ZL da Fundação Tide Setubal.
Tivemos uma reunião de final de ano, de balanço, com a presença de representantes de todas essas instituições e 16 secretarias da cidade de São Paulo – esse foi um belíssimo retrato, por si só, de algo inovador aqui no Brasil, ou seja, essa discussão de políticas públicas integradas de transformação de três territórios em áreas periféricas e carentes na cidade de São Paulo, envolvendo cultura, transporte, habitação, esportes, transformações urbanas, saúde, todo mundo lá, foi muito bacana.
No poder público e entre os preocupados com a cidade, você percebe um conhecimento sobre o saber acumulado do urbanismo social? O que esses atores sociais poderiam ganhar com esse saber?
Diria para você que acho que sim. Hoje, apesar de tudo neste país tão complexo e com o que temos de retrocessos em Brasília, temos gestores locais genuinamente interessados em movimentos de urbanismo social e movimentos como o Pacto pelas Cidades Justas.
Tivemos em dezembro uma reunião com o prefeito eleito de Mogi das Cruzes [SP], Caio Cunha, que nos procurou querendo aprender e replicar o modelo lá. Ele está começando a montar o governo e ficou interessado porque o secretário de Planejamento de Mogi é nosso aluno no curso.
Da mesma forma, temos sido procurados por outras cidades do estado de São Paulo e do Brasil. Então, acho que sim, gradativamente vamos expandindo e replicando possibilidades de urbanismo social nas cidades brasileiras.
No laboratório e no núcleo de urbanismo social, temos feito várias conversas e estamos discutindo várias parcerias com instituições. Acho que temos um movimento crescente, genuíno, como gosto de dizer, um movimento de transformação incremental, ou seja, ter urbanismo, urbanismo social, do tamanho da nossa cidade. Dada a escala dos problemas e das demandas que temos, é uma ilusão ou promessa vaga de prefeitos candidatos em época de eleição isso de que vão fazer grandes transformações em uma gestão. Isso não é verdade, isso não é possível.
Precisamos ter políticas públicas, ações coordenadas e integradas que se territorializam, de preferência com planos urbanos locais, como foi feito no Rio de Janeiro na década de 1990 e, principalmente, como tem sido feito ao longo de todo este século em Medellín. Sair das ideias grandiosas e meio abstratas de planos diretores e chegar aonde acontece a vida do cidadão, que é no bairro, os planos de bairro, planos de ação local integrados.
Aí é que a gente se aproxima da sociedade, é aí que a gente tem uma participação consistente.