Documentário, apoiado pelo “Rumos Itaú Cultural”, revisita a memória de seu avô, Joaquim Costa Ribeiro, pai da física experimental no Brasil
Publicado em 02/02/2023
Atualizado às 08:37 de 10/05/2023
por André Felipe de Medeiros
O efeito termodielétrico é um fenômeno que revela o surgimento de correntes elétricas associadas a mudanças de estado físico em certos materiais. Ele é uma herança brasileira para a ciência como um todo, tendo sido observado primeiramente por Joaquim Costa Ribeiro em 1944. Para a cineasta Ana Costa Ribeiro, neta do cientista, trata-se também de uma herança familiar.
Foi com esse cunho pessoal e afetivo que ela realizou o documentário Termodielétrico, feito com o apoio do Rumos Itaú Cultural 2019-2020. Nele, a artista constrói sua narrativa a partir do acervo da família, do arquivo público de seu avô e também de imagens inéditas, que recebem a locução em off realizada por ela mesma.
“Eu trabalho com memória, fiz doutorado no assunto, meus filmes todos partem de arquivos”, explica Ana.
“Minha primeira exposição individual se chamava ‘A casa é quando a gente volta’. Estou muito interessada na não linearidade do tempo, e isso tem a ver com física também. Aos meus 44 anos, entendi que, para ir para a frente, preciso saber de onde vim.”
O documentário começa com a leitura de uma carta escrita por seu avô, encontrada após o falecimento do pai da artista, em 2015. “Fiquei muito emocionada, porque estava vendo no meu avô, que era alguém que não conheci, um lugar aonde me senti pertencente”, explica ela. “Eu vim desses valores, a mensagem mais importante que recebi do meu pai estava contida nessa carta. Então, para mim, [esse valor que diz] que o que importa mesmo é você correr atrás das coisas, independentemente de aonde você quer chegar, era um lugar muito familiar.”
Logo nos primeiros minutos do filme, fica evidente que a obra não se propõe a ser uma biografia detalhada do cientista nem mesmo um documentário exclusivamente sobre ciência. A temática de Termodielétrico é pautada por termos abstratos e subjetivos, como pertencimento e mesmo família, percebidos pelo espectador à medida que a narrativa se desenvolve com a justaposição de imagens antigas, gravações inéditas e a locução em off.
“Eu me situo em algum lugar entre a arte, o cinema e a literatura”, explica Ana. “Tenho um interesse enorme em contar histórias, mas sou formada em artes, eu fotografo também, tenho essa parte visual que é uma linguagem mais poética. Toda a minha trajetória tem muito a ver com literatura, tem mais a ver com escrita criativa, com uma linguagem poética. Não diria que sou uma documentarista experimental, mas que sou uma cineasta que trabalha com documentários, com escrita criativa e narrativas experimentais.”
Ao ser questionada sobre o uso do termo experimentalismo para descrever Termodielétrico, a cineasta conta que se interessa, “a cada filme, em desenvolver novas formas de contar histórias. Entendo que esses filmes de experimentação de linguagem não necessariamente têm que abrir mão da narrativa. A maior parte dos cineastas experimentais não tem narrativa e vai odiar uma voz off o tempo inteiro. Nesse sentido, o filme é bem arriscado, ele é todo narrado por uma única pessoa. Eu gosto de arriscar. Se não der medo, não vale nem sair de casa [risos]”.
“E essa questão da voz me interessa muito também, a da voz da mulher. A maioria das minhas referências é de filmes narrados por homens. Quando são narrados por mulheres, geralmente não são o tempo todo, ou é uma voz muito preparada, muito ensaiada, que busca alguma coisa específica. Foi importante para mim que [a obra] tivesse a minha voz mesmo. Já fiz outros filmes com textos meus e outra pessoa narrando, mas esse filme tinha que ser eu, e não poderia ser a busca da voz perfeita da mulher. Há horas em que dou uma desafinada mesmo e é isso, não sou atriz nem locutora, mas era importante assumir a voz da minha pessoa”, explica. “O lado feminista do filme era assumir que a voz da mulher é sempre criticada. Ou ela é sensual demais ou doce demais, é como se tivesse que haver um modelo perfeito da voz da narração feminina, enquanto está tudo bem o homem desafinar ou falar errado, ninguém comenta nada. A da mulher sempre tem que ser muito perfeita.”
Além do mencionado feminismo, outra correlação do filme com questões atuais é o cunho político de uma obra que celebra os feitos de um cientista. Como conta a artista: “Meu avô foi um dos fundadores do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, em 1951]. Antes disso, ele já era professor e depois destinou-se à administração do CBPF [Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, em 1949]. Entendo que eu não tenho um trabalho diretamente político, de combate, mas toda arte é política, e a poesia também. Não fiz esse filme por causa disso, mas ele aconteceu em uma hora na qual a ciência estava sendo completamente destruída”.
“Ele sempre se interessou muito pela pesquisa, principalmente a experimental. Nesse sentido, encontrei-me com esse avô. O experimentalismo, nas ciências ou nas artes, tem a ver com o incentivo na pesquisa. Você não consegue fazer experiências desse tipo se não tem algum investimento”, continua Ana.
“A pesquisa e a investigação também são uma herança familiar que eu tive, esse desejo de querer saber mais, de ler, experimentar e ousar. Isso só acontece se você tem investimento em cultura, em ciência, nas universidades. No país onde moramos, onde os arquivos são queimados, isso é muito grave, porque as pessoas não sabem de onde elas vieram.”