“Se a gente estiver lá, vai ser um momento histórico”, diz diretor mineiro
Publicado em 25/10/2022
Atualizado às 17:16 de 16/12/2022
Gabriel Martins já sonhava em ser cineasta desde bem pequeno. O mineiro, criado em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), não tinha nenhum contato direto ou qualquer familiar que trabalhasse com cinema na época, mas já era fascinado pelos filmes, imagens de bastidores, equipamentos e cenários que via nas reportagens de TV.
O devaneio de menino se tornou realidade e alcançou um espaço que, talvez, nem ele imaginava. É que, recentemente, o longa ‘Marte Um’, dirigido por Gabriel, foi indicado para disputar uma vaga na categoria ‘Melhor Longa-Metragem Internacional’ no Oscar 2023, previsto para acontecer em março.
Produzido pela "Filmes de Plástico Produções Audiovisuais" em coprodução com o Canal Brasil, o filme retrata a história de uma família negra que vive na região periférica de Contagem. Os problemas cotidianos enfrentados pelo casal Tércia (Rejane Faria) e Wellington (Carlos Francisco) e as descobertas e sonhos de seus filhos, Deivinho (Cícero Lucas) e Eunice (Camilla Damião), são apresentados de maneira delicada e, ao mesmo tempo, impactante.
O longa, que estreou no 'Festival de Sundance' em janeiro deste ano e chegou aos cinemas nacionais em 25 de agosto, já foi premiado em diversos festivais, dentre eles o 'Festival de Gramado', no Brasil, o 'Out on Film Festival' e o 'Festival de Nashville', ambos nos Estados Unidos. O cineasta diz que Marte Um é um desses casos excepcionais em que o filme, sem ter toda uma estrutura, consegue chegar às pessoas “furando a bolha”.
Esta é a primeira vez que um diretor negro representa o Brasil na campanha para o Oscar. Na verdade, segundo Gabriel, são “várias primeiras vezes” por meio de Marte Um. “A gente também torce para que não sejam as últimas”, destaca o diretor, que também está com dois filmes na plataforma IC Play: Rapsódia para o homem negro (2015) e Terremoto (2022). Este último, inclusive, é o mais recente trabalho do cineasta, que foi gravado durante a pandemia.
Nessa entrevista exclusiva para o Itaú Cultural (IC), Martins falou sobre representatividade, dificuldades e alegrias de trabalhar com audiovisual no Brasil, comenta sobre a expectativa para o Oscar e destaca a importância do coletivo. “Não sou uma pessoa que gosta muito de ficar vivenciando esses momentos das glórias e da colheita sozinho, não. realmente gosto da partilha mesmo, aprendi com as pessoas de meu bairro e com meus pais que essas vitórias são muito mais legais quando são coletivas”, destaca Gabriel.
Confira na íntegra!
Gabriel, como começou e o que despertou seu interesse por cinema?
Foi com uns 7 anos de idade, o mais longe que me lembro. Eu sei disso por memória, mas de fato acho que quando estava entre 8 e 9 anos, fiz um desenho para um trabalho de meu pai, em que pediram para eu escrever sobre o que eu queria ser quando crescer, e eu desenhei um set de cinema. Então, acho que tem essa prova mesmo, que era uma coisa concreta e não só uma ideia que passou na minha cabeça. Desde que me entendo por gente sou meio obcecado com isso e fico pesquisando e procurando. Nunca pensei em fazer mais nada na vida, nada mesmo.
A vontade de fazer cinema surgiu desde que eu era criança, desde bem pequeno. Eu não tinha nenhuma pessoa próxima a mim que, de fato, trabalhasse com isso. Eu não tinha nenhum contato direto, a não ser os próprios filmes. Mas, lembro que, especificamente, eu gostava muito de ver imagens de bastidores, reportagens de televisão que mostravam a cena por trás dos filmes, câmeras, luzes, equipamentos de som, trilhos, cenários. Eu ficava muito fascinado com isso.
Então, foi muito o que a gente chama de “magia do cinema”, que é como toda essa artificialidade por trás das câmeras faz a coisa acontecer na frente da tela. Isso foi o que mais chamou a minha atenção e persistiu como algo na minha cabeça que, até hoje, me fascina. Mesmo eu já trabalhando com isso e tendo experiência, continuo adorando ver e ouvir pessoas também falarem de bastidores, ouvir opiniões e saber como funciona com a realidade. Então, sem dúvida alguma foi isso, foi entender como toda essa magia por trás constrói essas imagens que a gente vê quando um filme está pronto.
Você encontrou dificuldade nessa trajetória para fazer cinema?
Comecei a trabalhar muito cedo com audiovisual, aos 17 anos. E entrando na faculdade, já estava fazendo alguns vídeos, aprendi a editar, comecei a fazer coisas rápidas para poder ganhar uma grana até me estabilizar e ter o cinema como fonte de renda principal. Mesmo já tendo uma produtora de cinema – a minha já existe há 13 anos –, e assinando como Filmes de Plástico, isso de pagar as nossas contas, poder juntar dinheiro, comprar coisas, ter uma vida um pouco melhor foi há pouco tempo atrás. Então, acho que a dificuldade maior ao longo do tempo era conseguir ter uma produtora independente e escrever as ideias, e essas ideias serem uma fonte maior de ganha pão.
Nunca tive problemas de fazer outras coisas, nunca fui uma pessoa de reclamar, sempre tive uma relação muito tranquila com o trabalho. Nunca sofri, mas também nunca tive emprego realmente muito ruim. Já trabalhei em coisas em que “ai que saco, não quero fazer isso”, mas a maior dificuldade foi, de fato, conseguir acessar um pouco mais, por exemplo, entender como se escreve um projeto para um edital de cinema, que não foi uma coisa muito fácil.
Até me formei numa faculdade de cinema, mas lá não tinha tão complexificada esse ensinamento de escrita de projeto, isso é uma coisa que tive de aprender por observação, tentando, errando, mandando para o edital e não passando. A isso também todas as burocracias que envolvem ter uma produtora, foi uma coisa que veio realmente como um aprendizado. Mas, acho que me considero muito sortudo porque encontrei parcerias muito fortes desde cedo, não só parcerias que vieram a ser colegas de produtora, como o Maurílio, o André e o Thiago, mas outras pessoas de cinema que sempre me acolheram. Sempre tive muitos amigos, e quando você tem muitos amigos, até as coisas difíceis passam a ser menos difíceis, pelo menos você divide esses momentos juntos.
Não tenho muito do que reclamar porque sempre tive muitas pessoas junto a mim e uma família que sempre me apoiou e que nunca me desmotivou desse sonho. Então, acho que a minha história não passa tanto por esses percalços que outras pessoas tiveram pela não aceitação familiar ou de não ter parcerias. Sempre fui muito acolhido.
Ouvir você falando de sonhos me lembrou muito Marte um. Então, vamos falar um pouco desse longa. A gente sabe que o filme recebeu diversas premiações e, além disso, recentemente foi indicado para disputar uma vaga na categoria ‘Melhor Longa-Metragem Internacional’ no Oscar 2023. Como é, para você, viver tudo isso? Esperava todo esse sucesso?
Não esperava, mas eu desejava, sim. A gente trabalhou muito para isso, mas acho que tem também uma certa realidade de uma produção independente, como é a nossa, e às vezes as nossas expectativas são frequentemente frustradas por um sistema que não nos acolhe tanto. A gente não consegue botar os filmes no número de salas que a gente quer. A gente não consegue, às vezes, chegar na grande mídia para fazer o público, de fato, saber que existe o filme. E o Marte um é um desses casos meio excepcionais em que o filme, sem ter toda essa estrutura, consegue, cavando o seu caminho, furando a bolha, chegando às pessoas.
Para mim, é uma gratidão enorme fazer parte desse processo e ter criado um projeto que, na verdade, chega hoje com tanta força, com essa força coletiva da equipe que consegue, de alguma forma, fazer esse barulho. Acho que toda essa repercussão do público acaba tendo a volta em forma de motivação, de correr atrás de mais e mais e de poder produzir mais também. Poder puxar outros projetos de outras pessoas que precisam de ajuda, de outros cineastas que talvez sejam próximos a mim que não tem tanto esse holofote. Então, me vejo carregado de uma energia muito grande para poder levantar todo mundo, é um sentimento real de coletividade.
Não sou uma pessoa que gosta muito de ficar vivenciando esses momentos das glórias e da colheita sozinho, não. Realmente gosto da partilha mesmo, é uma coisa que aprendi com as pessoas de meu bairro e com meus pais, de que essas vitórias são muito mais legais quando são coletivas. Então, agora, o sentimento que tenho é de coletividade, uma vontade imensa de espalhar todo esse amor que estou ganhando.
Como surgiu a ideia do Marte um? Teve alguma inspiração?
Comecei a pensar em Marte Um por volta de 2014, ano da Copa do Mundo. Então, pensei na relação de um evento esportivo dessa magnitude, como também toda a turbulência que estava acontecendo no país, de como essas contradições e essa atmosfera do futebol – como uma espécie de bilhete premiado para muitos jovens negros – poderiam ser repensados. Pensei em como isso poderia ser um possível objeto de estudo para uma família típica brasileira vivendo numa periferia, uma família negra que pensa um futuro diferente para si, que sonha e que, enfim, está trabalhando e entendendo como se comunicar melhor dentre várias outras coisas.
Como é ocupar esse espaço tão importante e que tem tanta representatividade?
Para mim é um lugar que, a princípio, não precisei fazer um esforço mental para ocupar, no sentido de me ver assim, porque sou assim. Venho de uma família negra, sou uma pessoa negra, tenho interesse de falar sobre esses temas nos meus filmes, então, essa classificação da minha pessoa e das coisas que faço se dá naturalmente por escolhas afetivas minhas, criativas mesmo.
Agora, dentro disso, também busco sempre elucidar as pessoas com o espaço que tenho para me expressar, como esta entrevista e várias outras oportunidades, de enfatizar a importância de que mais pessoas como eu precisam ocupar esse lugar e entender historicamente como esse espaço foi retirado de muitos que não tiveram a mesma chance que pessoas da minha geração, por exemplo. Estar aqui num espaço de prestígio, num espaço de representar o Brasil.
De fato, é a primeira vez que um diretor negro representa o Brasil nessa campanha para o Oscar, primeira vez que um filme mineiro – e acredito também que seja a primeira vez de um filme que tenha essa configuração de família negra e de uma produtora dessa origem. Então, são várias primeiras vezes que a gente também torce para que não sejam as últimas. Esse é um trabalho que vejo que esse lugar da representatividade é forte, que a gente siga tencionando essas correntes que são muito fortes.
A gente vê, por todo o momento político que vivemos, que nunca estamos superando os problemas, que podem sempre voltar, ter outras formas de voltar. Problemas em que estou enunciando muito o racismo, a perseguição do povo pobre, a perseguição das mulheres, perseguição de minorias, pessoas que estão mais frágeis dentro do jogo social. Então, acho que o meu lugar é um pouco de chamar atenção para isso.
Quais são as expectativas para o Oscar?
A gente está muito feliz. Estamos trabalhando muito duro para fazer muito barulho. A gente está num processo que é conseguir a grana para essa campanha, é um processo natural financiar essa campanha por meio de vários apoios aqui no Brasil e, eventualmente, muito em breve começar a fazer sessões nos Estados Unidos, ir para lá promover o filme, fazer o nosso trabalho ser reconhecido, ser visto. A partir disso, conseguir os votos necessários para seguirmos nas etapas de classificação e ir para o Oscar. Se a gente estiver lá, vai ser um momento histórico.
Suas obras tratam, dentre outros assuntos, de relações políticas e raciais do cenário social brasileiro. Que mensagem você deseja passar por meio delas?
Não sei se diria que é propriamente ume mensagem, mas acho que uma sensação maior de liberdade criativa, não só para uma pessoa que deseja ser artista e contar as suas histórias, mas para uma pessoa que, às vezes, sente que seus sonhos são tolhidos por qualquer motivo externo – qualquer outra pessoa, ou porque não tem apoio da família ou de amigos, ou por não ter apoio do governo, da sociedade.
Que esse filme também possa carregar as pessoas de algum otimismo possível dentro do mundo que, frequentemente, é tão cruel. Que a gente possa não abrir mão dessa nossa postura de resistência, que é de acreditar um pouco no afeto com o próximo, de acreditar que é possível construir caminhos melhores para as nossas vidas, um pouco mais de empatia com o outro, entender o lugar do outro na sociedade.
Acho que Marte Um chega nesse momento como uma espécie de ovni diante de tanto ódio que passa nas relações sociais, principalmente no Brasil. Não acho que a gente precise, necessariamente, apaziguar diferenças, mas acho que a gente precisa, por meio de diálogo e entendimento, saber um pouco mais o que está em jogo nas nossas vidas, saber e entender quem está mais vulnerável, entender – com personagens como Deivinho – que tem muitos jovens que estão tentando sonhar longe, mas que estão sendo cortados por várias razões, e acho que isso não pode acontecer. A gente quer que nossos jovens estejam aí com o coração aberto, a mente nas nuvens, no céu, em outros planetas. Acho isso muito importante para um futuro mais bonito para a nossa sociedade.
Quem seria uma influência para você quando se trata de cinema?
Aqui no Brasil, me vejo muito influenciado pelo cinema do Eduardo Coutinho, que mesmo sendo um documentarista, fez trabalhos de ficção. E mesmo eu sendo um cineasta de ficção, acho que sempre me inspirei muito pela forma como o humano era tratado nos trabalhos do Coutinho. Talvez, ele foi um dos cineastas brasileiros, senão o mais, que conseguiu entender o Brasil de uma forma muito completa, às vezes simplesmente entrevistando uma pessoa. E isso me inspirou muito e me inspira ainda de várias formas. Revejo os filmes dele e sigo muito aficionado. Então, é uma grande influência, mesmo que isso não esteja diretamente visível dentro de vários outros artistas brasileiros.
Me vejo muito inspirado também pelo trabalho de Andrea Tonacci, Carlos Prates Correia – que é de Montes Claros (MG) –, que foi um cineasta que também me deu muito esse senso de mineiridade, que me deu mais força para seguir nesse trabalho, bem como, claro, outros artistas que têm por aí.
Veja também:
>> Recortes sobre Eduardo Coutinho
>> https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/eduardo-coutinho/
Quais são os seus próximos projetos?
Um curta-metragem que se chama Terremoto, que é o primeiro documentário que fiz e é o meu filme mais recente. O Marte um foi lançado simultaneamente, mas Terremoto eu filmei depois, agora na pandemia, que é sobre uma família de haitianos sobreviventes do terremoto de 2010. Enfim, é um trabalho que está começando a circular por aí.
E estou com um roteiro de longas, mas ainda sem necessariamente data para filmar, sem financiamento – em busca –, então não tenho muito o que dizer por enquanto e porque também, a curto prazo, o foco é seguir nessa campanha do Marte um para o filme conseguir chegar ainda mais longe, inclusive nessa campanha do Oscar.