A cantora e filósofa prepara o lançamento do livro “Caminho da existência: Carlos Cachaça, Cartola, Nelson Cavaquinho”
Publicado em 09/12/2022
Atualizado às 08:39 de 09/12/2022
por André Felipe de Medeiros
Música e filosofia, provavelmente nessa ordem, compõem o universo de trabalho de Eliete Eça Negreiros. Como cantora, na década de 1980, ela foi parte do movimento conhecido como Vanguarda Paulista, ao lado de nomes como Itamar Assumpção, Ná Ozzetti e Arrigo Barnabé – que produziu seu disco Outros sons (1982). Sua produção como filósofa também ronda o mundo musical, com uma pesquisa sobre Paulinho da Viola que já rendeu dois livros (advindos de suas teses de mestrado e doutorado), além de colunas escritas para as revistas Piauí e Caros Amigos entre os anos 2012 e 2014, reunidas em Amor à música: de Cartola, Paulinho da Viola, Cortázar, Nara Leão, Rogério Sganzerla….
Nestes últimos anos, Eliete aproveitou o período de isolamento da pandemia para se dedicar a mais uma publicação sobre seu tema favorito: o sambista como um “filósofo popular”. Nasceu daí Caminho da existência: Carlos Cachaça, Cartola, Nelson Cavaquinho, livro que comenta, nas palavras da autora, “como na canção popular se desenvolve uma fina filosofia sobre a existência, como o samba é um lugar onde a reflexão sobre a vida humana tem tal profundidade e impacto que podemos pensar numa filosofia cantada criada pelos sambistas”. A pesquisa e a redação da obra tiveram apoio do Rumos Itaú Cultural 2019-2020.
O livro situa a lírica do samba na tradição da cultura ocidental ao dialogar com questões filosóficas pertinentes a toda a humanidade, a começar pela própria existência, ao lado da moral.
“Em outras palavras, pretendo pensar o sambista como um filósofo popular, mostrando como no samba, expressão cultural de um grupo marginalizado, formado pelos negros que vivem nos morros e subúrbios da cidade do Rio de Janeiro, é gestado um saber que, além de particular e brasileiro, é universal”, explica a autora.
“O que pretendo fazer é estabelecer um vínculo entre estes diferentes saberes, tendo por denominador comum a reflexão sobre a condição humana, enfatizando a qualidade do saber produzido pelos poetas populares que emerge da análise dos sambas de três importantes compositores brasileiros: Carlos Cachaça, Cartola e Nelson Cavaquinho.”
Eliete Negreiros falou ao Itaú Cultural sobre a idealização e a realização do livro, cuja data de lançamento ainda não foi anunciada.
Para começar, peço que conte um pouco sobre o surgimento do livro. De onde veio essa ideia?
É uma história antiga. Nos anos 1980, eu estava no Rio de Janeiro pesquisando música popular brasileira e assisti a um vídeo em comemoração do aniversário de Carlos Cachaça. Creio que foi o último ou um dos últimos shows dele, porque ele estava muito debilitado. [Eram] vários artistas cantando e homenageando. A alegria do encontro era sombreada pela tristeza de seu estado de saúde. Eu o conhecia de nome, pelas suas parcerias com Cartola. Fiquei muito sensibilizada com a beleza de sua obra e confesso que chorei de comoção. Aí, conheci este samba que dá nome ao ensaio, esta obra-prima, “Caminho da existência”. Cheguei a fazer um primeiro esboço de um projeto com esse nome, mas ficou comigo, não realizei. O tempo foi passando. Eu mergulhei na obra dele, de Cartola e de Nelson Cavaquinho, e todos esses sambistas maravilhosos falam muito da vida, das alegrias e dos reveses. Daí, escrevi o projeto com os três para o Rumos Itaú Cultural.
As obras desses artistas são de uma potência ímpar. Como foi poder mergulhar na poesia deles para o projeto?
Foi um deslumbramento. Porque, apesar de conhecer os sambas, quando comecei a refletir sobre eles, nossa, são de uma riqueza humana, poética e musical indizível! Foi um sentido agudo e real da existência. Uma nobreza de alma em meio a uma vida tão precária. Uma grandeza, uma sabedoria. Por exemplo, em Nelson Cavaquinho, você encontra até referências bíblicas: “Do pó vieste e para o pó irás”. E dei também um mergulho em alguns filmes: sobre Nelson Cavaquinho, do [cineasta] Leon Hirszman; Cartola – música para os olhos, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda; e outro que trata do mundo do samba, Rio, Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos.
Veja também:
>> Confira o site da Ocupação Cartola, realizada em 2016, pelo IC
O projeto cita Olgária Matos e seu ensaio “Theatrum mundi: filosofia e canção”: “Nas canções brasileiras encontra-se, com frequência, uma elaboração musical e literária enunciando uma filosofia moral”. Como foi trabalhar o tema da moral em uma época em que, no Brasil, esse termo está em voga em discussões ligadas, por exemplo, à censura?
Esse tema não surgiu. E explico: esses sambistas não transitavam pela política.
Sua poesia nascia do cotidiano humilde e inspirado em que viviam.
Há, sim, uma ética baseada na compaixão, no amor, na amizade, uma crítica ao orgulho, ao capitalismo, à importância da riqueza. Há um samba de Cavaquinho [“Revertério”, também de Guilherme de Brito] em que ele canta assim: “Guardes a tua riqueza / que eu ficarei com a pobreza”.
Eliete, conte um pouco também sobre como foi trabalhar com esse acervo da cultura brasileira em um período em que ela vem sendo apagada ou tendo sua preservação ignorada.
Pois é, eu tenho um impulso de cuidar do que é belo, significativo. Guardo na memória. Canto. Escrevo. É uma forma de manter a nossa cultura viva. As pessoas, hoje em dia, conhecem muito pouco. Vivem com pressa e, para ouvir, aprender, guardar, é preciso se deter, desacelerar. É como cuidar de um jardim precioso e raro, que precisa de atenção para continuar existindo. Faço este trabalho com muito amor, pois é nosso tesouro. Estava lendo um texto do filósofo coreano Byung-Chul Han e ele diz mais ou menos isso, que, para ver a beleza, você precisa se deter diante dela. Desacelerar e lembrar. A pressa é inimiga da memória.
Uma última pergunta: o que você sonha para este livro, no sentido do impacto que pode causar nos leitores?
Eu acho que eles irão se encantar ainda mais com a obra desses sambistas e se surpreender com a grandeza que ela encerra. Assim espero. Foi o que aconteceu comigo enquanto estava escrevendo.