Produtora cultural e esposa do escritor, Ercília fala sobre “Amoroso, uma biografia de João Gilberto”, lançado em 5 de novembro pela Companhia das Letras
Publicado em 23/11/2021
Atualizado às 14:04 de 17/02/2022
Amoroso, uma biografia de João Gilberto (Companhia das Letras) não é mais uma biografia sobre um grande artista brasileiro. Como me disse a produtora cultural Ercília Lobo, “esse é um livro sobre João Gilberto escrito pelo Zuza Homem de Mello”. E, de fato, isso acrescenta muito tempero à história.
Ercília – esposa do escritor, jornalista e musicólogo – teve muita participação no processo de feitura do livro: viajou com o companheiro para pesquisar e entrevistar fontes; revisou textos e fez seus comentários – ela mesma admite que “ambos são muito exigentes”. E, quando Zuza terminou de escrever e faleceu apenas quatro dias depois de tal feito, trabalhou ao lado da Companhia das Letras para finalizar esta que vem sendo considerada a biografia definitiva do pai da Bossa Nova.
Veja também:
>> Programação do Itaú Cultural tem debate sobre o livro e show-tributo a João Gilberto
Já no fim da nossa conversa, ela me contou: “Eu logicamente já li esse livro várias vezes – lia capítulos, depois voltava para o capítulo de trás etc. Depois mais duas vezes inteirinho para a editora. O Zuza já tinha partido, e trabalhei muito próximo à editora na finalização, sempre com aquela preocupação e com o lápis na mão”, antes de revelar que, enfim, pôde ser apenas uma leitora: “Agora estou lendo à noite na cama e acho uma delícia”.
Nesta entrevista, falamos sobre o que mais importava no momento: suas memórias de João Gilberto e de Zuza Homem de Mello, a relação de amizade dos dois e o legado dessa última nota.
Tenho sentido que o livro celebra João Gilberto, mas é também uma celebração ao Zuza. Você tem essa impressão?
Estou sentindo exatamente isso, é interessante. Escrever um livro sobre João Gilberto já é uma grande coisa, porque é um assunto maravilhoso para todo mundo que gosta de música, e mesmo para os que não gostam – e, ainda, para os que gostam de falar mal de João Gilberto, que o acham ranzinza, o que ele não é.
Agora, um livro sobre João Gilberto escrito pelo Zuza, que foi amigo dele e que morreu quatro dias depois de ter terminado o livro, é uma coisa inacreditável.
Você tem razão, passou a ser uma homenagem ao João Gilberto e ao Zuza.
O livro, muito por causa dessa relação dos dois, é guiado por uma narrativa mais pessoal e emotiva do que por aspectos técnicos. Como você interpreta essa opção da escrita do Zuza?
É claro que tudo que está escrito é fato, tudo foi extremamente checado. E o Zuza tem muita coisa em casa, no acervo próprio. Porém tem sempre um carinho a mais. Você percebe, no decorrer do livro, que permeia uma vontade do Zuza de mostrar que João Gilberto é isso, foi isso.
Ele quis tirar essa pecha que paira em cima do João Gilberto por alguns incautos que querem dizer que João Gilberto é ranzinza, mal-humorado, que atrasa – atrasa mesmo, sempre atrasou. O Zuza falava com muita graça. Ele dizia assim: “João Gilberto atrasa, esse é o João Gilberto. Vocês têm duas opções: ir ou não ir ao show, porque se for vai atrasar, então não reclama”.
Percebe-se um carinho do Zuza o tempo inteiro pelo João Gilberto durante a narrativa do livro.
Como era a relação dos dois? O livro, inclusive, começa com um capítulo falando sobre essa amizade.
O Zuza sempre foi muito respeitoso com o João Gilberto; acho que talvez isso até tenha feito o João Gilberto gostar tanto dele. Ele não invadia jamais a seara do João Gilberto, considerava que estava em outro patamar. Se o João Gilberto estendia a mão, ele ia, jamais para fuxicar, ficar ligando, nunca. Sempre respeitou muito.
Com isso, você vai vendo no livro que ele, antes de conhecer o João Gilberto pela primeira vez, nos anos 1960 – já tinha gravado “Canção do amor demais”, com a Elizeth, já tinha passado por tudo isso e era uma celebridade –, teve algumas oportunidades. Por três meses o Zuza precisou, como engenheiro de som da TV Record, ir falar com o João Gilberto, sendo que em uma delas disse “Agora eu vou” e não foi. Não teve coragem. É interessante, é um sentimento de não ter coragem – “Deixa ele lá, ele é ele e ponto-final”.
Só depois que foi conhecer o João Gilberto em Nova York e, aí sim, a partir desse primeiro encontro eles ficaram bastante amigos. Mas o Zuza sempre respeitando a distância que lhe era imposta, porque João Gilberto é uma dessas pessoas que colocam uma distância interna – até aqui você pode vir, mas daqui para cá não deixa. O Zuza sempre respeitou isso. Eram realmente muito amigos, gostavam-se demais, independentemente da música. E o Zuza tinha uma admiração musical enorme por ele.
Tendo presenciado muitos desses momentos, você consegue ter uma percepção do que o João Gilberto sentia pelo Zuza? Se o Zuza tinha respeito enorme e admiração pelo João Gilberto, como era do lado de lá?
Acho que era a mesma coisa. Primeiro, ele gostava de uma pessoa que não ficava enchendo o saco dele para falar a verdade, que o respeitava, e isso acho que foi uma coisa que contou muito para o João Gilberto; depois, ele achava que o Zuza falava coisa com coisa.
Ele ligava para o Zuza às 11 horas da noite – e eu já ia até dormir, pois sabia que o negócio iria longe – e ficavam conversando. Não era para todo mundo que o João Gilberto ligava, ele ligava para as pessoas de que gostava.
E, quando eles conversavam, era sobre música também, mas não só sobre isso. Conversavam sobre futebol, que os dois adoravam, política, sobre o Brasil – e o João Gilberto era muito patriota, gostava demais do Brasil –, conversavam sobre várias coisas.
Qual era a sua relação com João Gilberto? Com ele e com a música dele?
A música dele é fantástica. Todo mundo pensa que gosto de escutar música porque vivi 35 anos com o Zuza, mas minha mãe, que era uma sábia mulher, falava assim: “É o contrário, a minha filha vive com o Zuza porque ela gosta de música”. Sempre fui apaixonada por música, sou de família de músicos; meu bisavô e meu avô eram maestros. Fui realmente criada num ambiente musical, na verdade mais para a música clássica, mas logo fui percebendo a popular também.
João Gilberto, para mim, é uma coisa que realmente é de tirar o chapéu, porque ele é um marco na música brasileira. Ele possibilitou que o samba pudesse ser tocado por pessoas de fora do Brasil, coisa que eles não conseguiam antes do João Gilberto. Tenho uma admiração enorme por ele.
Tive dois encontros com o João Gilberto que estou quase pondo no meu currículo. O primeiro foi em uma ponte aérea São Paulo-Rio. Eu e Zuza não conseguimos lugar juntos, ele estava na fileira da frente e eu na de trás. Quando olho, estou sentada ao lado do João Gilberto. Até engasguei. Num instante ele começou a conversar comigo e, como também sou falante, já entrei na dele. Muito orgulhosa, evidentemente, de estar com o João Gilberto ao meu lado.
Lembro que ele logo perguntou: “Você tem medo de avião?”. Disse que não, e daí para a frente fomos conversando. A curiosidade do Zuza no banco da frente era tanta – o coitado virava para trás, estava até com dor no pescoço de tanto olhar para trás para ver o que nós estávamos conversando – que, no meio do caminho, falei: “Vem, Zuza, vamos trocar de lugar”. Esse foi um contato que tive com o João Gilberto muito agradável, um querido.
Na outra [ocasião], ele nos convidou – uma prova de que gostava mesmo do Zuza – para um evento no Rio de Janeiro. Uma festa de seu advogado, doutor Benjó. A surpresa seria o João Gilberto cantar nessa festa. Agora imagina o João Gilberto cantando numa festa? Ele que o microfone tem de ser não sei como, tem de ser em tal lugar, todo cheio de exigências sonoras – as únicas exigências dele eram quanto ao som.
E ele queria que o Zuza assistisse. E não é que o João Gilberto veio com seu violãozinho em determinada hora, ficou de pé em um tabladinho ao lado da nossa mesa e cantou tudo que você possa imaginar. O povo, que já estava meio chocado, começou a pedir “Canta isso, canta aquilo”, e o João Gilberto cantou tudo. Chegou uma hora em que alguém falou assim: “João Gilberto, canta ‘Minas Gerais’”. O Zuza disse que ele gelou – imagine que ele nunca cantou isso na vida –, não teve dúvida e cantou “Ó Minas Gerais...”. Uma graça, um amor.
O Zuza decidiu de fato fazer o livro após a morte de João Gilberto?
Diria que a decisão é anterior à morte dele, mas ele efetivou isso a partir da morte do João Gilberto: “Agora vou sentar e redigir”. Ele já vinha colhendo muito material com pessoas que pudessem dar alguma informação.
Começamos a viajar para alguns lugares, aqui no Brasil mesmo, e não chegamos a ir para Juazeiro [BA]; a gente iria, mas acabou não sendo preciso, pois encontramos uma senhora que tinha sido amiga do João Gilberto lá em Juazeiro ainda. Essa senhora falou: “Eu levo vocês na tia Dulce, ela mora em Guaxupé [MG]”. E lá fomos nós para Guaxupé para pegar uma entrevista com ela.
Fomos para Porto Alegre, para o Rio várias vezes, e o Zuza foi juntando todo esse material e, ao mesmo tempo que juntava, ia já redigindo. Cada capítulo que ele fazia, já passava para eu fazer uma revisão.
É interessante, ele não redigiu na ordem cronológica – e poderia perfeitamente redigir. Lembro muito bem, no primeiro capítulo, quando escreveu sobre os conjuntos vocais existentes na época, ele passou para cá, depois passou para lá. O livro segue uma cronologia, mesmo que às vezes o Zuza saia um pouco dela, mas acaba voltando. É uma cronologia voltada mais para a música de João Gilberto do que para o calendário.
Como foi o processo de pesquisa e de entrevistas?
Foi um ano inteiro de entrevistas, mas sabe o que acontece? Uma puxa outra. Quando a gente foi para Porto Alegre, por exemplo, nós fomos para fazer duas entrevistas, e ele voltou com seis. Porque foi entrevistar Juarez Fonseca, que citou alguém, e ele disse “Você tem o contato dessa pessoa?”, e lá vamos nós para essa outra pessoa.
Foi muito prazeroso e trabalhoso. O Zuza é muito exigente com o produto que está fazendo, e eu também. Às vezes estava lendo um capítulo que tinha muita quarta, sétima e não sei o quê, daí eu falava: “Zuza, menos. Você está escrevendo para músicos também, mas está escrevendo para um público leigo”. Ele foi muito exigente com todas as informações, assim como a Companhia das Letras.
Qual é a sua passagem favorita do livro? Consegue escolher uma ou outra?
Acho que tenho, sim. Numa entrevista com o Daniel Filho, a gente ficou sabendo – ele contando – do comportamento do João Gilberto na preparação de determinado show que ele ia fazer para a TV Globo. Eu morria de dar risada, porque o Daniel Filho é muito bem-humorado, inteligentíssimo, então sabia contar isso para o Zuza, que, por sua vez, soube reproduzir muito bem. É uma coisa fantástica.
Essa passagem de que estou falando do Daniel Filho mostra como o João Gilberto não precisava se vangloriar. Ele era uma pessoa engraçada, o comportamento dele era engraçado. E nessa passagem ele diz: “Daniel, quem vai arrumar a manga do meu paletó que está roçando no violão?”. E na coxia o Daniel responde: “Fulano, manda arrumar essa manga”.
“Mas vai alguém junto com ele?”
“Não, não vai ninguém.”
“Mas o paletó será que volta?”
Um tipo de preocupação que ele tinha e que a gente não tem, e isso o tornava muito engraçado.
Uma das coisas que mais aprendemos sobre o Zuza é que ele estava sempre lá. Uma testemunha ocular de tudo que estava acontecendo.
Diria para você que esse é o diferencial do Zuza em relação aos pares dele, mesmo os da época, mesmo os que tinham idade parecida com a dele ou um pouco menos.
O Zuza vivenciou muito a música, tanto a brasileira quanto a norte-americana. Ele era louco por jazz. Eram as duas músicas mais lindas do mundo para ele.
Ele vivenciou muito nos Estados Unidos, porque estudou lá, teve a sorte de estudar nos anos 1950, a década do boom enorme do jazz. E ele ia nos clubes à noite e viu gente boa mesmo, muitos craques – Thelonious Monk, John Coltrane, Alan Silva, Jim Hall. Todos da época ele assistiu porque teve a felicidade de estar lá ao mesmo tempo.
Voltando para o Brasil, logo começou a trabalhar na TV Record, naquele momento em que a TV Record também foi um estouro. Não existia programa de música na televisão, e quem inventou foi a TV Record. E o Zuza estava lá contratado como engenheiro de som e, depois, acabou se tornando um profissional multifacetado, porque começou a fazer muitas coisas que têm a ver com a música. O Zuza foi jurado de festivais, escreveu livros, foi radialista – adorava ser radialista –, fez muitas coisas diferentes. Tudo que tem a ver com música o Zuza fez.
Com isso se cria uma memória musical enorme, que ele deixa justamente por ter acompanhado e registrado tanta coisa.
É verdade. Tem outra característica do Zuza em que nós na família achávamos graça, porque falávamos “É um acumulador”, e era um acumulador. Só que com isso ele guardou tudo o que você pode imaginar de informações musicais. Ele tem uma biblioteca de recortes, que se chama hemeroteca – aprendi isso e gostei dessa palavra –, fantástica, tudo em pastas, tudo organizadíssimo, daí se chega a uma pasta em especial, tem milhões, mas chega a Chico Buarque, por exemplo, tem uma pasta só dele. Então pode-se imaginar a quantidade de recortes que ele tem.
Zuza comprava os LPs – ele tem 10 mil LPs –, ganhar era mais difícil, muitos lá fora e aqui no Brasil também. Ele ouvia, por exemplo, o disco da Fafá de Belém, via o disco e saía um recorte, uma crítica, um comentário na Folha [de S.Paulo], saía no Valor econômico, e ele ia recortando e colocava dentro da capa do disco. Quem for ficar com esse acervo realmente vai ficar com o acervo e mais um pouco.
O Zuza, enquanto escrevia sobre João Gilberto, ouvia muito as músicas do cantor?
O tempo inteiro. Às vezes era uma sílaba, em que ele queria ver se era naquela sílaba que ele mudava o tom ou fazia qualquer coisa diferente. Quando foi descrever o “Desafinado”, ele ouvia palavra por palavra, sílaba por sílaba. E só escrevia ouvindo música, mas não música de fundo, isso não existia na rotina dele; ouvia a música que naquele momento iria contribuir para a escrita dele, para a veracidade da escrita.
Qual é o legado que esse livro deixa?
Acho que esse livro deixa duas coisas. O meu editor na Companhia das Letras, o Ricardo Teperman, falou uma coisa muito interessante – acho até muito bonito, me emocionou: “Nossa companhia não está vendendo um livro sobre João Gilberto, está vendendo um livro sobre João Gilberto escrito por Zuza Homem de Mello”.
E é verdade. Evidentemente que sou um pouco suspeita para falar, mas é o que sinto. Acho que o grande legado desse livro é mostrar que João Gilberto foi o máximo; àqueles que já gostavam de João Gilberto, leiam, porque tem muita coisa nova que vocês não sabem e vão saber, como Zuza também não sabia – foi sabendo com as entrevistas.
Que aqueles que não gostavam do João Gilberto tenham a possibilidade de passar a gostar. E aqueles que continuarem não gostando depois de ler o livro não o merecem. O livro é para mostrar que João Gilberto é muito mais que os atrasos, mais que as idiossincrasias. João Gilberto é mais que tudo isso.