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Dia Nacional do Escritor \ Como a escrita pode ser terapia

Autora de biografias de grandes nomes da música brasileira, a paulista Bruna Ramos da Fonte fala sobre a via da escrita para o autoconhecimento

Publicado em 25/07/2021

Atualizado às 15:10 de 13/01/2023

Além dos muitos diários, Bruna, quando criança, gostava de narrar histórias e fatos da vida de sua bisavó. “Minha primeira publicação foi uma antologia sobre família. Ela já foi biográfica e se tornou a melhor opção para mim, que não queria falar de mim mesma.” Tímida e retraída, em suas próprias palavras, a ideia de pesquisar e se debruçar sobre a vida do outro parecia fantástica para a sua vontade de escrever.

A paixão por ouvir histórias, somada à formação de conservatório e à experiência sólida e precoce com a música – ela já tocou piano e violino numa orquestra –, levou a escritora Bruna Ramos da Fonte, natural de Santo André, em São Paulo, a se especializar na produção de biografias e na narrativa de grandes nomes da cena musical brasileira. Em 2010, publicou O barquinho vai...: Roberto Menescal e suas histórias (Irmãos Vitale); em 2012, lançou Essa tal de Bossa Nova, com Menescal e apresentação assinada por Nelson Motta (Rocco/Prumo); e, em 2017, contou a vida e a obra de Sidney Magal: muito mais que um amante latino (Irmãos Vitale).

“Não sou uma boa musicista, não sou uma boa instrumentista, mas gosto muito de falar sobre música e gosto muito da teoria da música”, afirma. Recentemente, ela fez um curso de formação e regência orquestral: “Por puro prazer”.

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Para compreender as tantas “caixinhas” abertas no processo biográfico, Bruna decidiu em um dado momento cursar uma especialização em psicanálise clínica na Sociedade Brasileira de Psicanálise Integrativa (SBPI). “Percebi que na hora de biografar eu lidava com muitas questões delicadas, traumas e caixinhas do passado da vida da pessoa”, explica.

E, como a arte é uma consequência dos caminhos traçados, a escritora, após se dedicar a narrar tantas vidas outras, chegou à escrita direcionada para um processo muito íntimo e particular, como ponto de partida para um autoconhecimento, uma espécie de entendimento profundo, trazido à superfície pela via da terapia. A metodologia que desenvolveu sobretudo durante o contato clínico vem sendo trabalhada tanto com professores e alunos quanto com interessados pelo tema e pela possibilidade de escrever.

Neste ano, Bruna publica Escrita terapêutica: um caminho para a cura interior (Letramento), já lançado em e-book em 2020. Ao Itaú Cultural (IC), no Dia Nacional do Escritor, ela fala de seus caminhos, todos muito pautados, como é de esperar, pela leitura e pela escrita. Bruna também indica obras da literatura brasileira que fizeram parte de sua formação e dá dicas a quem deseja começar a escrever.

Bruna, como nasceu o Escrita terapêutica?

Costumo dizer que esse livro é algo que nasceu há muito tempo sem a intenção de ser um livro. Comecei a escrever diário muito cedo, muito criança. Acho que todas as vezes em que a gente sofre algum tipo de bullying, de preconceito dentro do ambiente escolar e na infância, é preciso de alguma maneira colocar isso para alguém, e a minha forma foi justamente fazendo diários. Com 7 ou 8 anos de idade, eu já escrevia diários, e a escrita sempre me acompanhou naturalmente.

Comecei a escrever também textos literários e a publicar – e lá se vão 21 anos desde a minha primeira antologia. Essa questão da escrita terapêutica sempre me chamou a atenção. O quanto aquilo era benéfico para mim, uma coisa para usar para o meu próprio desabafo.

Quando eu estava biografando o [cantor e dançarino] Sidney Magal, ele disse que o processo não era só biográfico literário, era análise também, porque ele começou a perceber coisas que nunca tinha percebido. Em algum momento da minha trajetória como biógrafa, resolvi me especializar em psicanálise clínica.

E como essa experiência se associou à concepção que você tinha – ou sentia – de escrita como terapia?

Fiz um aperfeiçoamento de dois anos em psicanálise clínica, justamente para ter um subsídio maior para que eu conseguisse biografar as pessoas com mais propriedade. Porque percebi que na hora de biografar eu lidava com muitas questões delicadas, traumas e caixinhas do passado que a pessoa nunca tinha aberto para ninguém.

Foi aí que nasceu efetivamente o trabalho formal com a escrita terapêutica. Na formação em psicanálise clínica, você obrigatoriamente tem de fazer um estágio em clínica social. Nesses atendimentos, comecei a entender que se eu trouxesse a escrita para dentro daquela proposta, daquele ambiente, conseguia ali resgatar memórias que só através da fala não era suficiente.

Eu já era professora de professora de produção textual, desenvolvimento literário, sempre trabalhando com a escrita, mas ainda não tinha unido essas duas coisas. Esse aspecto terapêutico eu deixava mais para meu uso pessoal.

É normal ver pessoas que vêm para a análise sem ter nenhuma lembrança da infância – quanto menos lembrança, maior o trauma, mais conteúdo reprimido, mais coisas ali que você precisa trabalhar. Fui trabalhando isso através da escrita e, ao mesmo tempo, formei algumas turmas de aulas em grupo e comecei a praticar essa metodologia para ver qual era a abrangência, o quanto isso poderia ser efetivo e para quais tipos de público.

Quais são suas principais referências na área?

No Brasil, você ainda não tem uma literatura consolidada a respeito. Não tem livros que se aprofundam nessa temática terapêutica. Nos Estados Unidos, há o James W. Pennebaker, que muitos anos atrás começou a pesquisar os efeitos da escrita na vida das pessoas. Trabalhou com muitas vítimas do holocausto. Ele começou a estudar esses grupos, a acompanhar as pessoas e ver se o fato de escrever diminuía as idas ao médico, o quanto isso melhorava a saúde mental e física.

Em É isto um homem?, do Primo Levi – um dos maiores livros que a gente tem da história do século passado –, podemos ler no prefácio que ele foi escrito com funções terapêuticas. E o que o [Oscar] Wilde fez enquanto estava preso? Escreveu De profundis, escrita terapêutica.

Então, é uma coisa que intuitivamente a gente faz, mas sem ter muitos brios sobre isso, principalmente quem escreve, quem trabalha com a escrita, que gosta de escrever; e como eu fiz também.

Entendo que a obra em si seja fruto de um processo que remonta à sua infância com a produção de diários e também à experiência com o estudo da psicanálise clínica. Mas por que lançá-lo durante a pandemia de covid-19?

Acho que é um momento em que as pessoas estão precisando muito olhar para dentro de si, lidar com suas perdas e faltas, mas a maioria das pessoas que precisa de uma assistência nesse sentido não tem acesso ou como pagar um processo de autoconhecimento. Minha ideia foi trazer o que eu já fazia nos cursos, em locais como os espaços do Sesc. Minha ideia é que a pessoa possa aprender a vivenciar essa experiência na sua rotina, no seu dia a dia. Porque se a gente só escrever, sem que se tenha uma intenção, sem que a gente saiba conduzir esse processo, tudo fica só na superfície dos acontecimentos, não consegue se aprofundar.

No livro, não tem apenas meu relato, mas o de pessoas que autorizaram a publicação de suas histórias. Por exemplo, muita gente resistente à terapia tradicional acabou começando esse caminho pela escrita terapêutica porque entendeu essa possibilidade como mais uma coisa voltada para a arteterapia. Vi muitas pessoas modificando aspectos da vida, como escolhas, transição de carreira, sonhos e planos que ficaram no passado. Muitas pessoas se descobriram como escritoras neste período também.

Ainda existe uma mistificação a respeito do escrever? Em alguns momentos, você acabou lidando com certa resistência a esse tipo de ideia, algo como: “não é para mim, eu não sou escritor”?

Eu diria timidez. Até falo sobre isso: de onde vem essa questão que a gente tem com a escrita? De onde vem esse bloqueio, essa resistência? Trata-se de uma conversa com uma pessoa leiga mesmo. Quais são as perguntas que ela tem de se fazer?

Algo muito freiriano, não?

A gente aprendeu na escola a fazer redação, que hoje é uma metodologia ultrapassada. Ela foi substituída pela produção textual, uma versão muito mais moderna e mais inclusiva de produção de texto do que a redação. A produção de texto é uma produção pessoal, freiriana, porque você tem espaço para fazer seus conteúdos e trazer suas ideias e seus pensamentos.

Na segunda parte do livro, dialogo com o professor e com o terapeuta. Falo do quanto é importante dentro da sala de aula a gente ter cuidado na hora de fazer críticas ao texto de um aluno, por exemplo, porque você está falando não só de palavras, não só de gramática, está falando mais do que isso, sobre pensamentos, ideias, desejos. A gente tem de ter um cuidado muito grande porque traumas enormes se criam a partir disso.

A escrita terapêutica pode ser uma grande aliada do professor na hora de ensinar, tanto que também faço um trabalho nas escolas há alguns anos, ensinando professores, trazendo esse tema para o dia a dia do ensino da produção textual, justamente para que o professor entenda o quanto ele pode criticar ou não o texto de um aluno.

E você, Bruna, escreve todos os dias? Não estou falando apenas da escrita terapêutica, mas de sua relação com o ofício da escrita. Como você organiza sua vida nesse sentido?

Particularmente, não sou uma pessoa que escreve todos os dias porque gosto de ter dias na minha semana que são voltados para a escrita.

Por exemplo, hoje é um dia que escrevo, pois nas minhas terças-feiras tiro a manhã e a tarde inteiras para me dedicar à escrita. À noite começo a dar aulas. Então, eu me dedico, sim, a essa escrita semanalmente, dois ou três dias, mas diariamente não consigo porque a rotina de aulas, trabalho e projetos não me permite a concentração e aquele foco.

Nunca fui aquela escritora que consegue 15 minutos livres e vai escrever. Sempre preciso de um tempo para mergulhar no assunto, pesquisar alguma coisa sobre a qual queira escrever. Nunca consegui me dedicar à escrita de forma fracionada, gosto de ter um dia da semana, ou um período inteiro. Começo às 8 horas e vou até a 1 hora da tarde sem interrupção; gosto muito de mergulhar naquilo que estou fazendo.

Agora, a escrita de um diário é diferente, porque essa, sim, você pode dedicar 10 ou 15 minutos por dia para escrever um pouquinho daquilo que está sentindo.

Você tem diferentes tipos de praticante da escrita terapêutica: tem a pessoa que escreve todos os dias numa prática contínua; tem aquela com uma prática esporádica, que escreve duas vezes por semana; e tem aquela pessoa que escreve somente quando está precisando, ao passar por um trauma, uma dificuldade.

E, pensando na ideia de terapia, como esse momento do dia, de escrita, pode se tornar um hábito?

No começo, a gente deveria se comprometer a escrever, pelo menos nos primeiros dias, com um pouco mais de constância, para pegar o hábito, até você conseguir sentir o quanto a escrita pode ser útil para você. Mas sem obrigação nenhuma de passar sua vida escrevendo todos os dias, tem de escrever quando tiver vontade.

Acho que a prática da escrita deve ser uma coisa leve, sem cobrança, cada um tem o seu ritmo. Tem épocas que você está escrevendo muito, outras está escrevendo menos e isso faz parte, pois tem momentos da vida em que você está precisando se munir de repertório para que também tenha o que falar, tenha o que escrever.

É como escrever uma biografia. Esta é a grande lição que tirei da escrita biográfica: às vezes, você passa o ano inteiro só pesquisando sem escrever uma linha para depois sentar e escrever um livro.

Neste Dia Nacional do Escritor, o que você diria para quem está começando a escrever?

O primeiro passo para você aprender a escrever, se quiser ser um escritor, é falar de si mesmo, porque quem sabe descrever a si mesmo, quem sabe escrever os seus sentimentos, quem sabe se aprofundar nesse oceano, que são os nossos pensamentos, que são os nossos sentimentos, consegue construir qualquer personagem, consegue construir qualquer enredo. Então, quanto mais conhecimento você tem sobre si mesmo, mais fácil fica esse processo de escrita. A primeira coisa é que isso não pode ser uma obrigação, tem de ser algo que a gente faz de uma forma muito gostosa, prazerosa. Afinal, nem todos os dias a gente está bem.

Como um escritor é um bom leitor acima de tudo, gostaria que você indicasse três obras da nossa literatura que tenham tido um papel importante em sua formação.

Perdas e ganhos, de Lya Luft; Para uma menina com uma flor, de Vinicius de Moraes; e Éramos seis, de Maria José Dupré. Perdas e ganhos, aliás, foi um livro que me marcou demais. Inclusive é uma obra que todo ano releio, é o único livro que tenho esse compromisso de reler todos os anos.

Bruna Ramos da Fonte sorri para a fotografia. A escritora tem cabelos curtos e usa um vestido escuro e com mangas longas.
(imagem: Divulgação)
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