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Felipe Fonseca: “A construção da memória está vinculada às possibilidades de compreensão do mundo em cada época”

Pesquisador e consultor do Transversalidade da Memória, Felipe Fonseca fala sobre as implicações da cultura digital no campo da memória

Publicado em 23/12/2020

Atualizado às 17:32 de 06/05/2022

A presença da cultura digital no campo da memória certamente trouxe impactos que ainda estão sendo descobertos e estudados. Afinal, trata-se de uma mudança de paradigmas que afeta não só a construção da memória e suas interpretações, mas também o modo como podemos trabalhar o arquivamento, a organização e a disponibilização de dados pensando no acesso de futuras gerações.

Nesta entrevista, Felipe Fonseca, consultor do Transversalidade da Memória – espaço on-line do Itaú Cultural (IC) que estimula conversas e troca de experiências no campo da memória –, fala sobre como é importante construir a memória das próprias comunidades que se organizam por meio da internet, além de analisar outras implicações da cultura digital nessa discussão.

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Fonseca é pesquisador e articulador de projetos de apropriação crítica de tecnologias digitais, laboratórios de mídia, arte eletrônica, cultura digital experimental e colaboração em rede. Em 2014, obteve o grau de mestre em divulgação científica e cultural pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor/Unicamp) como bolsista da Capes. Coordena o nodo de Ubatuba da rede Tropixel, que debate arte, ciência, tecnologia e sociedade. É cofundador da rede MetaReciclagem (2002), da plataforma Rede//Labs (2010) e de diversas outras iniciativas, como o projeto UbaLab e o coletivo editorial MutGamb. É também integrante do grupo de pesquisa Informação, Conhecimento e Mudança Sociotécnica, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict).

Para começar, gostaria que você comentasse sobre sua linha de pesquisa no campo digital e como a memória se relaciona com isso.

O meu envolvimento com a cultura digital se deu a partir de uma série de experiências que tinham o objetivo de usar a internet de maneira instrumental, para aproximar pessoas com interesses em comum. Na virada do milênio, comecei a ter um contato mais intenso com comunidades na internet e ajudei a criar o projeto MetaFora, do qual surgiram diversos subprojetos. Um dos que mais andaram foi o MetaReciclagem, que virou autônomo e sobreviveu ao desaparecimento do MetaFora. O MetaReciclagem se organizava inicialmente em torno da reutilização em contextos sociais de equipamentos de informática descartados, e isso levantou questões sobre tecnologia e memória, que surgiu em diferentes aspectos, como quanto a acervos e produção.

A partir daí, eu me aproximei de outros campos e, junto com outros integrantes do MetaReciclagem, participei da criação da estratégia de cultura digital do Ministério da Cultura que foi implementada nos Pontos de Cultura, do programa Cultura Viva. Nós tivemos contato com milhares de iniciativas culturais organizadas de maneiras diferentes em todas as partes do Brasil, como na Chapada Diamantina (Bahia), em comunidades ribeirinhas do Tapajós (Pará), pela Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), e pelo movimento de hip-hop. Isso foi muito interessante para quem vinha do universo da tecnologia. Nós levávamos a nossa referência de internet para essas comunidades.

De um lado, pensávamos em usar tecnologias às quais os grupos que vinham da internet já tinham acesso, como referências de softwares livres, creative commons e licenças abertas, mas colocando-as a serviço da construção de uma ideia de memória. Por outro lado, tinha algo óbvio de digitalização de acervos e como colocá-los na internet. E existia uma outra discussão, sobre a memória dessas próprias comunidades que se organizam por meio da internet, porque, ao contrário das que compartilham o espaço físico, são muitas vezes compostas de pessoas que nunca se encontraram ou não frequentam os mesmos lugares. São ligadas por afinidades e até por diferenças. Elas só existem enquanto houver comunicação.

Esta é uma das questões emergentes da discussão: comunidades são totalmente dependentes da comunicação. E, se pensarmos em comunidades na internet – ou que se organizam por meio dela – que pretendem se sustentar no tempo, é importante falar sobre as suas próprias memórias.

A memória construída a partir das interações e das trocas. Isso sempre esteve presente nos projetos de que participei. Pensar em como podemos fazer o registro da comunicação entre essas pessoas, como preservá-la no tempo e como torná-la útil para quem a acesse posteriormente.

O MetaReciclagem se organizava basicamente em torno de uma lista de discussão por e-mail, que chegou a ter cadastradas 500 pessoas do Brasil inteiro. De 2003 a 2012, foram 35 mil mensagens trocadas. Tinha ali uma reflexão importante de preservação dos produtos culturais criados por essa comunidade – publicações, pôsteres e cartazes de eventos, registros de áudios das sessões e criações coletivas –, mas também do próprio histórico de mensagens que constituíam o que os seus participantes tinham em comum.

A cultura digital não só trouxe mais ferramentas capazes de produzir memória como abriu espaço para que qualquer pessoa tenha um papel ativo na construção da memória coletiva. Quais são as novas práticas sociais decorrentes desse aspecto?

É importante relembrar uma referência de Hans Enzensberger em seu livro Elementos para uma Teoria dos Meios de Comunicação, no qual dialoga com a teoria do rádio de Bertolt Brecht, segundo a qual o desenvolvimento do rádio como um meio de comunicação de massa com um emissor e vários receptores se deu por uma decisão política, pois existia a possibilidade técnica de ser um meio de comunicação de muitos para muitos. Para Enzensberger, havia a ideia de manipulação – não necessariamente negativa, de esconder uma informação ou propor um gene específico –, de que todas as pessoas envolvidas com comunicação são manipuladoras, no sentido de que editam e selecionam informações de acordo com os seus próprios interesses, vieses ou referenciais éticos.

E acho que esse rádio que Brecht imaginava, aliado à ideia de manipulação de Enzensberger, é a realidade nesses tempos de redes sociais e mensageiros instantâneos. Não temos uma discussão aprofundada sobre como lidar com o fato de que todas as pessoas podem editar informações. Gera um monte de efeitos e implicações. É complicado.

Isso tem um contato direto com a ideia de memória, além de implicar algumas visões de mundo. É importante levar em conta que, em um cenário no qual todas as pessoas têm a possibilidade técnica de receber, editar e repassar informações, as coisas são muito mais complexas do que achar que simplesmente existe alguma força por trás manipulando tudo – um pouco desse pensamento de teoria da conspiração. Temos que sofisticar mais essa discussão.

Como se dá a construção da memória coletiva? E qual seria o papel de cada indivíduo?

Acho que se dá em diferentes escalas. Nós nos relacionamos com o imaginário social e cada um traz a sua própria interpretação. Essa interpretação acaba contribuindo para pesar mais para um lado ou outro. É um processo dialógico de construção da memória. E o próprio termo “memória” tem que ser analisado sob diversos prismas, porque é importante pensar também no seu par, no seu oposto, que é o esquecimento.

O esquecimento faz parte da construção da memória, ocorrendo tanto por falta de reforço – o que não se discute é difícil de ser lembrado – quanto intencionalmente – deixam-se partes fora da edição ou dificulta-se o acesso a elas.

O compartilhamento da vida pessoal em redes sociais altera a nossa percepção sobre a distinção entre as memórias individual e coletiva?

Certamente há uma confusão entre o que são as memórias individual e coletiva, assim como existe um paralelo entre a ideia de espaços particular (ou privado) e coletivo (ou público). Nas referências de construção da contemporaneidade essa distinção era um pouco mais clara. Quando chega a internet, especialmente com as redes sociais, fica confusa. São empresas que fornecem os meios para nos comunicarmos. Quem controla esses meios, portanto, são essas empresas, que, por sua vez, estão nas mãos de acionistas, que têm seus próprios objetivos. E esses objetivos são frequentemente descolados do coletivo de pessoas que utiliza esses meios de comunicação.

Tem uma questão aí que se relaciona com o conceito de sustentabilidade em seu sentido profundo, que é sobre como garantir que as interações via internet possibilitem que a humanidade se reproduza de forma justa, igualitária, que destrua menos o planeta etc. Isso não está relacionado com os interesses particulares dos acionistas dessas empresas. A confusão já começa aí. São meios públicos ou privados? As pessoas entram em redes sociais e falam “esta aqui é a minha linha do tempo” – o que não é verdade. É da empresa. E elas reclamam, às vezes, que outros usuários queiram dar suas opiniões sobre algo.

Felipe Fonseca é pesquisador e articulador de projetos de apropriação crítica de tecnologias digitais, laboratórios de mídia, arte eletrônica, cultura digital experimental e colaboração em rede (imagem: divulgação)

Como a construção da memória é afetada pela velocidade da informação no digital, uma vez que a nossa capacidade de absorção não consegue acompanhar tal rapidez?

Eu não sei se alguma vez na história a nossa capacidade de absorção coletiva conseguiu acompanhar toda a rapidez. São gerações de pessoas que tiveram dificuldades de entender as mudanças no mundo em seu próprio tempo. Acho que isso faz parte da natureza do ser humano, de inventar ou criar maneiras de alterar as próprias condições de vida. Tem uma anedota – não sei o quanto dela é verdade –, atribuída a Sócrates ou Platão, segundo a qual o filósofo reclamava de que as novas gerações não aprenderiam mais nada porque estavam escrevendo suas ideias em vez de debatê-las. Ou seja, ele tinha dúvidas sobre o futuro da sabedoria humana porque as pessoas estavam começando a usar letras gravadas em objetos para registrar suas ideias. Portanto, não acho que não acompanhar a velocidade da informação e do desenvolvimento contemporâneo seja uma situação nova.

A construção da memória sempre esteve vinculada ao universo de possibilidades de compreensão do mundo em cada época.

Mas é importante considerar que existe, sim, um incômodo entre os profissionais do campo da memória que enxergam uma aceleração nos meios, uma grande mudança na maneira como se constrói e se registra a memória para o futuro.

Vivemos um período em que tudo está disponível para todos em poucos cliques. Quais cuidados devem ser tomados para o arquivamento, a organização e a disponibilização da memória cultural?

Os cuidados básicos passam pela verificação de fontes, checando-se inclusive duas ou três vezes na origem, porque nem sempre uma fonte está correta. A informação digital pode ser alterada muitas vezes sem deixar traços. Existem algumas coisas interessantes decorrentes dessa aceleração, como a possibilidade de gravar e registrar múltiplas versões, ou seja, uma versão questionável não precisa ser necessariamente excluída, podemos simplesmente registrá-la com uma metainformação que diga que não se trata de um dado confiável. É um elemento que pode ser usado no futuro para encontrar padrões de desvios de veracidade.

Hoje em dia armazenar dados é relativamente barato, se comparado a dez ou 20 anos atrás. Com o aumento da capacidade de processamento, nós também podemos criar novas maneiras de inferir análises a respeito de grandes massas de dados. Tem uma construção de redes de referências cruzadas, em que uma interpretação pode ser reforçada em diferentes pontos.

É comum vermos sites e redes sociais dos mais variados saírem do ar e todo um acervo sumir de um dia para o outro. Qual é a responsabilidade desses agentes na preservação da memória?

Dentro da rede Tropixel, construída a partir de fragmentos do passado, temos pessoas se organizando e falando sobre temas que vão de tecnologia, cultura e sociedade até meio ambiente, e ali surgiu uma conversa sobre a cultura digital e essa visão de gerações. Não é simplesmente buscar a maneira mais eficaz de registrar e disponibilizar informações atualmente, mas adotar estratégias de registros e de memórias que vão perdurar e atravessar gerações. Na minha leitura, isso é possível com a adoção de protocolos abertos e a utilização de softwares livres de código aberto e de licenças abertas de compartilhamento de informação.

Essas são as únicas maneiras de futuras gerações – daqui a dez, 20 ou 30 anos – terem acesso a essa memória. Quem tiver acesso a esse conjunto de dados poderá ler, manipular e os compartilhar sem encontrar as barreiras comuns de quando se utilizam softwares proprietários, licenças de publicação muito restritivas ou protocolos obscuros.

Essa é uma discussão ainda pouco presente, bastante incipiente, da maneira como eu vejo a memória. Deveria ser uma questão central pensar em armazenar informação para gerações futuras. Para isso, é preciso refletir sobre os protocolos, os softwares e as licenças.

Todos os agentes devem se envolver: as instituições, os profissionais, a academia, os estudantes, os artistas e os produtores culturais precisam se apropriar desse universo.

Qual é o papel das instituições mantenedoras do patrimônio cultural na preservação da memória na era da cultura digital?

As instituições possuem a responsabilidade de possibilitar a expansão dos horizontes de atuação dos indivíduos que fazem parte dela ou que estão em seu campo de estudo. Elas, por essência, estabilizam uma série de práticas e as organizam de maneira a compartilhá-las junto com as informações decorrentes, além de servirem como canais para a disponibilização de recursos para o registro e o compartilhamento dessas práticas. Não me interessa debater quais são as práticas específicas de uma ou outra instituição em contribuição com o campo da memória na cultural digital, mas sim pensar no papel da instituição na sociedade, que é identificar vetores de atuação que não são alcançáveis de maneira sustentável e em grande escala pelos indivíduos. Identificar, organizar, dar vazão, implementar e garantir o compartilhamento dessas práticas.

Esse é o metapapel da instituição ou da ideia de instituições na sociedade contemporânea. As instituições de memória vão por esse mesmo caminho, precisam lidar com práticas que são feitas por pessoas, encontrar maneiras de priorizar aquelas que são importantes e buscar recursos para implementá-las sem esquecer do próprio metarregistro, do motivo de serem adotadas e como serão mantidas.

Acesse aqui o site do Transversalidade da Memória e participe de conversas sobre o campo da memória.

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