Ensaios premiados no edital Arte como Respiro mostram como a pandemia transformou o espaço urbano e o nosso olhar sobre ele
Publicado em 19/10/2020
Atualizado às 19:14 de 16/08/2022
por André Seiti
Quem se aventurou a sair de casa nos últimos meses, principalmente quando a adesão à quarentena atingiu índices mais elevados, se deparou com ruas vazias e comércios fechados. O falatório, as buzinas, o barulho dos motores, o vai e vem de pessoas davam espaço a um silêncio atípico. Os efeitos da pandemia, afinal, haviam tomado o espaço urbano.
“A cidade é por definição uma aglomeração de pessoas, e o encontro é a sua própria razão de ser. A pandemia tem um impacto imediato no espaço público, que se esvaziou e dificilmente voltará tão cedo a ser o que era”, acredita o fotógrafo Tuca Vieira, cuja série Cidade de Ninguém retrata uma São Paulo em tempos de exceção. Para ele, “em uma cidade grande, com desafios sociais como São Paulo, esses problemas tendem a aumentar, porque o espaço público vai ficar obrigatoriamente mais abandonado. É preocupante e pode ser um ponto de virada no crescimento urbano”.
Os problemas escancarados pela pandemia no espaço urbano também chamaram a atenção do fotógrafo Márcio Borsoi: “Me entristeceu ver a multiplicação de faixas de ‘aluga-se’ e ‘vende-se’ ”. Ao sentir a necessidade de ver e saber como estavam os lugares que frequentava, ele registrou cenas noturnas de Brasília, no ensaio A Cidade se Perde nas Ausências… E se pode haver uma tendência de abandono do público não será pela falta de registros de Borsoi. “Nas minhas fotos sempre os vazios e as ausências são presentes, este distanciamento obrigatório me fez pensar que era preciso documentar minha cidade, lembrar de não esquecer é importante”, filosofa.
A cidade também foi tema da série O Voo das Maritacas na Calada do Dia, do fotógrafo Luís Evo. Ao documentar Belo Horizonte (BH), por meio de um drone que simulava o trajeto das maritacas, Evo notou uma BH transformada. “Parece que aqueles prédios, casas, praças, ruas estão ali esperando alguém retornar, sem muito entender o que está acontecendo. E quem retorna são as maritacas, que parecem não entender muito o que está acontecendo ali. Apenas desfrutam de uma outra cidade”, diz.
Seria então essa outra cidade, convidativa às maritacas, um lugar com ares mais saudáveis? “Na medida que os espaços urbanos estão mais vazios, tem-se uma impressão de que se tornaram mais saudáveis, propícios ao deslocamento, à mobilidade, estão menos caóticos, menos violentos. No entanto, essa aparência não condiz com a realidade que evidencia as contradições de nossas cidades”, pondera. “Vivemos um momento onde o índice de transtorno de ansiedade e depressão aumentou bastante e isso, a meu ver, afeta diretamente os espaços públicos e as relações sociais. Sem falar nas incertezas e inseguranças de quem não pode ficar em casa ou vive em situação de rua.”
Sentimento contraditório em relação às transformações urbanas também é partilhado por Tuca Vieira. “Por um lado, havia essa tragédia no ar, um silêncio doloroso; por outro, nunca vi São Paulo tão bonita. Havia menos poluição, menos ruído, pouca distração. As próprias cores se revelavam de outra forma, mesmo porque a pandemia atingiu a cidade no outono, época mais bonita em São Paulo. A cidade estava esquisita, mas estava próxima daquilo que uma cidade agradável deveria ser: com menos gente, menos trânsito, menos poluição”, afirma.
E olhar para essa cidade esquisita pode ser um ponto de partida para outras transformações. “Suspeito que a pandemia pode ter criado positivamente um efeito de estranhamento. Quando a gente fica muito tempo isolado e volta para a cidade, a tendência é estranhar esse lugar, e esse estranhamento pode ser uma forma de olhar criticamente para a cidade com novos olhos, reparando em coisas que a gente nunca reparou antes, por exemplo. Esse distanciamento da cidade seguido de um retorno a ela pode ser uma forma de pensar a cidade propositivamente.”
Com curadoria de André Seiti e Anna Carolina Bueno, a série analisa algumas fotografias selecionadas pelo edital Arte como Respiro. Os textos são uma pequena amostra do que será apresentado na publicação que reúne todos os escolhidos na categoria Artes Visuais e que será lançada em dezembro de 2020.