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Em fotografia: como a pandemia ressignificou o cotidiano

Ensaios premiados no edital Arte como Respiro mostram como a pandemia transformou o nosso olhar sobre o espaço urbano e o cotidiano

Publicado em 26/10/2020

Atualizado às 19:13 de 16/08/2022

Com o mundo em suspensão, olhares vacilantes e temerosos voltaram-se para dentro. O silêncio e a espera passaram a dar o tom das rotinas em isolamento. “Comecei a fotografar esse fluxo contínuo, a partir de uma conexão do sentir”, conta Daniela Dib, autora da série novo dia, mais um dia, um diário fotográfico que imprime um momento de “medo e transformação profunda”.

“Os dias passavam tão parecidos, como um sonho distante. Ao mesmo tempo, os sentimentos eram reais e viscerais. Foram inúmeras as sensações que permearam os primeiros dias de isolamento, mas de repente comecei a ouvir o silêncio. A estar mais presente no que vivia e no que se passava ao meu redor”, diz a fotógrafa sobre a concepção de seu trabalho. 

Para Dib, que integra um dos grupos de estudos de Marcelo Greco, um trecho escrito pelo poeta Rainer Maria Rilke poderia traduzir em palavras os seus registros visuais em preto e branco: “(...) relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de suas lembranças”.

Definindo-se como um “fotógrafo de gente”, um retratista em isolamento também deve lidar com interregnos. Em tempos de saudades e vazios, Pedro espera. Com este título, a série de imagens do fotógrafo Pedro Dias inscreve o perto que não se vê. “Minha fotografia é feita por pessoas e diferentes lugares. Então, de repente, não poder me locomover ou ter contato presencial foi um choque, mas foi justamente o que me abriu os olhos para outras coisas”, afirma. Os registros relatam a passagem do tempo em um só dia, contando de sonhos e visões à localização física e período histórico. Para isso, as fotos transitam entre o abstrato e o literal.

“Em isolamento, a única forma de ter alguém em minha foto era saindo de trás da câmera e encarando minha própria lente, o que nunca havia acontecido e agora é uma nova forma de linguagem que carrego. Falei sobre mim, mas também me usei pra contar a história de outros”, explica o fotógrafo e designer, que já circulou por cinco continentes trabalhando de cozinheiro a carpinteiro. Em casa, Pedro espera e respira o mundo enquanto trancado.

Os sentimentos de desordem, de cessão dos planos futuros e de sufocamento também podem ser encontrados na obra de Keiny Andrade. Em O Ar Que Me Falta, série em cores e feita com flash direto, é possível notar certo sentido de adaptação e ressignificação do banal. “Com as limitações trazidas pelo isolamento, comecei um diário fotográfico onde tento experimentar outra forma de fotografar que não a minha habitual, colocando ordem onde não há e jogando luz para que tudo fique desvelado. Uma abordagem em consonância com a nova forma de viver marcada pelos procedimentos de cuidados contra a contaminação, que me faz olhar para o mundo de forma estéril e ordenada”, conta Andrade, fotógrafo desde 1998. 

Segundo o artista, organizar o interno passa por olhar poética e minuciosamente o que está em volta de si. “Ouvi e li muito sobre ser um momento de olhar para dentro e esse trabalho é sobre isso. Tudo o que sentia era uma desordem mental e uma falta de perspectiva. De uma hora para outra, ficou angustiante e sufocante pensar no futuro, planejar qualquer coisa”, explica.

Andrade conta que optou pelo uso do flash de forma direta com o intuito de que nada restasse escondido nas sombras. Suas imagens imprimem um olhar asséptico e também ordenado, em uma contraposição ao desarranjo geral.

“Uma parte do diário foi feita na rua quando tinha de sair para ir ao mercado ou trabalhar. Eu olhava para a cidade ao meu redor com a mesma sensação de confusão interna por conta da pandemia. Além disso, observei como é sufocante a relação natureza e paisagem urbana e como ela era uma metáfora de como vivemos. Ou seja, estamos trancados em nossas casas assim como raízes sufocadas por debaixo do concreto da calçada. A diferença é que a gente raramente se rebela e vive em bolhas. As raízes não: elas se revoltam e arrebentam o concreto. A natureza é indomável.”

Com curadoria de André Seiti e Anna Carolina Bueno, a série analisa algumas fotografias selecionadas pelo edital Arte como Respiro. Os textos são uma pequena amostra do que será apresentado na publicação que reúne todos os escolhidos na categoria Artes Visuais e que será lançada em dezembro de 2020.

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